Da mesma forma já não faz mais sentido a cena naturalista (observada da fechadura da porta) nem o discurso narrativo. Não há “história” para ser contada – todas as “histórias” já são conhecidas. Na medida em que o teatro (parte dele) se basear em uma forma-ideia que vem do século passado, ele nunca mais ocupará o lugar de vanguarda, que já ocupou em outras sociedades, mas sim o de reboque das outras artes. Conservará apenas uma função museológica. Isso por puro misoneísmo, porque a relação teatral do homem em frente do outro homem (mesmo com aparato tecnológico) é eterna.
Renato Cohen
A epígrafe que abre este texto não foi escolhida por acaso. São bastante provocativas as palavras registradas por Renato Cohen, expressas acima. Em alguma instância, é possível de se afirmar que o teatro, enquanto fenômeno, tende a ser eterno, na medida em que existe a partir de uma relação concreta entre os homens. Entretanto, em um de seus livros, Peter Pál Pelbart, relembrando uma passagem de um romance de Eduardo Pavlovsky, apresenta aquilo que pode constituir a via negativa da aparente essência do fenômeno teatral: “Basta de vínculos, nunca mais vínculos, apenas contiguidade de velocidades” (PELBART, 2000, p.19). Essa passagem é utilizada pelo autor para descrever aquilo que ele aponta como uma subjetividade emergente. E se essa é uma das possíveis configurações subjetivas, cuja formação remonta características específicas da pós-modernidade, estaria o teatro, portanto, fadado ao desaparecimento? De que maneira ainda poderá o teatro sobreviver? Em alguma instância, estas são algumas das perguntas norteadoras deste texto.
O objetivo central deste escrito, todavia, não se ampara na busca de uma resposta específica frente às problematizações apontadas. Não há respostas possíveis e toda e qualquer solução encontrada deve ser novamente problematizada, uma vez que é a dúvida que organiza a existência humana. Reconhecer a fragilidade da própria ciência e do próprio exercício do pensamento crítico é uma etapa fundamental para que um novo modelo de existência possa tornar-se vigente – algo que o teatro deve carregar consigo a todo tempo.
É conhecido o fato de que o teatro é produtor e produto de ideologias. Este dado da realidade é concreto e não cabe a nós revelar quais ideologias fundamentam determinados objetos artísticos. Lehmann aponta que nessa relação “mantém-se um tema tão infecundo, tão insignificante quanto a procura por vestígios da biografia do artista em sua obra” (LEHMANN, 2014, p.7). Entretanto, invalidar a atividade da procura não implica numa negação da sua existência. O teatro, bem como todas as manifestações artísticas, está inserido numa determinada configuração social e é dentro dela que age e propõe rupturas.
Considerando o teatro como constituinte dos jogos e discursos de poder que cercam os indivíduos por todos os lados, tornando-os sujeitos e disciplinando seus corpos e práticas, em prol da extração de algo da multiplicidade que envolve todo o conjunto dos seres, é importante perceber que, ao fim e ao cabo, o que se encontra em jogo, portanto, é o nosso próprio corpo, mesmo que, no limite das circunstâncias, estejamos todos enaltecidos por uma ideia de liberdade, construída cautelosamente, principalmente pelos governos neoliberais, que parece fundamentar toda a nossa existência, sem percebermos que ser livre, nesses moldes de existência, não passa do poder de escolha daquilo que já foi para nós escolhido a priori. Em outras palavras, a ideia da liberdade que caracteriza a pós-modernidade não passa de um desejo de escolha de mais do mesmo. Daí ser significativa a primeira estrofe do poema Grapefruit Moon, de Manuel de Freitas (2010, p.102), ao apontar que:
Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.
São consideráveis as palavras que abrem o poema de Manuel de Freitas. A imagem é, por si só, detentora de uma potente e devastadora cena, ao instaurar um espaço onde tempo, memória e mundo são roubados constantemente de todos, inclusive do próprio leitor, na medida em que o nós traz consigo uma denotação inclusiva. A configuração que se efetua investe na perda radical das categorias de tempo, espaço e identidade, na medida em que a perda da memória implica na desapropriação da própria experiência e na desfiguração do próprio eu – se é que essa primeira pessoa do singular verdadeiramente denota um ser individual. Isso acaba por constituir uma grande massa imemorável e igualmente anônima, expressões cunhadas por Giorgio Agamben (2014) em dois de seus ensaios.
O desenho que se estrutura é digno de nota e abre dois campos distintos de análise, aqui expressos pela configuração de dois experimentos cênicos realizados pelo Grupo OPOVOEMPÉ e pelo Teatro da Vertigem, respectivamente. O primeiro deles diz respeito a um evento intitulado O Espelho e o segundo ao experimento A última palavra é a penúltima 2.0, criado num projeto de intercâmbio artístico com dois outros grupos, LOT, de Lima (Peru), e Zikzira, de Belo Horizonte, a partir do texto O esgotado, de Gilles Deleuze. Também vale ressaltar que O Espelho é apenas um dos três experimentos que compõem o projeto intitulado A Máquina do Tempo (ou longo agora), do grupo OPOVOEMPÉ, que completa dez anos de existência neste ano de 2015.
Para que não se perca o fio condutor deste texto, retomando inclusive os versos de Manuel de Freitas, faz-se necessário incluir uma simples e reveladora passagem de Jacques Lacan, retirada do seu seminário intitulado O simbólico, o imaginário e o real, ao dizer que: “O real é ou a totalidade ou o instante esvanecido” (LACAN, 2005, p.45). É, portanto, essa difícil definição do real que norteará as reflexões expostas a seguir.
O Espelho é uma intervenção realizada ao ar livre. Um grupo de pessoas senta ao redor de uma grande mesa que instaura uma atmosfera semelhante a um café da tarde. Ali, memórias e lembranças são compartilhadas e todos acabam por se tornar coautores da experiência que atravessam.
Em tempos onde a nossa própria identidade é constantemente roubada de nós, o Grupo OPOVOEMPÉ se lança à difícil tarefa de restituir aos indivíduos a sua própria história. Ao compartir memórias em volta de uma mesa, configurando espaços possíveis de partilha e desconstruindo os padrões e estatutos de intérpretes e público, a experiência a que o grupo, sob direção de Cristiane Zuan Esteves, se lança estabelece um projeto de reunificação e reconfiguração de um si mesmo. Conforme as histórias são lançadas, um fio limítrofe e linear se desenha delicadamente em volta de todas as pessoas ali presentes, reinventando a categoria de humano. Ao redor daquela mesa, a identificação é imediata. Tudo acontece exatamente no instante em que verdadeiramente acontece. A noção de performatividade é abarcada na sua essência linguística, advinda de Austin e Searle, onde dizer é agir – e a ação proposta pelo grupo é coletiva. Ainda fazendo uso de apontamentos lacanianos, é como se o público percebesse e sentisse que:
Ele sente que é o outro, e o outro é ele. Esse sujeito definido reciprocamente é um dos tempos essenciais da constituição do sujeito humano. É um tempo em que ele não pode subsistir, ainda que sua natureza esteja sempre a ponto de aparecer, e precisamente em certas estruturas neuróticas. Ali onde a imagem especular é aplicada ao máximo, o sujeito não passa do reflexo de si mesmo. (LACAN, 2005, p.43)
Logicamente, a passagem acima envolve considerações lacanianas a respeito de uma relação narcísica. Entretanto, elas não vão muito longe daquilo que é proposto em O Espelho, tomando como base, inclusive, o próprio nome que a intervenção carrega consigo, na medida em que é por meio do espelho que o sujeito se constitui enquanto tal, percebendo-se primeiramente enquanto Outro e resultando desse conflito o núcleo problemático onde o Eu é um Outro. Isto seria suficiente para retirar o trabalho do OPOVOEMPÉ do núcleo do real e encaixá-lo em outras considerações, na medida em que parece se fundamentar na configuração de uma realidade, sendo que essa é sempre simbólica. Todavia, todas as propostas lançadas pelo Grupo só se efetivam no e pelo próprio evento, acontecendo verdadeiramente no exato instante da enunciação. Todas as instâncias se voltam para um eu-aqui-agora, fazendo uso das três instâncias que Manuel de Freitas apontava como objetos de roubo, e é desse lugar que os discursos são enunciados e é para esse ponto que sempre retornam.
Entretanto, a questão central que aqui se enfatiza diz respeito ao fato de que dois eus parecem existir e se fundir durante e após a intervenção. Um eu inicial, que se senta ao redor da mesa e atravessa a experiência proposta pelo grupo, e um final, já modificado e marcado pelo encontro que envolveu o fenômeno cênico. Essa experiência, por sua vez, apesar de ser individual, só existe a partir da capacidade de outrar-se, algo que fundamenta toda a poesia de Fernando Pessoa, por exemplo. Admite-se o Outro no lugar do Mim, algo que concretiza aquilo que Maurice Blanchot chama de subjetividade, propriamente dita. Ou ainda, nas palavras de Clarice Lispector:
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. (LISPECTOR, 1964, p.142-3).
Na medida em que a teatralidade do evento cênico O Espelho apresenta-se como um convite, a performatividade se dá em relação, num jogo constante, sendo uma face a complementar da outra. O teatro só se concretiza enquanto fenômeno, com toda a sua potência, na medida em que é capaz de proporcionar e efetivar encontros significativos. Dessas marcas, advindas da eficácia do encontro, nasce um novo sujeito, capaz de habitar sua cidade e o mundo de uma maneira diversificada, enxergando-se como parte de um projeto muito maior, na medida em que o seu eu encontra-se mergulhado dentro dessa reinventada noção de humano, a única capaz de nos reunir dentro de um mesmo parâmetro de análise. A existência, portanto, só se dá enquanto ação, enquanto exercício performativo. E, na medida em que se dá coletivamente nas propostas do Grupo OPOVOEMPÉ, pode-se afirmar que ela beira a face da totalidade do real, apontada por Jacques Lacan na passagem citada anteriormente.
Entretanto, como a face contrária do fenômeno da totalidade, encontra-se o vazio, o Nada, instaurando um terreno propício para considerações a respeito da negatividade, conceito em cima do qual se apoiam as reflexões de boa parte dos grandes filósofos do século XX.
A tentativa de abarcar a totalidade só pode levar ao fragmento, reconhecendo que “nunca o fragmento pôde prescindir da articulação com uma qualquer forma de totalidade” (BARRENTO, 2010, p.68). A apreensão da totalidade, tão comum ao Romantismo, só pode desembocar num completo esgotamento frente ao século XX, período marcado por completa alienação, crise de identidade, isolamento e desumanização, principalmente por conta das duas Grandes Guerras.
A fragmentação é, por sua vez, aspecto marcante em boa parte das encenações contemporâneas, lançando o espectador a uma sucessão constante de quadros que, por vezes, não mantêm uma relação semântica muito específica entre si. Contudo, a extrema brevidade dos fragmentos é diretamente proporcional ao seu alto grau de expressividade, conforme aponta João Barrento. O fragmento opera uma ampliação de um universo indefinido, acrescendo ao fenômeno uma quantidade numerosa de interpretações possíveis. Todavia, mesmo a própria leitura do acontecimento não é um aspecto central para a análise de obras deste tipo. Ela é renegada e trazida a um segundo plano, enquanto, num primeiro, há uma complexa sucessão de um ferrenho plano de imagens e significantes. Nas palavras de Deleuze, em seu texto que serviu de base para a criação de A última palavra é a penúltima 2.0: “A imagem não é um objeto, mas um “processo”” (DELEUZE, 2010, p.81).
Essa é uma das maneiras possíveis de se interpretar a intervenção do Teatro da Vertigem. Oferece-se ao espectador um conjunto de ideias e imagens inacabadas, que ainda se encontram em processo, e também a abertura necessária e fundamental para que os seus conteúdos e as suas impressões constituam o significado final de toda a intervenção. Na medida em que todos os elementos do experimento comportam-se como significantes e é atribuída ao Outro a responsabilidade pelo estabelecimento de significados, é somente a partir do encontro entre o Um e o Outro que o teatro pode se constituir enquanto signo, de fato, assumindo a sua arbitrariedade e amplitude, utilizando aqui as mesmas formulações pelas quais o conceito de signo foi cunhado por Ferdinand de Saussure no âmbito linguístico.
Ao contrário da proposta efetuada pelo OPOVOEMPÉ, o Teatro da Vertigem impossibilita todo e qualquer encontro real. Conforme aponta Deleuze: “Esgotar o espaço é exaurir sua possibilidade, tornando todo encontro impossível” (DELEUZE, 2010, p.90). A irrealização de encontros e a impraticabilidade de relações reflete o fenômeno da pós-modernidade em seu completo isolamento. Contudo, essa isolação das partes constitutivas do fenômeno artístico é fundamental para que elas sejam capazes de adquirir uma nova dependência. É preciso “desconectá-las em prol de uma nova conexão” (DELEUZE, 2010, p.93). Dessa maneira, apreendendo o desejo fragmentário que perpassa toda a arte moderna, é possível de se resgatar a hipótese de que o fragmento é aquilo que ele não é, mas que aspira ser. “Ou seja: é totalidade, e não fragmento” (BARRENTO, 2010, p.69).
Constituindo-se como uma obra total, na medida em que é feita de fragmentos e que cada um desses fragmentos também possui a sua devida autonomia, A última palavra é a penúltima 2.0, cuja direção artística é atribuída a Antônio Araújo e Eliana Monteiro, termina por lançar todos aqueles que ali se encontram como testemunhas do acontecimento a um niilismo profundo que vibra como uma sensação de vazio na experiência dos seus participantes, algo que Antônio Carlos de Brito também percebe na poesia de Cacaso, por exemplo. A intervenção proposta pelo Teatro da Vertigem exprime aquilo em que Maeterlinck apostava ao ser o poeta do “trágico quotidiano”, na medida em que se lançava a fazer com que o espectador visse aquilo que “há de espantoso no simples fato de viver” (SARRAZAC, 2013, p.9).
Em alguma instância, A última palavra é a penúltima 2.0 também se enfatiza como um convite, mas o seu chamado é de ordem distinta daquele efetuado pelo OPOVOEMPÉ. Enquanto para o segundo, a teatralidade se dava enquanto convite ao compartilhamento, para o primeiro ela se revela enquanto experiência do choque. Enquanto O Espelho abarca um projeto de reescrita da própria história individual de seus participantes, por meio de experiências coletivas, A última palavra é a penúltima 2.0 lança seus espectadores-testemunhas num completo abismo, que é a própria existência cotidiana. Todavia, é nesse abismo, onde não há nenhum sentido possível, que o verdadeiro sentido se mostra. É por meio da consciência do Nada e da própria tragicidade da vida que a existência humana pode ser capaz de revelar um novo sentido, até então desconhecido por todos nós. Em alguma instância, o Teatro da Vertigem apresenta-se como um convite à liberação daquilo que reduz a nossa própria existência: o fundamento, o sentido, a totalidade e a finalidade. Ao negar todas essas próteses da existência, conforme foram cunhadas por Oswaldo Giacoia Júnior na sua leitura sobre Nietzsche, uma nova possibilidade de sentido pode se revelar, ultrapassando os limites da própria consciência e raciocínio humanos. O teatro, portanto, revela-se como instrumento desencadeador da descoberta do além-do-humano, na medida em que destrói a sua própria forma comum.
A maneira como as duas escrituras cênicas se desenham revela dois olhares específicos frente ao fenômeno da contemporaneidade, ambos expressos por Giorgio Agamben em seu ensaio “O que é o contemporâneo”. Em suas palavras:
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas a escuridão. Todos os tempos são, para quem os experimenta na sua contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, exatamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2014, p.25)
É este mergulho que se encontra efetuado na intervenção do Teatro da Vertigem. A tragicidade da própria existência e a ineficácia do modelo de vida comum à pós-modernidade é o que fundamenta a sua proposição cênica. O encontro teatral se revela como uma colisão entre olhares e percepções. Concretiza-se uma experiência de choque contra um modelo de anestesiamento da própria vida. O espectador é colocado em uma situação e lugar inusitados e, ali, é bombardeado por um complexo fluxo de imagens que depende da sua perspicácia para continuar existindo. O fenômeno faz um elogio da presença extrema e é nessa presença que se faz possível enxergar o vazio constante da vida presente.
Em contrapartida:
O que percebemos com a escuridão do céu é essa luz que viaja velocíssima em nossa direção e, entretanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz.
Perceber na escuridão do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros. E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não só de manter fixo o olhar na escuridão da época, mas também de perceber nessa escuridão uma luz que, dirigida até nós, afasta-se infinitamente de nós. (AGAMBEN, 2010, p.27).
O trabalho do Grupo OPOVOEMPÉ, de maneira delicada, desenha um cuidadoso trajeto em direção a essa luz que se mostra distante de nós. Em tempos tão negativos, as experiências propostas pelo grupo fazem nascer uma luz que é fonte de esperança e de transformação. Uma luz que nos impulsiona a um devir incerto, que ainda não sabe definir o que exatamente pode vir a ser, mas que se fortifica a cada nova experimentação artística. Entretanto, é importante afirmar que esse posicionamento não denota uma atitude escapista da realidade; pelo contrário, envolve uma árdua tarefa de atravessar todo o fenômeno da negatividade para, enfim, encontrar um pequeno feixe de luz possível.
Há algo peculiar que une as duas manifestações: ambas escolhem a cidade como seu palco. O Espelho acontece normalmente em parques, em lugares a céu aberto, enquanto A última palavra é a penúltima 2.0 ocupa a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, do centro de São Paulo, que havia sido interditada em 1998. Em ambos os casos, o espaço apresenta-se como elemento crucial para a execução das performances. Retornando a Deleuze, é possível de se encontrar uma passagem onde ele diz que: “O espaço goza de potencialidades na medida em que torna possível a realização de acontecimentos: portanto, ele precede a realização, e a potencialidade pertence ao possível” (DELEUZE, 2010, p.84).
Em todos os níveis de análise, a escolha por espaços públicos envolve uma decisão política. A cidade é, por excelência, um espaço de circulação, de fluxos, e, portanto, de encontros possíveis. Ao concretizar-se como um ambiente de encontros, ela, em alguma instância, mostra-se como instrumento de resistência frente ao Estado e ao próprio sistema capitalista. Sendo a cidade o símbolo do possível, conforme a bandeira levantada pela fórmula de Mumford, é preciso, assim como sugere Koolhaas, “irrigar a cidade com territórios potenciais, instaurar campos que forneçam processos abertos, que estimulem as hibridações, as intensificações e diversificações, as redistribuições, e que aposte na reinvenção do espaço psicológico” (PELBART, 2000, p.48).
E é somente à medida que o teatro, enquanto fenômeno artístico, for capaz de amadurecer um novo modelo de existência possível que ele encontrará sua devida força para continuar existindo. E existir enquanto resistência. Reconhecendo que todo espaço já traz consigo numerosas possibilidades de ser habitado, é necessário ocupá-los. Ocupar a cidade e diluir as fronteiras entre a arte e a vida, na medida em que existir implica um exercício performativo. Tornar a vida um grande palco e fazer do palco um símbolo de manifestação vital, sendo essa, inclusive, a definição por meio da qual Richard Schechner define a performance art.
Ao teatro, portanto, a concretização de uma nova existência possível. À arte, em geral, a busca por brechas emancipatórias.