Ideias para desenhar surgem em muitos momentos; muitas delas aparecem em situações que não posso executá-las. Essa impossibilidade pode acontecer por estar em algum lugar que não seria conveniente desenhar, ou por ter de descobrir o material mais adequado para um melhor resultado, ou ainda, porque a ideia solicita ajustes, requer tempo ou averiguação mais apurada para se desenvolver. Enfim, tenho as ideias, mas não vou executá-las imediatamente. Ao mesmo tempo, não quero perdê-las na confusão dos pensamentos de uma memória humana falível - daí a urgência em contê-las em algum lugar, colecioná-las. Walter Benjamin nos diz que “o grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo” (BENJAMIN, 2009, p.245), enfatizando que o colecionador empreende uma luta contra a dispersão.

Durante a graduação, preencher as páginas de um caderno (que se configurou como diário) com as ideias que surgiam na forma de esboços, resenhas de livros, frases e desenhos, era uma alternativa para guardar esse material que me era muito caro. Com o intuito de não perder os projetos (como em uma luta contra a dispersão), tudo ia para o diário. Por estar sempre comigo, ele também passou a ser utilizado para toda e qualquer anotação, coisas de várias procedências, inclusive sem conexão alguma com minhas ideias sobre desenho. Mesmo quando, inicialmente, havia sido empregado apenas para a anotação de ideias e projetos de trabalho, o diário era uma coleção profusa e desordenada de conteúdo acumulado. Gradativamente, essa coleção de ideias e projetos deixou de ser um tesouro para tornar-se um fardo – o que me fez repensar a maneira como trabalhava e como organizava meus espaços de criação.

Do caos ao arquivo

Por que a premência de anotar, coletar, organizar, catalogar e manter um espaço ordenado com pedaços de história, de lembranças e de vivências? Mais do que não perder o material, era preciso que eu obtivesse acesso a ele. No meu entendimento, registrar a informação, mas não conseguir encontrar esse registro é como tê-lo perdido. Documento de trabalho fundamental em meu processo criativo, o Arquivo de Ideias nasceu do desejo de reorganizar este instrumento de registro e guarda. Esse arquivo é a adaptação do precário diário que, devido ao caos e à desorganização, acabava por não satisfazer minha necessidade de ter um objeto físico que, além de guardar e proteger meus projetos, estivesse apto a ser consultado com rapidez e clareza no momento em que fosse preciso.

Mas o que é um arquivo? Jacques Derrida, em seu livro “Mal de Arquivo”, designa arkhê como, simultaneamente, “começo” (ali onde as coisas começam) e “comando” (ali onde a ordem é dada). Do mesmo modo, arkheîon indica casa, endereço, residência dos arcontes (aqueles que comandavam). Segundo o autor, arquivo é designado como algo que não prescinde de suporte, ao contrário, nasce desse “lugar onde os documentos se de-moravam” (DERRIDA, 2001, p.13). O arquivo tem o poder de consignação, não tradicional, mas arcôntico. Este poder se dá no ato de (con)signar (reunindo os signos), unificando, classificando e identificando o objeto ou o documento em um lugar ou um suporte. Nas palavras do autor, “coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal” (DERRIDA, 2001, p.14). Assim, o arquivo está ligado ao domicílio e, em uma abordagem inicial o Arquivo de Ideias é o “lar” dos planos; é, inclusive o arkhê deles, pois é nele que a ordem se estabelece para que seja possível surgir o desenho; ele é o lugar onde os pensamentos moram. E é o lugar onde eles se demoram.

Ângela Pohlmann (2005), em seu artigo “A percepção do tempo na criação plástica” menciona o tempo do trabalho mental, exemplificando que Miró dava importância ao período entre ter a ideia e esta se tornar uma tela, momento este que poderia compreender quarenta anos: “O tempo de trabalho mental, independente desses períodos no ateliê, pode demonstrar o lado avesso deste processo. Às vezes, parece que não está acontecendo nada, mas a mente está em ebulição, atenta, focada, mesmo que o trabalho que está sendo executado mentalmente não apareça imediatamente” (POHLMANN, 2005, p. 85).

 

Em minha pesquisa, esse arquivo (Figuras 1 e 2) deriva do diário de desenhos anteriormente citado e se apresenta como um antigo arquivo de disquetes de computador que se tornou obsoleto com a chegada de CDs, DVDs, pen-drives, memória virtual, etc. Também obsoletos tornaram-se mil cartões de visita que, devido à troca involuntária da numeração de meus telefones residencial e celular, acabei por guardá-los em uma gaveta. Na busca por um suporte mais adequado para acessar minhas ideias, comecei a fazer uso desses cartões (ao invés das páginas do diário) e arquivá-los nesse espaço, estabelecendo uma ordem cronológica – o que me pareceu uma boa solução1. O Arquivo de Ideias não funciona tão racional e ordenadamente como pode parecer (o que, admito, seria muito confortável). Tão pouco minhas listas, organizações e elaborações são imunes aos imprevistos. Indiferente ao suporte, mas necessariamente em um local, o Arquivo de Ideias acabou por instituir uma “lei” e estabelecer uma nova ordem; de certa forma, colocando-se, conforme Derrida, como o arkheîon desse processo. Nesse lugar, o tempo é outro. É o tempo onipresente de Santo Agostinho.

A unidade básica de medida do tempo é o segundo (s) - “o segundo é a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de Césio 133”.2 Santo Agostinho (2004, p. 325) nos confessa que “o tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível. O tempo, para ser estudado na sua metafísica, não se deve dividir no ‘antes’ e no ‘depois’, mas considerar-se na sua síntese de continuidade”.

Podemos encontrar definições de tempo em muitas áreas, porém, analisando essas duas citações, observo que o tempo (e suas dimensões) é uma convenção; existe ou é medido em função da existência das coisas e do que acontece com elas, portanto, entendemos “tempo” porque o relacionamos às coisas que aconteceram, que se sucedem, que virão a ser – “estava atrasada”, “me perco no tempo”, “será fácil concluir” exemplificam que, por vezes, basta o verbo para saber em que tempo estamos. Assim, o verbo também se configura como um elemento constituinte da noção de tempo, pois o medimos a partir das ações ocorridas durante um determinado período. Esses tempos verbais possibilitam a visão da concomitância de tempos. Ele atua como agente transformador de uma intenção e está onipotentemente no presente. Santo Agostinho nos elucida sobre essa onipotência temporal quando diz que “é impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras”. (SANTO AGOSTINHO, 2004, p.328). Meu desenho é concreto, está no presente, mas, ao ligá-lo ao Arquivo de Ideias mantém a latência do momento de surgimento de uma possibilidade de trabalho. Outra característica importante que se dá no processo de criação é o tempo de maturação de uma ideia. No tempo em que ela permanece guardada no Arquivo de Ideias, vai submetendo-se a acréscimos de informações, referências e indagações.

Comumente, o arquivo é associado ao passado, pois pensamos em lembranças, memórias e documentos que merecem posteridade. Derrida (2001, p. 50-51), no entanto, discute o tempo do arquivo:

Num sentido enigmático que se esclarecerá talvez (talvez, porque ninguém deve ter certeza aqui, por razões essenciais), a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos ou não disporíamos sobre o tema do passado, um conceito arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para o amanhã. O arquivo, se queremos saber sobre o que isto teria querido dizer, nós só o saberemos num tempo por vir. Talvez. Não amanhã, mas num tempo por vir, daqui a pouco ou talvez nunca.

O arquivo está, sim, ligado ao passado, porém, apenas preservamos aquilo que queremos que seja visto no futuro. O que estiver no arquivo é o fragmento dos acontecimentos que farão a história, quer seja um documento verdadeiro, quer seja manipulado ou ficcional. O Arquivo contém as anotações do que restou de todo um pensamento que gerou uma ideia, uma parte do passado guardado como fonte de pesquisa. Pensar nessas ideias é pensar novamente no que já foi pensado. No entanto, também é pensar no que ainda está por vir, no que farei com elas, uma alusão ao much future work. O Arquivo de Ideias guarda o material que tratará do futuro, uma resposta e uma responsabilidade para o amanhã. E, complemento com Santo Agostinho, tanto o passado (ideia), quanto o futuro (desenho) pulsam no presente (processo).

Desenhos(-)Diários ou “um desenho por dia, ao menos”

Em 2007, comecei uma pesquisa na Fundação Iberê Camargo. A proposta era organizar e catalogar o arquivo geral do artista e, posteriormente, pensar a respeito do material encontrado e como ele poderia gerar uma reflexão a respeito dos processos, da divulgação ou da inserção do artista no sistema de arte. Esboços, bilhetes, catálogos de amostras de tinta com observações escritas à mão sobre durabilidade da cor, todos os documentos gerados para a compra da famosa prensa alemã de gravura, cardápio com um desenho impresso de Iberê e dedicatória agradecida do dono do restaurante, entre outras coisas, faziam parte do material que tinha em mãos para arquivar. Algumas vezes, não conseguia identificar algum dado de determinado material e conversava com D. Maria, esposa de Iberê, para tentar identificar uma data, circunstância ou relevância. As conversas não eram longas, mas sempre dava tempo de ouvir um detalhe a mais ou uma história sobre o artista. Uma dessas histórias conta que Iberê Camargo tinha horário para começar a pintar, a desenhar e a fazer gravuras (mesmo que não tivesse para terminar). Seguia uma rotina, organizava o tempo (enquanto a matriz de uma gravura estava no ácido, ele subia ao primeiro andar para continuar um desenho ou terminar uma tela). Trabalhava e pesquisava muito e sempre.

Para desenhar, ler e pesquisar, também tenho uma rotina, elejo prioridades, faço listas e organizo o espaço físico. Esses verbos (aqui ilustrados por hábitos) são automáticos, pois faço uso deles, como guias, há muito tempo. Richard Serra, se referindo à exposição Drawing now,3 mencionou que “drawing is a verb”. Concordando com Serra e seguindo este raciocínio, percebo que meus desenhos acontecem através de verbos como exercitar, persistir, experimentar, errar, organizar, refletir, repetir, aprender. Durante a graduação, fui desafiada por um professor a trazer cinco desenhos novos a cada aula. Para cumprir com o desafio, comecei a desenhar mais. Percebi que a cada novo desenho ficava mais fácil e prazeroso o exercício de desenhar e conseguia resultados mais interessantes. Em 26 de maio de 2009, estabeleci a regra de “um desenho por dia, ao menos” e tenho seguido esta regra religiosamente. Os resultados nem sempre são tão interessantes e, mesmo que goste muito de desenhar, por vezes não estou disposta, mas persisto e faço ao menos um desenho. Não tenho a intenção de parar com essa prática; enquanto for estimulante e enriquecedora, continuarei fazendo. Por curiosidade, no dia em que completei um ano dessa prática, revi todos os desenhos feitos e decidi refazer o primeiro. Não é um desenho significativo, mas como que para comemorar mais um ano de desenhos – uma ode à constância – todo dia 26 de maio refaço o mesmo primeiro desenho. Normalmente, esses desenhos são feitos em papéis pequenos (A4 ou menores). Para não os perder, pois são muitos – em 24 de junho de 2014 completei o 2000º, coloquei-os em pastas-arquivo separadas por anos; dentro delas estão armazenados mensalmente em folhas plásticas e colocados em ordem cronológica diária. Além disso, montei um pequeno catálogo em que anoto o que desenhei naquele dia e às vezes, uma ou outra informação que considero relevante.

Vinícius Godoy (2013, p. 89), em artigo para a Revista Valise, parte da premissa de que o desenho surgiu como projeto/estudo para a pintura ou escultura, antes de ter valor por si mesmo:

Duas características exemplificam sua menor importância [do desenho]. A primeira delas é que, considerado a partir de sua qualidade de incompletude, tornava-se ou um elemento de outra obra, como a pintura, ou um objeto para o estudo e a compreensão de obras acabadas, como a pintura ou mesmo a escultura. Surge, assim, o valor documental do desenho – documento que, então, é sempre dirigido ao entendimento de outras obras que não o próprio desenho. A outra característica é a do incentivo do exercício do desenho e de sua aprendizagem por parte de não-artistas, principalmente a partir da publicação da obra de John Ruskin, Elements of drawing, em 1857, em que o autor encorajava o exercício do desenho como forma de educar o olhar, através de sua prática e do estudo e cópia dos mestres do passado. Quanto à pintura, John Ruskin a reservava apenas aos artistas.

Hoje o desenho é autônomo, porém, excetuando-se o tom de menosprezo, essas duas características mencionadas me interessam. Desenhar diariamente, como Ruskin menciona, lapida o olhar, mas também exercita a reflexão. Os desenhos diários são exercícios gráficos, de composição e de experimentação, mas também são desenhos-diário. Assim como documentam a minha prática, também são registros do que o olhar buscou e do que estava à minha volta ou no meu pensamento naquele dia. Deles saem ideias, respostas, novos trabalhos; com essa prática consigo aprimorar meu traço. Para eles retornam as reflexões de um livro, por exemplo. Com eles os esboços vão ganhando, gradativamente, “argumentações” mais substanciais, podendo tornar os documentos de trabalho em trabalho. Além de proporcionar uma produção de mais de dois mil desenhos, desenhar diariamente trouxe um novo item de coleção ao meu espaço de criação – os tocos de lápis (Figura 3) que, mesmo que eu não considere um trabalho em arte, é um registro físico de um processo criativo.



Um acervo processual

O Arquivo de Ideias guarda o primeiro insight, o primeiro pensamento que tive em relação ao que posso fazer, mesmo que posteriormente ele seja abastecido com novos insights referentes ao mesmo assunto. Minha preocupação é a de não me desfazer das ideias que tive e dos pensamentos que surgiram. Ao colocar a ideia no cartão e deixá-la no arquivo, me dou à liberdade de abandoná-la de forma temporária por sabê-la guardada, protegida e acessível no momento que me for conveniente. Ter a intenção arquivada libera a mente para novos projetos sem perder o acesso aos antigos – como se ao colocar o cartão no arquivo estivesse, analogamente, fazendo um backup, uma cópia de segurança de computador e liberando memória para a entrada de novos dados. Desse modo, o cérebro ganha “espaço” para relacionar o que já foi arquivado com todas as outras informações que frequentemente são alimentadas, possibilitando novos projetos. Derrida chama a isso hipomnésia: “o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória”. (DERRIDA, 2001, p.22). Ele sentencia: “O arquivo é hipomnésico. (...) se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte”. (DERRIDA, 2001, p.22-23).

O Arquivo de Ideias se reconfigura, dessa vez, em uma condição de memória infinita de processamentos gráficos – é uma constatação particular de que o projeto pode desenvolver-se infinitas vezes, sob a condição de ter preservado em algum lugar (que não na instável e falível memória humana) seus primeiros conceitos, uma espécie de passo a passo, um manual poético de como fazer aquilo que já foi feito incluindo algumas variáveis. Por outro lado, Umberto Eco (2010), em seu livro “A vertigem das listas” menciona dois tipos de listas: a “lista prática” e a “lista poética”. Ambas são definidas como elencos de objetos e congruentes, mas a lista poética engloba, segundo o autor, uma experiência mental. Eco utiliza-se de Homero para exemplificar uma lista poética. Em sua narrativa, Homero se põe a declamar uma lista com os nomes de todos os capitães de navios e acaba por inventar muitos desses nomes, o que não invalida essa lista; a lista poética continua sendo uma lista referencial, porém de “objetos de um mundo épico” (ECO, 2010, p.112). O que guardo no Arquivo é um fragmento do pensamento inicial. Por mais que eu seja fiel ao que pensei, no momento da escrita ou da coleta dos dados, algumas peculiaridades já se perderam, foram manipuladas acrescentando-lhes novos “nomes” ou se dissolveram dentro da concepção geral de inscrição no cartão/ficha – mas, ainda assim, não deixam de ser objetos de tudo o que pensei.

A ideia pela ideia

Como afirmei no início deste artigo, tenho muitas ideias e nem sempre consigo executá-las no mesmo momento em que surgem. Também realimento um mesmo cartão (do Arquivo de Ideias) com distintas informações, pensando e trabalhando novamente num determinado projeto. De tanto revisitar, realimentar, reorganizar as ideias de um determinado cartão, pode-se ter a sensação de que muito já foi feito. Logo, ao mesmo tempo que o Arquivo se torna um porto seguro para as ideias, pode, igualmente, se tornar uma cilada e impedir que seja materializada. Isso aconteceu durante o período do mestrado: tinha tantas ideias, entrava em contato com tantas referências que acabava por me saturar com esse procedimento e não produzia os desenhos que os cartões sugeriam. Foi uma atitude perigosa. Demorei a perceber que havia parado de desenhar minhas ideias. Porém, não seria suficiente apenas ter a ideia? A ideia pela ideia não se basta? Sempre será necessário fazer o desenho, construir a escultura, formular o conceito, pintar a tela?

Em 1966, Mel Bochner organizou uma exposição na galeria da School of Visual Arts, em Nova Iorque, em que os distintos materiais de vários artistas foram xerografados, organizados dentro de pastas-arquivo e colocados em pedestais (Figura 3). Dessa forma o artista propunha, além de um novo objeto e uma nova definição de autoria, um novo conceito de obra.

Náufrago4 (Figura 4) é um trabalho de 2012, formado por três caixas brancas contendo garrafas com desenhos e uma moldura preta em que se destaca o cartão que contém as ideias que reuni para compô-lo. O trabalho em si não é o foco deste texto, o que interessa aqui é pensar que nesse trabalho o resultado não ficou exatamente como eu esperava. Vindo de uma ideia do Arquivo, quando comecei a desenvolvê-lo, parecia praticamente pronto; porém, ao vê-lo instalado, percebi que o cartão que o compunha trazia uma informação redundante, empobrecendo-o. Essa constatação me fez imaginar que o trabalho sem o cartão seria mais interessante, mas que o cartão, na forma em que estava apresentado, poderia sugerir um trabalho outro. Como as pessoas que viram esse trabalho e que também consideraram a informação excessiva, o teriam resolvido? Qual seria o resultado? Das mais de duzentas ideias que estão listadas em cartões no Arquivo, quais seriam escolhidas?



Cem títulos (Figura 5) propõe uma reflexão sobre essas perguntas e presume que uma ideia, além de conter o trabalho em si (como uma semente contém uma árvore), possa ser o próprio trabalho. É um ensaio sobre a potencialidade de uma ideia. Separando-se de Náufrago, o cartão emoldurado e exposto em composição com outros poderia se revestir de novos significados? Desse modo o documento de trabalho se converteria em obra? Essas perguntas estão longe de serem respondidas, mas tenho algumas suposições. Durante o processo de armazenar, registrar, catalogar, percebo que as possibilidades de criação são potencializadas ao notar que a ideia contida nos cartões, dentro do Arquivo, está segura, pois não se encontra à mercê da falível memória humana – considerando, evidentemente, que nenhum acidente venha a acontecer com o Arquivo. Assim, posso revê-la, realimentá-la, pensar a respeito integrando outras informações a ela. Até o fato de manusear o cartão enquanto releio o que está escrito é um trabalho de pensar no que está na mão. Logo, julgo que todas as imagens que uma pessoa pode ter em seu pensamento ao ler um cartão em que esteja escrito “90/10”, por exemplo, sejam, com efeito, uma obra. Sim? Não? Possivelmente, colocar os cartões em uma moldura e expô-los em uma parede branca de uma galeria ou de um museu, não os torne, necessariamente, uma obra. Talvez possa indicar uma crítica. De qualquer maneira, esse trabalho é um exercício de raciocínio gerado por algumas perguntas para as quais ainda não tenho respostas.

1  Penso que eram dois objetos inúteis que se tornaram documentos de trabalho e que carregam um traço autoral físico significativo, pois meu nome está inscrito no arquivo e em cada um dos cartões.

2  13ª Convenção Geral de Pesos e Medidas – CGPM – Resolução I, 1967/1968.

3  Museu de Arte Moderna de Nova York – MOMA, 1976. Curadoria de Bernice Rose.

4  O quadro acima das três caixas brancas foi retirado desse trabalho, gerando um novo chamado Cem títulos (ver imagem anexa).

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

ECO, Umberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro: Record, 2010.

GODOY, Vinícius Oliveira. O que o desenho nos propicia? In: Revista Valise (publicação on-line - http://seer.ufrgs.br/RevistaValise/index - v.3, n.5), 2013, p. 85-96.

POHLMANN, Ângela Rafin. A percepção do tempo na criação plástica. In: Educação e Realidade, v 30, p. 71-92, 2005.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004.

1 e 2 Arquivo de Ideias.

3  Coleção de Tocos de Lápis utilizados nos Desenhos(-)Diários.

4  Mônica Sofia, Náufrago, 2012, Garrafa, nanquim, grafite, pastel oleoso e seco sobre papel. Dimensões variadas..

5  Mônica Sofia, Cem títulos – recorte, 2013, Composição de 10 quadros de 11 x 15 cm e 2 de 30 x 40 cm.