Os espaços públicos camuflados
A proposta da criação de “Os quintais de Porto Alegre” nasce a partir de uma inquietação das artistas e pesquisadoras Marcia Berselli e Natália Soldera a respeito de locais públicos que não são habitados pela população devido à falta de conhecimento sobre os mesmos. A partir deste desejo inicial, foram elencados espaços públicos que possuem grande importância histórica, mas perderam seu valor público na contemporaneidade da cidade. Trata-se de construções históricas que possuem em seus interiores espaços abertos, nomeados pelas artistas de quintais.
Existe, em Porto Alegre, uma quantidade considerável de edifícios históricos que, ao longo dos anos, tornaram-se patrimônios públicos. Esses vêm sendo utilizados como espaços para abrigar museus, acervos históricos, centros culturais, porém a sua existência é, na grande maioria, desconhecida da população. Isso se deve ao fato dessas construções estarem escondidas entre propriedades privadas e, mesmo quando se toma consciência de sua natureza pública, os espaços não são convidativos, não se tem incentivos para que sejam explorados ou habitados pela população.
A ocupação de espaços públicos, também, parece estar na contramão de um movimento de fechamento dos espaços de lazer. Devido a diversos fatores sociais, a população das grandes cidades têm transferido suas áreas de convívio e, até mesmo suas moradias, para locais privados, seguros e fechados. Ocupar a rua e o parque do seu bairro é uma estratégia importante de manutenção do sentimento de comunidade, pois para haver comunidade é preciso que o cidadão se perceba como integrante de um local que não é seu, mas é de todos. Nesse sentido, propor a exploração desses espaços públicos é uma maneira de promover uma pausa no movimento de “enclausuramento” do convívio social, em favor da valorização do sentimento de comunidade e do espaço público como espaço de todos.
Assim, “Os quintais…” é uma proposta de criação cênica que se funda em quatro pilares: introduzir esses espaços aos cidadãos, através de uma experiência artística; tomar conhecimento da importância desses espaços públicos para a manutenção da história da cidade; incorporá-los através da possibilidade de participação na experiência artística; afirmar a possibilidade de habitar esses locais com ações conviviais. Sustentando esses pilares, há ainda o desejo de diálogo com os espaços, esses entendidos como propositores da criação, pelo que representam no contexto da cidade, pela sua estética, pela sua história.
Nesse sentido, não somente os espaços abertos internos das construções históricas serão habitados na criação, mas também seus entornos. As criações iniciarão do lado externo em forma de cortejo, convidando os espectadores e passantes a ingressar ao interior do prédio. Os quintais serão ocupados não somente durante a apresentação da intervenção cênica, pois os procedimentos criativos estão associados à ideia da possível permanência dos espectadores no local por mais algumas horas, a fim de estimular a consciência da possibilidade de convívio naquele ambiente. Ou seja, mais do que convidar os sujeitos à atividade cênica, há o interesse de apresentar os quintais como locais públicos, passíveis e desejosos de ocupação. O quintal, assim, torna-se quintal de todos e de cada um, um espaço de convívio, de encontro com o outro e com a cidade.
O convívio como criação
Articulando a apresentação dos espaços públicos aos espectadores com a ocupação desses espaços, apontamos à criação de uma intervenção pautada no convívio. Jorge Dubatti (2008), teatrólogo argentino, indica uma ampliação das dramaturgias teatrais na qual despontam dramaturgias conviviais. O conceito sustenta a ideia da cena enquanto acontecimento convivial, ou seja, ações que acontecem na relação entre pessoas em tempo real e, sendo assim, sujeitas a modificações.
Ao propor que os sujeitos na posição de espectadores habitem espaços públicos, há uma convocação ética para que esses sujeitos, com seus corpos sejam também atores dessa ocupação cênica e social. Para engajar no convívio, aos criadores - atores, diretores, técnicos e espectadores - são propostos scores,1 selecionados previamente e que sustentarão a criação.
Servindo como isca para o início da intervenção artística, os scores são estruturas simples, a partir das quais podem se desenvolver ações e improvisações, e também podem ser pensados como tarefas-base. Funcionam como um esqueleto, que é ao mesmo tempo sólido – para oferecer sustentação ao acontecimento – e flexível – para permitir as alterações provocadas pela improvisação. A natureza de um score pode ser variada, podendo se apresentar em forma de texto, atividade, imagens, desenhos.
Os scores que constituem a estrutura base da criação são: (1) os quintais dos espaços públicos – a partir dos locais previamente apresentados, suas influências arquitetônicas e de acessibilidade; (2) o registro das histórias desses espaços e das pessoas que ali habitaram; (3) eventos conviviais cotidianos – ações previamente definidas a partir de atividades realizadas em convívio e em espaços abertos. Os eventos elencados são: esporte não convencional e regional ("taco", “bocha”…), mateada, banho de sol, festa de aniversário, piquenique, caminhada de estimação (com animais de estimação) e book fotográfico. Esses eventos serão associados às possibilidades e às demandas de cada espaço público escolhido. Acredita-se que, pela proximidade das atividades às práticas cotidianas dos sujeitos espectadores, esses se sintam assim convidados a participarem das intervenções, não de modo imperativo, mas espontâneo e motivado pelo estabelecimento do convívio.
Além disso, o evento proposto para cada intervenção não tem duração restrita àquela da representação cênica, sendo assim, os espectadores poderão ocupar os espaços, nas práticas dessas atividades de lazer, antes, durante e depois do acontecimento cênico. As intervenções cênicas pretendem ser um primeiro convite a habitar o espaço público. O espectador, de posse do entendimento dos mecanismos e dispositivos do jogo cênico, a partir da apresentação do score selecionado e percebendo que se trata de uma composição aberta, que está sendo criada em tempo real, é mobilizado e acolhido a improvisar junto com os artistas.
Assim, além da vivência artística, no momento das intervenções, a proposta pretende abrir possibilidades de modos de habitar esses espaços em outras circunstâncias. Os eventos utilizados como scores são um convite para que os espectadores permaneçam no local ao término da intervenção, ainda habitando e convivendo através da proposta de evento de cada intervenção. Tendo conhecimento do lugar e incorporando esta primeira aproximação, existe a possibilidade de retorno.
A articulação criativa da intervenção cênica se dá, então, no atrito/jogo entre os scores. Esse jogo configura um modo de operar o processo que permite aberturas à improvisação, que flexibiliza as autorias e o “saber-fazer” do artista. Todas essas possibilidades são portas de acesso que pretendemos levar ao público da rua, para que ele possa se perceber em estado de encontro e convívio, através da criação artística, que se sinta livre a participar, a não participar, a interferir e a propor em outras circunstâncias novos momentos de convívio naquele mesmo espaço.
Flexibilizando relações para promover a transparência dos muros
As intervenções cênicas se estruturam, do ponto de vista da organização dos artistas, como um trabalho desenvolvido em colaboração. O trabalho colaborativo entre artistas propõe que esses assumam uma postura multidisciplinar, na qual se espera que os colaboradores envolvidos se coloquem em diversas funções cênicas, experimentando, dentro de suas limitações técnicas, a proposição e a transformação de ideias. Ter uma postura multidisciplinar em relação ao processo de criação não significa dominar todas as funções envolvidas, mas estar disposto e aberto para jogar, a partir e com, essas diferentes inteligências criativas. Esse também é um exercício que busca um diálogo entre rigor e espontaneidade, na tentativa de refletir sobre possibilidades de organização ética do processo de criação.
A postura multidisciplinar não busca um artista completo, capaz de dominar todos os elementos da criação cênica, ao contrário, busca um artista disposto a investigar, a explorar novas possibilidades para sua criatividade, a se expor em espaços pouco conhecidos e a lidar com suas restrições técnicas. Tal flexibilização do poder, do "saber-fazer", comumente associado à figura do artista, é uma abertura à integração do público como agente criativo. Assim, o espectador não é somente convidado a refletir sobre a ocupação do espaço, mas a incorporar efetivamente o ambiente em convívio com outros.
Acredita-se que a flexibilização da autoria do artista e do modo operatório do processo criativo, através dos procedimentos apresentados, possa contribuir para a potência do encontro com o público que busca uma experiência artística na rua. A incorporação desse espaço através da cena permite também uma ampliação de suas possibilidades. Ao adentrar em um universo escondido por uma fachada e transformar o espaço – edifício, jardim – em outros espaços-tempos, outros mundos, revisitando histórias do passado, entrando em contato com o espaço concreto através da imaginação, todos os criadores da intervenção – sejam atores ou espectadores – tecem suas tramas de relações a partir de seu contato íntimo com o espaço. Se lembrarmos de Gaston Bachelard (1996), para quem a imaginação é criadora e não apenas reprodutora, é na relação com o mundo que o imaginário é convocado. Assim, na relação entre sujeitos e espaço promovida pelo convívio, tendemos a uma criação flexível que provoque a mudança no olhar de cada um sobre a cidade e o local que é habitado. Sem um controle rígido sobre a intervenção, interessa aos artistas envolvidos no projeto “Os quintais…” as múltiplas respostas que podem surgir no encontro de sujeitos com o espaço público que se encontra escondido e desabitado.
Entendemos que a entrada nesses espaços e suas histórias e o convite à participação do espectador, requerem uma postura permeável por parte dos artistas e do próprio processo e acontecimento cênico. Dessa maneira, acreditamos que adotar uma postura multidisciplinar e de colaboração e trabalhar sobre uma construção em tempo real, a partir da improvisação na presença dos espectadores, são formas de tornar o evento cênico mais permeável e flexível.
Por uma postura amigável com o espaço habitado
Na efetivação da criação de “Os quintais…” espera-se também promover um olhar mais sensível em direção ao espaço habitado cotidianamente, mesmo que de modo camuflado ou indireto. Os dispositivos de criação da intervenção aqui apresentada foram planejados de modo a que a estrutura criativa, após iniciada, desenvolva-se por si. Ou seja, o que se pretende é a instauração de um clima de amigabilidade com o espaço, que reverbera em uma disponibilidade física e espiritual, que por sua vez tem o poder de detonar a criação. É na postura dos envolvidos que a intervenção se torna real, se consolida. Essa perspectiva permite um olhar para o espaço público cotidiano que independe de motes adicionais, mas que brota da disponibilidade sensível de cada sujeito para com o seu espaço habitado.
Na criação das intervenções nos quintais da cidade de Porto Alegre ou na criação que se desenvolve quando do trajeto diário de cada sujeito para seu local de trabalho ou sua moradia, cabe perceber que o espaço é sempre convidativo às mais diversas experimentações, que expõem os elementos e provocam relações, quando uma energia criativa é direcionada à concretização de acontecimentos. Uma vez que a intenção criativa é estabelecida e que se entra em contato com um ambiente propício, onde se efetiva o convívio, a criação começa a se desenvolver.
Criar não está limitado à atividade artística e esta experiência pretende evidenciar aos espectadores as possibilidades de invenção e imaginação presentes no cotidiano e nas atividades de lazer e de diversão, que escolhemos para fazerem parte de nossas vidas. O lugar escolhido para uma festa de aniversário ou simplesmente para encontrar os amigos interfere no tipo de experiência que será compartilhada. Este trabalho pretende provocar o espectador a refletir sobre as possibilidades estéticas e de prazer dos espaços públicos abertos e de como eles podem integrar suas vidas e torná-las mais inventivas e pulsantes.