Somente o clamor assíduo criado pela repetição pode nos transmitir o que só aconteceu uma vez. O imaginário não é formado em oposição à realidade como sua recusa ou compensação; ele cresce entre signos, de livro para livro, no interstício de repetições e comentários; ele nasce e ganha forma no intervalo entre livros. É o fenômeno da biblioteca. (FOUCAULT, 1977, p.90-91, tradução da autora).
Pilhas labirínticas de livros formando um quadrilátero eram vistas logo após a entrada da galeria Whitechapel, em Londres. Dispostas em uma combinação de prateleiras que iam do chão ao teto, publicações em diversas línguas, temas e formatos ocupavam quase toda a sala. Tal como em uma biblioteca, estavam lá ao alcance dos visitantes. Um dos lados se abria para uma estrutura menor na parte interior, onde objetos científicos, gravuras e livros raros eram exibidos lado a lado em armários protegidos por vidros – uma recriação de um gabinete de curiosidades. No alto, uma combinação de dois espelhos, junto a uma luz florescente, reproduzia a instalação em uma perspectiva infinita e em múltiplas camadas.
A obra Continuum of Repair: The Light of Jacob’s Ladder (Reparação em continuum: a Luz da Escada de Jacob), exibida entre novembro de 2013 e novembro de 2014, foi criada pelo artista franco-argelino Kader Attia especialmente para aquela sala, onde funcionava a biblioteca da galeria. O nome da obra refere-se a uma história presente no livro dos Gênesis sobre uma escada imaginada por Jacob durante um sonho, interpretada como uma ligação entre o mundo material e o espiritual. Mas entre outras referências, Attia também discute o conceito foucaultiano sobre a acumulação de conhecimento como sinônimo de poder (FOUCAULT, 2002), além de ser um colecionador de livros e um entusiasta de suas propriedades materiais.
Nesse ambiente híbrido entre uma biblioteca e uma galeria de arte, as torres de livros parecem evocar também outra ideia de Foucault: o fenômeno da biblioteca. O imaginário associado a esse espaço já apareceu diversas vezes na literatura. Do “discurso do medo” presente em O Nome da Rosa, de Umberto Eco (RADFORD; RADFORD, 2001), ao espaço infinito pensado por Jorge Luis Borges (2000) no conto ‘Biblioteca de Babel’, tal fantasia tem sido uma referência constante em diferentes épocas e culturas. Mas o que tal obra sugere é que o mesmo tema tem aparecido também na arte contemporânea.
Neste artigo, pretendo discutir como o imaginário da biblioteca, a materialidade do livro e o colecionismo são questões presentes na instalação de Kader Attia. Exibidos nas galerias de arte nos mais variados formatos, esses livros-esculturas ou livros-objetos raramente permanecem os mesmos do que eram, originalmente, nas bibliotecas. Utilizando a instalação de Attia como exemplo, vou discutir um novo tipo de engajamento com esses objetos, que perdem sua propriedade verbal para serem exibidos como objetos visuais.
Por fim, também vou relacionar o envolvimento de Attia com a ideia de reparação. Inspirado no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e nas teorias do anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon, ele vem explorando tal conceito em diversos trabalhos, um processo definido como “um exercício infinito de troca entre culturas” (AMADO; ATTIA, 2013). Aqui, tal prática será apresentada em relação ao processo de remediação do livro, entendido por Jay David Bolter e Richard Grusin como “a representação de um meio em outro” (BOLTER; GRUSIN, 1999, p. 45, tradução da autora).
Fantasia da biblioteca e a arte e seu arquivo
Um dos aspectos mais interessantes da instalação Continuum of Repair é a justaposição de duas práticas tão comuns no século XVIII: a coleção de livros e a controversa acumulação etnográfica que caracterizava os gabinetes de curiosidades. Vistos como precursores dos museus, os chamados “quartos das maravilhas” são representados na parte interior da instalação. A maior parte dos objetos exibidos nas vitrines fazem referência a investigações científicas, como telescópios e outros instrumentos de medidas, demonstrando o desejo tão em voga de exibir conhecimento. Mas também há lugar para objetos como fotografias, livros raros e reproduções de pinturas e gravuras, muitas sobre a história bíblica da escada de Jacob, tema da instalação.
A inter-relação entre bibliotecas e museus tem sido uma questão bem presente desde o início da era moderna. Classificados por Foucault como exemplos de heterotopias, espaços que “sempre pressupõem um sistema de abertura e fechamento que os isolam como os tornam penetráveis” (FOUCAULT, 2002, p.235, tradução da autora), as duas instituições têm em comum o fato de serem lugares fora das configurações habituais de tempo e espaço, compartilhando “a ideia de acumulação de tudo, de estabelecer um tipo geral de arquivo, um desejo de reunir todos os períodos em um único lugar” (FOUCAULT, 2002, p.234, tradução da autora). Museus e bibliotecas, de acordo com Foucault, representam uma característica muito particular da modernidade na cultura ocidental, especialmente no século XIX.
Algumas dessas ideias também estão presentes em seu ensaio A Fantasia da Biblioteca, publicado originalmente em 1967. Apesar do tema principal ser a análise literária do livro As Tentações de Santo Antão, de Gustave Flaubert, Foucault também examina como a biblioteca já foi evocada na literatura. Mas na obra de Flaubert, ao contrário de outros exemplos, há poucas referências diretas a tal espaço. A principal associação com a biblioteca aparece na estrutura do romance, um “monumento à erudição meticulosa” (FOUCAULT, 1977, p.89, tradução da autora), em que a fantasia não é só um produto da imaginação, mas “a simples transcrição de documentos” (FOUCAULT, 1977, p.104, tradução da autora).
O argumento principal de Foucault é que a história do romance, supostamente um produto da imaginação do autor, é construída a partir de referencias concretas retiradas de livros. Ele apresenta, inclusive, uma extensa lista de obras usadas por Flaubert como fonte – de Spinoza aos quatro volumes da História Crítica do Gnosticismo, de Jacques Matter (FOUCAULT, 1977, p.89). Ao inserir tais referências na trama principal, expondo-as como parte de um conhecimento que todo “homem de letras” deve ter, Flaubert cria uma obra inteiramente condicionada ao seu passado. Como Foucault aponta, “pode parecer apenas um livro qualquer para ser colocado na prateleira junto com os outros, mas ele serve, na verdade, para ampliar o espaço que livros já existentes podem ocupar” (FOUCAULT, 1977, p.91, tradução da autora).
Se A Tentação de Santo Antão é classificado por Foucault como o primeiro “livro-biblioteca”, duas pinturas de Édouard Manet (Déjeuner sur L’Herbe e Olímpia) são citadas como exemplos de obras que também carregam a história de sua instituição. Propondo mais um paralelo entre a biblioteca e o museu, Foucault atesta que Flaubert e Manet inauguraram esse tipo particular de arte:
Flaubert é para a biblioteca o que Manet é para o museu. Ambos produziram trabalhos em uma relação de autoconsciência com pinturas ou textos anteriores – ou ainda ao aspecto na pintura ou na escrita que permanece indefinitivamente aberto. Eles construíram sua arte junto com o arquivo. (FOUCAULT, 1977, p.92, tradução da autora).
Tais ideias são bastante apropriadas para analisar a instalação Continuum of Repair, que traz não somente uma consciência própria das duas instituições, mas se refere diretamente ao passado de ambas: enquanto a história do museu aparece na recriação do gabinete de curiosidades, o “fantasma da biblioteca” (ATTIA, 2014b) ganha vida novamente nas pilhas de livros. Apesar das duas estruturas estarem separadas, há alguns pontos de conexão entre elas, como se o universo da ciência, das artes e da fé não fossem tão independentes um do outro naquela época.
Pelo vidro do gabinete, pode-se ver uma edição de Discurso Sobre o Método, de René Descartes, impresso pela Biblioteca de Ciências Religiosas, em 1637, exibida junto a gravuras da escada de Jacob recriadas por diversos artistas ao longo da história. A justaposição de objetos de categorias variadas continua com o retrato do filósofo francês ao lado de uma foto de um homem negro, enquanto o livro sobre ciência islâmica escrito em francês é visto próximo a manuscritos em árabe. A capa de uma revista sobre o eclipse solar próxima a um microscópio e um telescópio acoplados, como se fossem um único instrumento, reforça a predominância do tema científico, embora outros assuntos também tenham lugar nessa miscelânea.
Por trás da sobreposição de tais itens há também um discurso crítico relacionado ao pós-colonialismo e às reapropriações culturais entre o mundo ocidental e o oriental – temas recorrentes na obra do artista. Nascido em uma família de imigrantes argelinos e criado no subúrbio de Paris, Attia sempre viveu entre os dois mundos. As viagens ao Magrebe, no norte da África, durante a infância, ajudaram a despertar seu interesse pela cultura islâmica. Mais tarde, ele também morou na Venezuela e na República do Congo, aproximando-se ainda mais da cultura de países periféricos.
A forma como a produção de tais regiões é pouco ou mal representada em museus ocidentais já foi mencionada por Attia em um artigo para a Artforum, quando criticou o fato de uma exposição em Paris sobre as influências artísticas de Picasso não ter incluído nenhum artefato africano (AMADO; ATTIA, 2013). E é sob esse viés que a biblioteca e o museu são apresentados na instalação Continuum of Repair. Ambas as instituições são vistas como ferramentas de controle que reproduzem e contribuem para definir um discurso predominante – e, muitas vezes, opressor – tanto na ciência como na cultura.
Livro como objeto material e reparação
Apesar do discurso crítico sobre o poder de tais instituições, Attia demostra também uma visão positiva e certo entusiasmo pela ideia do colecionismo, especialmente em relação à biblioteca. Isso fica claro em um vídeo em que fala sobre o trabalho, deixando transparecer certo discurso nostálgico das propriedades físicas do livro:
A presença dessas enormes prateleiras cobertas de livros evoca o fantasma da biblioteca da Whitechapel, mas é definitivamente [...] uma referência ao fantasma da modernidade. Porque hoje livros não existem mais. O conhecimento hoje é disseminado pelas mídias digitais [...] Essa ideia de fazer uma instalação com livros de verdade, materiais que você pode pegar [...] é uma ideia de reencenar a importância do conhecimento para a modernidade. (ATTIA, 2014b, tradução da autora).
Interessante observar como sua descrição do livro parece exaltar as propriedades materiais de tal objeto, referindo-se a eles quase como uma pessoa de verdade, que se pode tocar e pegar. Quando fala sobre o “fantasma da biblioteca”, Attia também faz referência à antiga função daquele espaço. Mas ao afirmar que os livros deixaram de existir no mundo digital, parece se referir também ao fantasma deste próprio objeto. Para ele, o livro só existe em sua materialidade – um entendimento que contraria, por exemplo, a visão de Foucault apresentada em A Arqueologia do Conhecimento, mencionada pelo artista como uma das referências da instalação (ATTIA, 2014a):
Por mais que o livro se apresente como um objeto que se pode segurar na mão, por mais que ele se reduza a um pequeno paralelepípedo, sua unidade é variável e relativa. Assim que a questionamos, ela perde sua evidência; não se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de discursos. (FOUCAULT, 2002, p.26, tradução da autora).
Se, por um lado, Attia cita os conceitos de Foucault sobre a construção do poder pela acumulação do conhecimento, ele também parece ter uma visão pouco reflexiva em relação ao livro como um objeto que também é definido pelo poder do discurso. Ao se referir ao livro impresso como “livros de verdade”, o artista não leva em conta o que Foucault diz sobre sua unidade relativa, que é propagada no campo do discurso.
Se pensarmos nas definições de Garret Stewart apresentadas no ensaio Bookwork as Demediation (Trabalho em livro como contra-mediação), os livros apresentados na instalação são exibidos de forma bem tradicional. Não são, por exemplo, destituídos de sua função principal no processo de remediação: não aparecem alterados e expostos como livros-esculturas ou livros-objetos, como acontece em muitos casos de livros usados como meio por artistas visuais.
No entanto, apesar de permanecerem o mais próximo possível de suas funções originais, eles ainda “sacrificam o texto em favor do altar autoimposto – a redutora superfície material – da forma geométrica” (STEWART, 2010, p.410, tradução da autora). Tal aspecto ficava claro com um aviso informando aos visitantes que não podiam se deslocar com os livros para longe das prateleiras. Dessa forma, apesar de, oficialmente, ser permitido manuseá-los, não era a proposta da instalação que os livros fossem retirados dali por muito tempo, tornando a experiência de leitura quase impossível.
É importante apontar que Attia é também um entusiasta do livro como artefato – a maioria dos volumes exibidos pertence a ele.1 Em um vídeo em que o artista aparece arrumando sua própria coleção nas prateleiras da galeria, é impossível não se lembrar do entusiasmo de Walter Benjamin no ensaio “Desempacotando Minha Biblioteca”, quando descreve a poderosa sensação de possuir tais objetos, “a mais profunda relação que o homem pode ter com objetos” (BENJAMIN, 2009, p.171).
Em outro trecho, Benjamin fala sobre o desejo do colecionador de “transformar um mundo antigo em novo novamente” (BENJAMIN, 2009, p.163). Tal descrição também se aproxima do fascínio de Attia em se apropriar de artefatos ritualistas que seriam destruídos para usá-los em outros contextos, prática que faz parte do chamado processo de reparação.2 Um dos conceitos mais importantes na obra do artista, a reparação é inspirada em uma ideia do filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), para quem a propriedade era considerada roubo. A ‘canibalização’ da cultura europeia proposta por Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico é outra referência para o artista.
Embora a ideia da reparação tenha surgido a partir de reflexões políticas, referindo-se a injustiças históricas cometidas pelo Ocidente contra países de regiões periféricas, Attia também usa o conceito em um sentido material e estético. Para ele, os readymades de Duchamp também são um ato de reparação, por exemplo.3 Dessa forma, é interessante pensar em tal prática em relação à transformação do livro. A associação material é a mais imediata – assim como os readymades, eles também foram reapropriados pelo artista e apresentados em um novo contexto, ganhando novos significados.
Mas também é possível considerar a reparação do livro sob um ponto de vista político, que se aproxima do sentido de reparação histórica. Basta lembrar a frase do artista mencionada, anteriormente, sobre a ameaça de tal objeto deixar de existir no mundo imaterial das mídias digitais. Nesse sentido, a biblioteca infinita exibida na instalação também pode ser lida como uma celebração de algo que foi destruído pela história. As previsões pessimistas de Attia sobre o fim do livro são traduzidas nessa obra como uma forma de resistir ao inevitável processo de desaparecimento.
Conclusão
Neste artigo, procurei demostrar como a fantasia da biblioteca e a valorização das propriedades materiais do livro podem ser observadas na instalação Continuum of Repair, do artista franco-argelino Kader Attia. É interessante pensar, também, de que forma algumas ideias nostálgicas sobre tal objeto ainda parecem predominar quando o livro é transferido para o espaço da galeria – um fenômeno que Stewart atribuiu ao “pôr-do-sol da hegemonia da impressão” (STEWART, 2010, p.419).
Apesar de ser arriscado categorizar a função dos livros na instalação analisada, podemos eliminar algumas possibilidades. Mesmo que o formato da obra e as instruções para manusear os livros não permitam que o visitante tenha uma experiência de leitura, tal ato não é exatamente restrito, como acontece em vários trabalhos com livros em galerias de arte. Nesse sentido, a obra de Attia se aproxima mais do processo de remediação do que da anti-mediação, na qual “o livro não está mais sujeito nem mesmo a leitura” (STEWART, 2010, p.412).
Reapropriados pelo artista – no sentido literal e abstrato, já que ele também já possuía os livros antes – eles certamente não continuam os mesmos do que eram nas prateleiras de uma biblioteca. No entanto, a memória do que foram antes continua presente. Combinado ao fato de que eles são apresentados de uma forma tradicional – ou seja, não muito diferente de como estariam em uma biblioteca – o imaginário desse ambiente se faz bastante presente. Isso acontece mesmo que a intenção do artista tenha sido fazer uma representação crítica do colecionismo como uma forma de exibir conhecimento.
Das prateleiras para as galerias, o “clamor criado pela repetição”, como descrito por Foucault é bastante presente na instalação de Attia – tanto no processo do continuum de reparação como na perpetuação da fantasia da biblioteca (FOUCAULT, 1977, p.90-91). A repetição infinita produzida no reflexo dos dois espelhos não poderia ser mais apropriada.