Como artista, minha produção é formada, sobretudo, por desenhos em meio tradicional, de pequenas e grandes dimensões, tendo por material pastel seco negro e carvão sobre papel. Como assunto, utilizo imagens por mim fotografadas ou apropriadas dos meios da imprensa, publicidade, internet, etc., que formam um repertório iconográfico. Geralmente, são figuras que remetem à construção esquemática ou geométrica, contenção e vazio, buscando superfícies densas em formas sintéticas e lineares presentes no registro fotográfico.

O trabalho inicia, então, com o contato e a manipulação da imagem fotográfica de referência. A coleta desse material se divide entre buscas e encontros ao acaso. Sem obedecer a um projeto preestabelecido, eventualmente procuro por imagens diversas que possam se relacionar com o repertório em formação. Esse procedimento também dá margem para descobertas, ao buscar algo como uma certeza, às vezes encontro um outro distinto que desperta interesse, passando a ser também incorporado e investigado. Ao mesmo tempo, tenho fotografado mais, registrado coisas que se apresentam à volta e coletado materiais e objetos que surgem no cotidiano e se dispõem em meu espaço de trabalho. Entretanto, nem toda imagem coletada se torna trabalho. Dentro do leque de imagens apropriadas, encontram-se recortes de revistas, catálogos de arquitetura, folders, convites e fotos de exposições, imagens diversas encontradas na web, fotos de família e de viagem, pequenos esboços, embalagens, etc. Há, assim, a reunião de itens que se relacionam direta ou indiretamente entre si, seja por proximidade visual ou de significado. A reunião destes artigos de referência (e influência) pode ser classificada como documentos de trabalho. O termo diz respeito à pesquisa Documentos de Trabalho: percursos metodológicos, coordenada pelo artista, professor e pesquisador Flávio Gonçalves (PPGAV/UFRGS).1 Para o autor, documento de trabalho é

o que serve de motor para produção de um trabalho em arte [...] Seja ele material ou imaterial, objeto ou lembrança, como documento de trabalho ele informa e indica rotas de sentido tanto relativas ao trabalho circunstancial quanto, de forma mais ampla em relação à arte e seu ofício. Um documento de trabalho é o objeto da obra e, como tal, ele não é evidente e palpável, mas muito mais percebido como esforço e construção. (GONÇALVES, 2013, p. 100).

Lidar com esses documentos estabelece um norte, um senso de orientação e ordenação para meus desenhos. A visita a um arquivo de referências se classifica quase como um projeto, um plano de antemão para o ato de desenhar. Há, portanto um ordenar e, porque não dizer, um percurso gráfico em selecionar, recortar, encontrar, decepcionar-me, revisar, deixar-me surpreender e projetar. Ao mesmo tempo, esse arquivo é um porto seguro e uma reciclagem de antigas ideias. Assim, esse momento de elaboração com a foto está relacionado do mesmo modo às primeiras ideias, à intenção e ao planejamento do desenho.

O espaço do ateliê, onde esses itens são guardados e utilizados, constitui o cenário de transformação das imagens ou objetos apropriados em documentos de trabalho. É importante que as fotos de referência que utilizo sejam impressas, portáteis e manuseáveis. Feitas com baixo custo, geralmente as cópias são distribuídas em folhas A4 e cortadas a mão de forma irregular e agrupadas sem critérios rígidos. À medida que os desenhos são realizados, esses documentos acabam por serem marcados pelas mãos sujas, caindo sobre o chão, onde permanecem por algum período sendo, algumas vezes, pisoteados até serem relembrados e novamente juntados e reagrupados. Uma imagem que serve como referência para a elaboração de um trabalho torna-se documento na medida em que é usada, tornando-se testemunha do processo gerador do trabalho – o uso faz o documento (GONZÁLES FLORES, 2011).

Estes fragmentos trazem além dos motivos para o trabalho, o indício da ação, imprimem o “estar em trânsito” no ateliê. Recebem, assim, uma qualidade documental ainda maior. Os gestos, percursos, descasos e decisões são assim impressos sobre a imagem-referência, agora imagem-documento. De certa maneira, o desenho é testemunha de si mesmo, de sua construção através dos vestígios e marcas de manufatura, que se dá a ver como transparências sobrepostas. O documento é por si testemunha do desenho, mas como foto também é testemunha do referente. O documento faz menção, ou de certo modo une as dimensões do interior e do exterior do ateliê, da realidade e do simulacro, do desejo e da ação.

Isso posto, um documento de trabalho confirma-se como aquele dado, informação e/ou imagem que acompanha o processo e a constituição da obra, podendo ser imediatamente anterior a esta, como imagens de referência, fotografias, anotações ou objetos que de alguma maneira “participam” de forma oculta da obra e da experiência com esta. Muitas vezes, pode estar à periferia dos sentidos, encostado numa prateleira empoeirada, ou soterrado em uma gaveta. Seria ainda uma forma de organização e compreensão do processo criativo, como pistas de um trajeto percorrido, de ideias ora perdidas, esquecidas ou reinventadas, recicladas. Possibilita, muitas vezes, esclarecer no futuro, o que não é suficientemente claro no presente ou o sentido de sua apropriação no passado. É aquilo que, diferente da obra que se põe às luzes de refletores, segue à sombra, é o que de alguma maneira chama atenção, que coletamos e guardamos conosco sem, muitas vezes, saber ao certo o motivo, mas surge como um hábito.

 

Pode-se dizer que as imagens de referência que utilizo se organizam como coleção ou arquivo. O método de formação de uma coleção/arquivo em meu processo se organiza a partir da frequência de seu conteúdo. Acredito que a aproximação com uma ideia de coleção leva, consequentemente, à instauração de um repertório através das interlocuções entre obra e documentos que a geram. O repertório é traçado por recorrências e manifestações do desejo de retenção de algumas imagens, e é o que guia e condiciona a procura de novas imagens e descoberta de outros anseios, ou seja, esse condicionamento apontaria, talvez, para onde o desejo será lançado em seguida. A imersão e o convívio diário com esse universo particular orientam a relação com o mundo externo ao da obra e o desdobramento desta.

Talvez seja necessário, então, diferenciar ou melhor classificar as ideias de coleção e de arquivo presentes em meu processo de trabalho. Em alguns momentos, é difícil a separação dessas duas ocorrências, uma vez que se interpelam e exercem influência mútua. O arquivo, por assim dizer, estabelece uma localização, ordenação e estruturação de conteúdo, um locus de armazenamento de informação (DERRIDA, 2001). O arquivo pressupõe, assim, a possibilidade de consulta, de averiguação de dados ora passados, organizando, engavetando e se oferecendo ao uso e à elucidação. O arquivo, talvez, esteja mais presente enquanto “entidade” por sua capacidade de deter evidências do que propriamente nos dados e informações que enclausura.

A coleção, por sua vez, se aplica em meu processo como um método, meio ou hábito que gere e alimenta o arquivo. Entendo-a, pois, como um sistema de inter-relações entre as partes que a constituem. A coleção é um processo, um movimento contínuo em expansão e ramificação, de modo que, a partir do que lhe é agregado em consonância com o todo, abre-se para outras novas relações de inclusão de bens colecionáveis. A acumulação desenfreada é muitas vezes o mérito e o colapso do colecionador. Acumulação que pode se reverter em arquivo, e às vezes em esquecimento. A coleção está, assim, ligada ao desejo. A ela acarreta um sentido de posse, de trancafiar em seu domínio, desfigurando a função original da imagem ou do objeto, submetendo-a à regra do conjunto formado (BENJAMIN, 2006). Coleção se relacionaria diretamente com apropriação. Aspecto curioso da coleção é que essa parece “nunca estar completa” (BENJAMIN, 2006); distante de ver um final para seu desejo, o colecionador acaba por inventar novos caprichos a serem preenchidos em seu arquivo de prazeres.

Desse modo, o arquivo pode ser uma coleção, mas uma coleção não necessariamente é um arquivo.

Meus desenhos se aproximam entre si por temas recorrentes e métodos de feitura. Os próprios trabalhos poderiam ser também incluídos num pensamento de coleção, no sentido de que as próprias regras impostas como sistema de produção remetem a um ter, comparar, acrescentar, ampliar.2 Os grupos de trabalhos rebatem e ressonam em conjunto, ao mesmo tempo em que cada trabalho é autossuficiente, exercendo seu valor singular. Apesar de aproximarem-se como séries, não possuem um projeto antecessor e um fim preestabelecido. Muitas das imagens com as quais trabalho retornam e renascem em outros trabalhos, de formas diferentes, sem obedecer uma linearidade no processo de trabalho. O documento que fornece uma imagem, ou conjunto de imagens, pode ser trabalhado hoje e redescoberto daqui a alguns meses.

Com relação a essa ideia de coleção/arquivo, poderíamos mencionar o Atlas do artista alemão Gerhard Richter. Trata-se da reunião de inúmeras imagens coletadas de meios da imprensa ou fotografadas pelo artista, organizadas por “temas” e em grades, semelhante a um álbum de família. Dessa vasta coleção de imagens distintas e mais ou menos relacionáveis, Richter tanto retira motivos para sua pintura (retratos da família, reminiscências do período nazista alemão, paisagens, publicidade, pornografia, etc.), quanto estabelece relações diretas com o pictórico, no que diz respeito à cor e à composição, por exemplo. A multiplicidade das fontes e assuntos destes conjuntos, bem como a não hierarquização desses, tornam essas imagens ao mesmo tempo importantes e desimportantes, igualmente banais e representantes de uma memória individual e coletiva.



Benjamin Buchloh (2009) relaciona o Atlas de Richter ao Mnemosyne Atlas, de Aby Warburg.3 O projeto inacabado de Warburg objetivou um sistema relacional pela junção de imagens do longo da história, de modo a obter, exclusivamente através de imagens, um conhecimento do pensamento humanista ocidental. Com um método de acumulação e distribuição de certas peças em painéis, seria possível identificar, acompanhar e compreender um imaginário representativo de uma memória coletiva através de recorrências e arquétipos contidos nas imagens. A disseminação de certas imagens e a frequência dessas na vida social seria, assim, responsável pela forma de ver e representar através desse grande repertório formado no imaginário coletivo. Buchloh ainda observa uma redefinição do objeto fotográfico e sua forma de organização, que, segundo o autor, “passará a ser, a partir de então, aquela do arquivo ou [...] a do álbum fotográfico, uma reunião imprecisa de fotografias corriqueiras mais ou menos coerentes entre si, dispostas de modo a documentar um determinado assunto” (BUCHLOH, 2009, p.202).

Um sistema próximo ao Atlas pode ser claramente percebido no trabalho da dupla alemã Bernd e Hilla Becher. Trata-se de fotografias feitas a partir da década de 1950 trazendo como principal motivo construções industriais desativadas, como fábricas, caixas d’água, gasômetros, minas de carvão, etc. São fotografias em preto e branco, feitas com negativo de grande formato, que permite alta definição das imagens, que são apresentadas em grade de 9, 12 ou 15 imagens, subdividas em classes temáticas de acordo com a função então desempenhada pelas referidas arquiteturas. O pesquisador Leandro Pimentel Abreu (2011) trabalha a ideia de inventário para abordar a obra dos Becher. Segundo Abreu, o inventário – coletar, classificar e expor – seria uma tática para a “invenção”, onde se busca uma solução a partir de um conjunto preexistente de imagens. No caso dos Becher, assim como o Atlas de Richter, a coleção é método e também forma de apresentação do trabalho. Poderia ser delimitada uma possível “poética do arquivo ou da coleção”, em que o próprio processo de inventário constitui a obra.4

Longe de adotar tal método como meio de apresentação final do trabalho ou expor meus documentos como obra, partilho das ideias de coleção, ou mesmo atlas (desordenado) como processo que antecede, mas que ainda é parte constituinte do trabalho. Interessa-me, aqui, pois, estabelecer relações entre coleção, arquivo, atlas e inventário como um processo ou sistema de trabalho e como forma de ordenação e contato com imagens.

Somos envoltos, diariamente, por imagens em toda parte. Somos dotados da capacidade de imaginar. Produzimos e difundimos imagens. Não sendo suficiente, coletamos e deslocamos imagens que se estendem a nossa volta e as guardamos como um souvenir, formando nossos arquivos privados. Reunimos, classificamos, separamos em categorias por ordem de utilidade ou mesmo afetiva. Muitas vezes, conhecemos diferentes coisas apenas por imagens – fotos feitas por satélites, do interior de corpos biológicos, imagens produzidas tecnicamente por gráficos ou ultrassom, por exemplo. Comumente, acabamos por nos relacionarmos mais com as imagens do que propriamente com as coisas ou pessoas. Essa redefinição do objeto fotográfico e do nosso olhar sobre o mundo através dele apresenta-se quase como um sintoma. Essa relação formaria uma espécie de “biombo” do mundo, como apontou Vilém Flusser (2011); mais do que uma intermediação, acabam gerando um sentido de veneração.

Como artista, lido diretamente com o transporte de imagens de um meio a outro – do impresso fotográfico para o desenho. Para mim, é importante que haja essa relação “entre imagens”, uma vez que procuro por uma relação de “esvaziamento”, onde para se construir ou gerar algo, um outro deva se perder e retornar para um estado de latência. Essa “suspensão” que se dá na transposição é intensificada e/ou tensionada muito em função de se tratar já de uma duplicação mediadora, de uma ausência de toque, sendo a imagem de referência (que por vezes se torna documento) já esvaziada de “corpo”.



Um mundo particular é assim coordenado pela presença dessas imagens, que testemunham, em silêncio, o fazer. Identificar ou mesmo inventariar as recorrências do processo criativo através do que nos circunda e nos acompanha, muitas vezes, nos geram pistas, ainda que rarefeitas, sobre o percurso, as estratégias de construção e o desdobramento do trabalho. O fator que torna dada imagem ou objeto documento e o que faz com que seja arquivado talvez não esteja diretamente na obra ou na informação que carrega, mas nos interstícios entre lembranças e descobertas. Diferentemente do fóssil que petrifica as informações a serem descobertas, o documento, assim como a obra, mantém-se aberto a novas inscrições e impressões da experiência. Um documento de trabalho apresenta-se como possibilidade; colecionado e arquivado, recebe a promessa de um gesto futuro de recordação.

1  Ver: GONÇALVES, Flávio. Através, In: Revista-Valise, Porto Alegre, v. 3, n. 5, ano 3, julho de 20013 (http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/view/41369/26209) Um olhar de través, In: MARTINS COSTA, C.; JOHN, R. (orgs). Vetor. Novo Hamburgo: Ed. FEEVALE, 2009; Uma visão sobre os documentos de trabalho. Panorama Crítico, #2, Agosto/Setembro de 2009. http://www.panoramacritico.com/002/artigos.php#art1.

2  Como, por exemplo, fazer três ou mais desenhos de um mesmo assunto em seguidas sessões de trabalho, estabelecer relações por proximidades formais e de significado, expô-los simetricamente lado a lado, etc.

3  Sobre o Mnemosyne Atlas, ver Dossiê sobre Aby Warburg publicado em Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA, UFRJ, ano XVI, número 19, 2009.

4  Como exemplo, pode-se mencionar a exposição Atlas ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?, realizada no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía em Madri, de novembro de 2010 a março de 2011, com curadoria de Georges Didi-Huberman. A exposição reuniu obras e documentos de artistas e escritores como, além de Gerhard Richter e Bernd e Hilla Becher, Christian Boltanski, August Sander, Robert Rauschenberg, On Kawara, Jorge Luis Borges, entre outros, incluindo Aby Warburg.

ABREU, Leandro Pimentel. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, 2011.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

BUCHLOH, Benjamin. Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico, In Arte e Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA, UFRJ, ano XVI, número 19, 2009. Disponível em: http://www.eba.ufrj.br/ppgav/doku.php?id=revista:arte_e_ensaios_19#dossie.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011.

GONÇALVES, Flávio. Através, In: Revista-Valise, Porto Alegre, v. 3, n. 5, ano 3, julho de 20013. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/view/41369/26209.

______. Um olhar de través, In: MARTINS COSTA, C.; JOHN, R. (orgs). Vetor. Novo Hamburgo: Ed. FEEVALE, 2009.

______. Uma visão sobre os documentos de trabalho. Panorama Crítico, #2, Agosto/Setembro de 2009. Disponível em: http://www.panoramacritico.com/002/artigos.php#art1.

GONZÁLES FLORES, Laura. Fotografia e Pintura: dois meios diferentes? São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

1  Documentos de trabalho, 2011-2014.

2  Documentos de trabalho, 2013-2014.

3  Gerhard Richter, Atlas, painel nº 10: Fotografias de jornal, 1962-1968. Disponível em: https://www.gerhard-richter.com

4  Marcos Fioravante, The observer, The poor, The botcher, The promising, The cripple, The hurt, The crutch, The view, The insider, 2014, pastel sobre papel, 30x40cm (cada).