Rio Grande do Sul. Aqui existe uma topografia monótona: litoral de areias grossas com pequenas dunas e muito vento; mar marrom, gelado, com ondas baixas e repuxo; pampa reto com algumas ondulações e acúmulo de pedras aqui e ali; serra sem formações rochosas exóticas, nem grandes altitudes. Esta ‘monotonia’ está longe de ser desinteressante, ao contrário, são encantos peculiares desta região. Iberê Camargo observou: “Eu nunca encontrei uma região tão desértica – deserta no sentido de solidão – como o Rio Grande do Sul, essa linha reta...”. Vitor Ramil, cantor, compositor e escritor tem falado da necessidade de conceber uma ‘estética do frio’, referindo-se à aproximação cultural do RS com a Argentina e o Uruguai, tendo como um dos fatores dessa aproximação, a geografia (clima e paisagem). No seu entendimento, sendo músico, esta ‘estética do frio’ é traduzida pela milonga. A concepção de uma estética que leva em consideração características físicas de uma região, que exercem influência na música e na cultura, é também debatida no documentário de Luciano Coelho, intitulado “A Linha Fria do Horizonte”. Maria Helena Bernardes, através do Projeto Areal, registra no livro ‘História de península e praia grande’, singularidades encontradas durante algumas viagens feitas para o litoral sul do RS. Como um diário de expedição, o livro nos fala de faróis abandonados, campos horizontais que se perdem de vista, a dificuldade de trafegar na Estrada do Inferno. Estes são alguns exemplos da forma como artistas de linguagens distintas se relacionam com seu entorno, e como esta paisagem provoca questões que acabam por gerar trabalhos em arte intimamente ligados aos lugares aos quais estão ambientados.
Durante a pesquisa para o mestrado, entre o final de agosto e o início de outubro de 2011, estive no litoral norte do RS com o intuito de resolver questões pessoais. Devido à complexidade do assunto, precisei retornar mais duas ou três vezes e, com as “idas e vindas” da jornada, tive a oportunidade de observar particularidades desta região que talvez não me chamassem a atenção em outras circunstâncias – como quando percorria o mesmo trajeto e veraneava na mesma praia durante a infância. As viagens acabaram se multiplicando até chegarem ao total de 21 (ainda que não fossem mais necessárias, visto que já havia resolvido minhas questões pessoais), pois me interessei muito pelo aspecto que esse território apresentava: por estar no fim do inverno/início da primavera, a estrada estava pouco movimentada e a praia, quase deserta. O vento, o frio e o céu nublado me inquietavam. Enquanto viajava, ficava observando a região e, ao ver algum aspecto interessante nela, desenhava um pequeno esboço do que havia retido daquele trecho. Depois, no ateliê, finalizava o desenho do cartão a partir do esboço e das lembranças que tinha do local; minha intenção era refazer manualmente o que me chamara a atenção, tentando explorar mentalmente a temperatura do lugar, o som do vento, o cheiro das árvores, lembrando e relembrando, numa alusão ao ir e vir realizado por repetidas vezes. Uma singularidade que se destacou foi a cor desta região, sobretudo no período visitado (entre agosto e outubro). Uma mescla de marrons, azuis, pretos, brancos e verdes acinzentados; aliás, cores predominantes na maior parte da geografia do RS. Pela primeira vez utilizei aquarela nos desenhos, colocando ‘cores baixas’ e intencionando ressaltar os traços solitários e frios ao quais Iberê Camargo, Vitor Ramil, Luciano Coelho e Maria Helena Bernardes se referiam. Dessa ação de esboçar, relembrar e desenhar, desenvolvi “21x” (Figuras 1, 2 e 3). Este trabalho é uma composição de 21 desenhos (um para cada ida e volta) feitos em cartões de 7 x 9,5 cm e apresenta uma visão particular sobre a paisagem ‘solitária e esteticamente fria’ dessa região do Brasil. Propõe uma reflexão do espaço geográfico com o qual lidamos, mas principalmente, sob quais pontos de vista esse lugar, com suas características físicas, se insere em nossa maneira de agir e pensar. É uma forma de pensar que o movimento de partir e retornar de um lugar – um determinado território percorrido reiteradas vezes – é capaz de sugerir ou provocar uma reflexão poética.
Como parte da pesquisa para 21x, fiz imagens de determinados pontos especialmente interessantes, como uma praia sem pessoas, os aerogeradores do Parque Eólico de Osório, trechos da BR-101 ou da Estrada do Mar. As imagens traduziam uma atmosfera de silêncio e recolhimento, algo intimamente ligado a um conceito pessoal de frio. Conheço os lugares que retratei e para que não fossem autorreferentes, manipulei digitalmente as imagens no Microsoft Photo Editor, um editor de imagens simples, sem muitos recursos, apenas para adicionar ficcionalidade a elas. As fotos haviam sido feitas no celular, sem preocupações técnicas, porque o objetivo não era a imagem, mas sim a impressão do lugar. Com uma impressora jato de tinta fiz alguns testes de impressão e as imagens não pareceram mais fotos, traziam características do desenho que costumo fazer à mão. Até esse ponto, estava testando possibilidades de imagens, lidando com documentos de trabalho ; não havia qualquer intenção de que elas fossem usadas como trabalho. Com a impressão, percebi que mais do que imagens fotográficas, eu tinha outro trabalho em mãos. A qualidade gráfica acabou por criar uma linha tênue entre uma foto desenhada e/ou um desenho fotografado, colocando em questão os limites técnicos da arte, ou seja, se a arte contemporânea ainda pode ser dividida pelos materiais e técnicas utilizados, estabelecendo que determinado trabalho não seja considerado ‘desenho’ por que é uma imagem digital em detrimento de outro em que se utilizou papel e grafite, por exemplo. Dessa forma, as imagens, que seriam documentos de trabalho para uma ideia, além de deixarem de ser fotos para serem desenhos, tornaram-se “Foto-gráfico”, um painel (fig. 4) formado por 15 imagens manipuladas.
Encartado no livro já referido de Maria Helena Bernardes, está o DVD ‘Arranco’, de André Severo. Este filme faz menção à história do naufrágio de um cargueiro inglês carregado de porcelanas cujo destino era um ‘porto ao Sul’. Ele teria sido atacado pelos piratas dos Campos Neutrais . De tudo que havia no cargueiro (incluindo o próprio navio) só foram encontradas algumas roupas e as ossadas. O vento, constante no filme, faz as vezes de trilha sonora.
O livro do navegador Amir Klink, “Cem dias entre céu e mar” narra a viagem em que o autor sai do sudoeste da costa africana e chega ao nordeste do Brasil atravessando o Oceano Atlântico sozinho, em um barco a remo. Ainda que pareça uma aventura de ‘maluco’, essa viagem é um projeto que levou dois anos para ser concluído, sendo meticulosamente planejado. Em um dos capítulos, ele nos relata episódios tensos com protagonistas como tubarões e ondas gigantescas que ganhavam nome conforme seus ‘humores’, mas também de tranqüilidade e paz interior, como quando observava os dourados e as baleias, navegando calmamente, ou um amanhecer iluminado.
Conheço quatro tipos de vento que acometem o Rio Grande do Sul. O Sudeste é frio e úmido; o Pampeano, gelado e seco; o Nordestão, úmido e forte e o Minuano frio e forte ‘de doer’, produz um assobio cortante. Ouvir o vento é como ler um poema em voz alta. Sempre que possível, nas minhas idas à praia, eu estacionava no paradouro do Parque Eólico de Osório para observar seus aerogeradores. Por mais que seja um campo aberto e que o vento sopre livre e forte por ali, nos períodos em que passava por lá, o som do vento era mais suave do que na praia. O vento só emitia um som forte e ritmado porque movimentava as hélices das torres.
A contemplação deste lugar em que o vento assobia nas hélices e corta a pele me permitiu desenvolver “Troqueu” (fig. 5 e 6). A proposta deste trabalho: fazer desenhos de lugares que ventavam no dia em que os visitei. Apesar de ter estado em lugares ensolarados exatamente por causa do vento que havia levado as nuvens para outra região, minha escolha recaiu por dias nublados que trazem uma luz acinzentada para o azul do céu, o marrom da areia ou o verde dos campos.
A opção por uma composição preponderantemente horizontal, em que os desenhos podem ser rearranjados está interligada com os diferentes pontos de vista que posso ter a respeito de um mesmo local. Aos aspectos formais predominantes nos desenhos, que remetem à noção de paisagem, acrescento que esta acontece quando há uma intervenção na natureza pelo ser humano com o intuito de dominar aquilo que está posto. Esta intervenção é uma declaração de individualidade do observador sobre o mundo – individualidade não apenas do pensamento artístico, mas também das relações provocadas por este determinado lugar. A trajetória empreendida durante um período e um lugar específicos mostrou que uma ideia ou um projeto em desenho define não apenas o local ao qual ela está se referindo, mas também a questões culturais e pode gerar outros trabalhos. Esses novos desenhos estarão, de alguma forma, ligados formal e conceitualmente ao lugar que os originaram, como no caso de “21x”, “Foto-Gráfico” e “Troqueu”.
Os resultados gráficos obtidos com estes trabalhos puderam delimitar o percurso de um pensamento linear, estreitamente relacionado com o ambiente ao qual se refere. A linearidade aqui exposta não indica uma linha única, fina e reta em que só há espaço para convicções absolutas. Ao contrário, a linha que conduz o meu pensamento em arte é espessa e tortuosa, formada por várias camadas, num ir e vir entre processo e reflexão, desenho e leitura. Possui relevos nos momentos em que saturo informações, marcas naqueles em que piso e repiso uma ideia e vazios nos que disseco os desenhos – exatamente como a geografia riograndense que povoou meus olhos durante dois meses.