Quando se nasce e vive na periferia de São Paulo, a convivência com hábitos culturais distintos é a normalidade. As mil faces da cidade não causam qualquer estranhamento: isso porque as muitas ascendências se desdobram e se completam na malha urbano-cultural. Uma infinidade de migrantes e imigrantes, que já estão na sua terceira ou quarta geração, imprimem à cidade suas memórias, reinvindicações e visualidades. A cidade de São Paulo sente a presença de portugueses, espanhóis, germânicos, belgas, franceses, eslavos, poloneses, russos, árabes, japoneses, coreanos, chineses e, por último, a demanda dos latino-americanos, dos haitianos e dos africanos. E sempre chegam mais. Incorporam e são incorporados ao espaço urbano.

Nessa teia cultural, os imigrantes portugueses seriam mais um dos agentes transformadores e transformados pela cidade? Sim e não. Sim, porque eles estão em todos os bairros da cidade e contribuem de forma definidora para a identidade múltipla de São Paulo. E não, porque não são somente mais um dos agentes: eles se distinguem dos demais porque brasileiros e portugueses têm relações paradoxais (que os aproximam e os distanciam muito). Alguns pontos de inflexão são bastante arraigados, visto a formação de estereótipos étnicos, entre eles, um dos mais fortes é o do “português, dono da padaria, com lápis atrás da orelha”. Das lembranças da infância, nos bairros paulistanos, não há quem não tenha a das figuras do “Seu Manuel” e da “D. Maria” vestidos com roupas pesadas e sóbrias (mesmo em dia de calor intenso), sotaque acentuado, rudeza e seriedade que, por vezes, dá lugar ao sorriso fácil provocado por coisas simples – no fundo, camponeses que se tornaram comerciantes, numa “São Paulo industrial-operária”.

Para além dos estereótipos, as relações históricas entre Brasil e Portugal também marcam a presença dos portugueses na cidade: as aventuras épicas narradas pela literatura e pela história atestam como um país tão pequeno, localizado na Península Ibérica (a ponta do continente europeu), consegue transformar a velha concepção de mundo através da expansão marítima. São os desbravadores portugueses que alargam as fronteiras do Velho Mundo e exploram comercialmente a Ásia, a África e a América. Nesse ponto, vale evocar o “sentimento de metrópole-colônia” no Brasil – algo bastante diverso quando se coloca como parâmetro o que acontece com países colonizados pela Espanha ou pela França. Essas antigas colônias ainda hoje se direcionam culturalmente para suas antigas metrópoles. Em boa parte dos países latino-americanos e caribenhos os centros de referência são Madri e Paris, respectivamente. Os brasileiros não! Apesar de o português ser o idioma nacional, esse é distinto por seu acento e há vocábulos e expressões completamente diversas. Os brasileiros conhecem muito pouco da história, da arte e da cultura lusitana. Culturalmente, conhece-se muito mais as matrizes inglesas, francesas e norte-americanas do que as portuguesas. No Brasil, a imagem que, geralmente, se tem de Portugal vem do período do Brasil-Colônia-Império e nunca chega à modernidade (o que dirá à contemporaneidade?).

Os paulistas polifônicos não imaginam a condição contemporânea de Portugal. Seria como se “a terrinha” tivesse parado no tempo. Exceto os que têm laços familiares, os brasileiros raramente escolhem o país como roteiro turístico-cultural. Ligados às tendências internacionalizantes, turistas brasileiros dirigem-se a outros destinos na Europa ou até mesmo nos EUA. Por essa razão, “Portugal contemporâneo” é uma surpresa. O ato de sair da metrópole paulista e desembarcar em Lisboa torna-se um denso exercício de cartografia mental. Segundo REGUILLO (2005, p. 202), “(...) a cidade diz e significa coisas diferentes de acordo com o lugar social a partir do qual se experimenta (...)”. Não é mais o imigrante português caricato que está em foco. Em Portugal, é o brasileiro “que fala cantado”, que se torna a caricatura, que se coloca na posição de estrangeiro e estereotipado.

Lisboa vivida, mediada pela identidade brasileira, é reconstruída por uma matriz cultural ressignificada pelo tempo e pelo espaço – um “tempo” que não é o linear e um “espaço” que não é propriamente o geográfico. São conceitos intermediados por memórias afetivas que tentam encontrar, primeiro, as semelhanças entre cidades brasileiras: centro histórico de São Paulo, Salvador ou cidades coloniais mineiras. Segundo, as diferenças, nas quais a condição humana (o ser mulher, jovem, negro e/ou partilhar crenças e credos) marca a experiência sobre a cidade e, de algum modo, define a cartografia contemporânea que a cidade oferece. Dos casarios dos bairros centrais, passando pelos “centros comerciais e econômicos”, até os redutos ditos “periféricos”, a cidade mapeia-se de modo mutante e simbólico frente ao estrangeiro.

Da experiência visual à literária, as manifestações artísticas se desdobram para fixar o que é Lisboa contemporânea e o que significa habitá-la (mesmo que de forma temporária). Historicamente, filósofos, escritores e artistas, adeptos de diversas linguagens, desdobram-se em obras que enfocam uma cidade e seus habitantes – sejam essas cidades fictícias ou reais, como é a República de Platão ou a Paris de Balzac. Imagine a descoberta de uma cidade cercada pelas reminiscências de Fernando Pessoa ou de Camões?! Assim, é Lisboa.

Acrescido dos textos literários está o registro visual impresso nas fachadas lisboetas. Aqui, trata-se especificamente dos grafites (e entre eles, os que trazem a palavra escrita – também conhecidos por pichações). Há uma intensa discussão sobre as diferenças que circundam o conceito de grafite e pichação. Alguns autores colocam o grafite como sendo o produto resultante de um projeto artístico elaborado e de valor estético – expressão agraciada pelo poder público e por galerias de arte. Ao passo que a pichação seria o ato de rabiscar ou escrever nos muros e fachadas de forma espontânea, empregando tinta spray, estêncil ou mesmo rolo de tinta – expressão de vandalismo e de marginalidade. No presente ensaio, toma-se a pichação como parte do grafite sem qualquer juízo de valor normatizado pelas regras sociais – o que mais importa é a análise da linguagem como forma de expressão em meio ao cotidiano urbano.

Os grafites, representados pela palavra escrita, tão poderosos e incorporados ao cotidiano de São Paulo, estão igualmente presentes nas fachadas lusitanas. Nesse ponto, o visitante encontra uma possível semelhança entre as duas cidades. Será? O efeito nas paredes portuguesas deixa o estrangeiro em suspensão. Acostumado à arquitetura modernista paulistana, ele se incomoda com a intervenção nas fachadas de Lisboa. Isso porque, em São Paulo, muitas vezes, a arquitetura sugere a intervenção do grafite, fornecendo amplas e lisas superfícies em grandes empenas e edifícios projetados para priorizar a sua funcionalidade e não seus ornamentos.

Na contemporaneidade paulistana, os prédios modernos transformaram-se em telas planas e enormes, nos quais o grafite integra a paisagem. Já a arquitetura lusitana é designada pela curva, pelo ornamento, pelo neoclássico, eclético e, muitas vezes, pelo medieval. Grafite nessa arquitetura provoca estranhamento. Quando o grafite interfere nessa fachada seria como tempos históricos se sobrepusessem: à primeira vista d’olhos, a agressão/degradação arquitetônica torna-se maior, isso porque o grafite não adere àquela arquitetura como acontece nos prédios modernistas de São Paulo. Aos olhos estrangeiros, os dois grafites (lisboeta e paulistano) podem ser considerados como tendo razões opostas em suas arquiteturas-suportes.





No grafite, o texto e/ou imagem são concebidos como materialização do discurso e como expressão das ruas. Desde maio de 1968, em Paris, os muros tornaram-se suportes para inscrições e desenhos poéticos e políticos. Essas práxis disseminaram-se pelas grandes metrópoles mundiais, em diferentes estilos (partindo do simples rabisco, sigla, tags repetidas que têm o intuído de demarcar território até grandes murais – os designados de obra de arte). A linguagem do grafite pode estar associada a distintos movimentos urbanos, como por exemplo, o hip hop, os punks e os skinheads. Porém, é a vertente do hip hop que mais encontra adeptos nas grandes cidades.

Com origem nos guetos norte-americanos nos anos de 1970, essa vertente junta-se à música e à dança para compor sua base. Torna-se difícil ao estrangeiro compreender as conexões de gueto em Lisboa se ele desconsiderar que nem só de fado vive o cenário musical lusitano. Na cidade, o rap é a expressão da periferia – tal qual em São Paulo. Os rappers portugueses, em geral, são imigrantes ou filhos de pais imigrados, como por exemplo, Boss AC, nascido em Cabo Verde e pioneiro do rap em Lisboa nos anos de 1980, ou ainda, Chullage, também cabo-verdiano, que toma a cena nos anos de 1990. Destaca-se ainda Dama Bete, uma rapper luso-moçambicana, reconhecida por ser a primeira MC (mestre de cerimônia) a fechar contrato com uma gravadora multinacional, nos anos de 2000. No rap português, a condição de lamento do fado é substituída por letras e melodias que tratam das dificuldades diárias, criticam ações políticas que subjugam os menos abastados e evoca, sobretudo, o desejo de vida melhor.

Então, percebe-se que, vista como ato de manifestação social, a linguagem do grafite vem dominando os grandes centros urbanos mundiais – onde há uma população jovem periférica marginalizada, existe música, dança e grafite. Suas imagens veiculam mensagens divertidas, coloridas, irônicas e descompromissadas. Não seguem os cânones estéticos tradicionais e, muitas vezes, estampam reinvindicações políticas e sociais, porém, sobretudo, reivindicam o protagonismo de uma população excluída sobre os códigos visuais da cidade.

Os grafites lusitanos acompanham esse movimento. A população periférica de Lisboa, acrescida da imigração de pessoas das antigas colônias portuguesas (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor Leste, Cabo Verde e Brasil) atravessa um difícil momento econômico-social: desde 2009, o país enfrenta um das maiores recessões de sua história, acompanhada por uma crise política marcada por críticas às dimensões do Estado português, o qual é acusado de consumir mais da metade da riqueza nacional. Fato é que o país encontra-se fortemente endividado, as taxas de desemprego sobem aceleradamente e a imigração de portugueses para outros Estados europeus muitas vezes se torna a única solução – o processo de exclusão é cada vez maior. A partir desse quadro, percebe-se que os componentes para a expressão do grafite estão vivamente presentes em Lisboa.

Para a população jovem portuguesa, o grafite, como intervenção visual, seja através da arte ou da escrita, representa um signo em diálogo com o entorno que cerca a inscrição na parede. Quando é pichação, ou seja, quando se tem a intenção estética mais acirrada, representada pela expressão da escrita, essa mensagem torna-se profundamente mais agressiva e cabe ao receptor estabelecer as relações e interagir com aquele conteúdo. Quando é lírica compreende elementos portugueses, abarcando itens de uma cultura globalizada que vai além das fronteiras lusitanas, mas que estão presentes e influem no dia a dia dos portugueses. Os atributos de transgressão, insubordinação e, por conseguinte, sedução que o grafite coloca sobre seus receptores estão inteiramente ali.

Se, na contemporaneidade, o conceito de cidade é poroso, o discurso estético contemporâneo também se transmuta, assim como as práticas culturais que o permitem. O primeiro estranhamento que pode surgir quando se destrói estereótipos rasos pode dar vazão a sentimentos ligados a identidades comuns, onde as periferias se reconhecem e adotam linguagens semelhantes. Como índice cultural que conta histórias, memórias e contextos sociopolíticos, o grafite possui em suas bordas conceitos ético-estéticos profundamente imbricados com a questão da territorialidade (e dentro desta problemática, a noção que envolve a cidade e a prática cidadã), porém, ele também se envolve com o que é extrafronteiras.

Em síntese, em Lisboa, particularmente nos bairros centrais, o grafite, em primeira instância faz acreditar que a arquitetura ornamental das edificações sofre e se degrada com as pichações; ao passo que, em São Paulo, a arquitetura modernista parece coadunar para a integração entre grafite e cidade. A primeira impressão se dissolve quando se percebe que os dois grafites são portadores de mensagens semelhantes e de reivindicações igualmente necessárias. Considera-se que nas duas cidades o que realmente existe é o grafite como expressão do contemporâneo em permanente negociação entre vida e arte.

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Capa | Em duas empenas de edifícios na Av. Tiradentes, mesclam-se o desenho influenciado pela pop art e a escrita codificada presente no universo dos pichadores. Percebe-se como essas áreas arquitetônicas funcionam como suporte para a manifestação artística. Grafite no bairro da Luz, área central de Lisboa, técnica spray, julho/2014. Fotografia da autora.

2  Na fachada dominada por grandes janelas gradeadas, com revestimento trabalhos em elementos decorativos, o único espaço livre e no topo do prédio é ocupado por uma brincadeira irônica com a máxima de René Descartes “Penso logo existo”. Grafite no bairro do Alto Chiado, área central de Lisboa, técnica estêncil, julho/2014. Fotografia da autora.

3  No muro, o ícone da história da arte mundial, a Mona Lisa, toma a personalidade de uma dançarina de funk – uma metáfora sobre a união da cultura erudita e a expressão da periferia. Grafite na Av. Dante Pazzanese, Vila Mariana, zonal sul de São Paulo, técnica estêncil, julho/2014. Fotografia da autora.

4  A apropriação de ícones da cultura também acontece com esse grafite lisboeta. Aqui Edith Piaf surge nos muros com toda a sua dramaticidade. Grafite no bairro do Chiado, área central de Lisboa, técnica estêncil, julho/2014. Fotografia da autora.

5  A sobreposição de diversas mensagens surge nos muros da cidade. São marcas e códigos de grupos jovens que desejam despertar assim a sensação de pertencimento. Pichações em muro da Travessa Tim Maia, Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, técnica tinta spray, julho/2014. Fotografia da autora.

6  A mesma sobreposição acontece nos muros e fachadas lisboetas, porém, a mistura com elementos arquitetônicos da fachada aumenta a sensação de degradação. Grafite no bairro do Chiado, área central de Lisboa, técnica tinta spray, julho/2014. Fotografia de Elaine Maziero.