A subjetividade implicada na palavra “arte” afastou, nos últimos séculos, qualquer aproximação que o campo da criação pudesse estabelecer com o campo da ciência. Esses dois universos, antigamente quase indiscerníveis, caminharam juntos nos tempos de Fibonacci, Da Vinci e Brunelleschi. Quando Baudelaire tentou despistar a fotografia do círculo cultural, alegando que maquinários racionalistas não combinavam com o terreno “puro” das artes, ele sugeria que a objetividade presente nos procedimentos ópticos, químicos e mecânicos não poderiam se equivaler aos fatores mentais e manuais relativos à criação humana. Para ele, e outros além dele, arte não combinava com ciência.
No entanto, não foi isso o que a história consagrou. Descobriu-se, com o tempo, uma máquina de aprisionar sensações, de eternizar visões apreendidas e de refazer novos instantes. Uma vez entendido que a máquina, manipulada pelo homem e por sua sensibilidade, existe muito além da técnica e de seu disparo automático, foi possível perceber nela sua dimensão social e seu vetor poético, passível de recortes e reconstruções de realidades e geração de sentidos. Algo, por si só, bastante próximo do raciocínio artístico. Hoje, a arte contemporânea fideliza parceria com a interdisciplinaridade. Engenhocas e aparelhagens começaram a ser bem vistas. A cultura visual contemporânea decidiu abraçar a máquina, aceitou apropriar-se de outras ciências, concordou em beber de procedimentos metodológicos de outras áreas e gerar reflexão sobre outros campos. Recentemente, a arte, atrelada ao conhecimento humano, também tem permeado noções exatas.
Maura Grimaldi, artista brasileira de São Paulo, trabalha na fronteira entre ofícios. Mune-se de uns para dar sentido a outros. É fotógrafa, mas ao mesmo tempo é um pouco engenheira, um pouco química, um pouco astrônoma, um pouco arquiteta. Nesse repertório de curiosidades, atrelou sua atividade artística a um pensamento multimídia e reuniu em um mesmo campo de estudo a conjuntura da imagem e o dos aparatos que a criam. Seu interesse pelos dispositivos visuais vem em função do desejo de discutir os processos de formação de uma imagem, bem como seu conceito e suas estratégias de apresentação. Para investigar essas esferas, a artista mergulha em experimentos sobre diferentes equipamentos; a máquina de projeção e suas linguagens técnicas assumem protagonismo em seu estudo sobre visualidade.
Lembro-me muito das minhas conversas com o professor e artista João Luiz Musa sobre a dimensão da técnica dentro de um trabalho artístico. Para ele, aprimorar-se na técnica tinha a ver com afinar o seu domínio também científico e emancipar-se para escolhas poéticas mais pertinentes, pois é apenas no momento em que se compreende o funcionamento de uma determinada linguagem que se pode interferir em suas operações para alterá-la e melhorá-la (GRIMALDI, 2015).
Nesse sentido, ir a fundo no universo da máquina, saber dominá-la, dissecá-la, diz respeito a aprofundar-se sobre ela no intuito de compreender o seu papel e sua funcionalidade dentro de um contexto de elaboração artístico e, ainda, sincronizar e potencializar sua possibilidade imagética em relação ao conceito criativo estabelecido. Ao fim e ao cabo, a forma como uma imagem é apresentada também pode desencadear sentidos.
Em seus projetos, Maura dialoga projeção com imagem projetada. Além disso, ultrapassa a camada poética que o trabalho propõe e avança rumo a uma avaliação filosófica sobre visualidade e conceituação. É possível uma imagem falar sobre imagem? Como agregar significados a partir de interferências externas a ela própria? É nesse espírito de metalinguística e de circularidade que a artista embasa muitos dos debates existentes em sua produção. Na série Experimentos com a imagem projetada (2014), trabalho realizado durante o programa de residência do JA.CA – Jardim Canadá Centro de Arte e Tecnologia em Minas Gerais, Maura buscou o registro de uma paisagem que sucumbe frente ao império da mineração. Ao observar a geografia mineira dissecada pelos rasgos da exploração do minério, que apaga montanhas e redesenha toda conjuntura natural da região, a artista imerge em experimentos sobre essas documentações, intervindo fisicamente nas imagens obtidas do panorama visual de Minas Gerais. Ao perceber essa paisagem em processo de desaparecimento, Maura propõe a mesma ação perante os registros fotográficos.
Uma das experiências era justamente projetar em slide a imagem de uma montanha até que essa desaparecesse. Na medida em que o projetor permanecia ininterruptamente ligado, o calor e a luminescência provocavam uma deterioração na película fotográfica, fazendo com que a imagem em um primeiro momento tivesse o seu campo cromático drasticamente alterado, e então iniciasse o seu processo contínuo de apagamento. Me interessa pensar que o mesmo instrumento (projetor) que faz com que a imagem sobreviva é o mesmo dispositivo de sua destruição. Me interessa pensar, igualmente, que são imagens que levam consigo uma presença fantasmagórica e muito frágil. (GRIMALDI, 2015).
Essa retórica tautológica entre imagem e projeção, que por vezes insurge das obras de Maura Grimaldi, também pode ser percebida em algumas de suas produções anteriores. Em Do outro lado: como enxergar a lua do hemisfério sul no hemisfério norte? e Do outro lado: como engrandecer uma pedra?, a partir de lentes que alteram a assimilação volumétrica do espaço, as obras se dispõem a responder essas indagações a partir da fotografia ou a partir de pequenas instalações que destacam possíveis relações existentes entre uma matéria e sua projeção; entre realidade e percepção. Com esse raciocínio, nota-se que a forma como se vê um determinado corpo ou objeto pode provocar alterações neste mesmo corpo. Nesse instante, nosso olhar, já viciado pelo tempo e pelo costume, é acordado por aparatos que estimulam sutilezas óticas e que apontam novas perspectivas para se assimilar o nosso entorno. Os procedimentos visuais apresentados por Maura, associados diretamente ao território da pesquisa fotográfica, nos lembra do que Benjamin chamou de “inconsciente ótico”, em outras palavras, aquilo que o olhar humano não é capaz de fixar, mas que a técnica torna visível, revelando novas dimensões da realidade. “A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente” (BENJAMIN, 1985, p. 94).
Mas se a nossa visão percorre de forma inconsciente, pecando ao deixar escapar circunstâncias externas, o que mais poderia ser percebido ao nosso redor? Como gravar o invisível? Lidar com o universo da reprodução visual implica em investigar os conceitos de realidade e irrealidade, de presença e ausência, que se encontram sempre presentes no espectro da imagem. Para Maura, projetar um dispositivo é fazer surgir uma presença fora da matriz, “é fazer surgir a existência fora do corpo”. Real, virtual? Não sabemos ao certo. “Se um fantasma pode ser entendido igualmente como uma forma fora do corpo, toda imagem levaria consigo uma carga fantasmática” (GRIMALDI, 2015).
Durante sua residência no projeto Red Bull Station, a pesquisa da artista voltada à exploração da dimensão do invisível culminou em uma investigação sobre o espiritismo. Se a linguagem fotográfica, de tempos passados, era uma técnica atrelada exclusivamente a um discurso científico e racional, já que era obtida por um processo automático, do qual, supostamente, estaria ausente qualquer marca de subjetividade, hoje, essa premissa cai por terra. Atualmente, a fotografia põe em questão sua objetividade ao se debruçar sobre esses temas. O resultado fotográfico perde seu estatuto de verdade incontestável, de “apresentação do real” e se permite evocar outras reflexões sobre o campo da visibilidade. Para Margarida Medeiros (2010), a fotografia dedicada ao espiritismo atua como um indício laboratorial e experimental, para que a ciência do paranormal possa ser imposta ou, ao menos, considerada, a partir da constituição de um sistema de verdade, de prova, de “apoditicidade”. A autora ressalta essa estranha funcionalidade da imagem fotográfica, já que a história da fotografia começa na captação técnica do visível, e se estende, atualmente, como possível prova do invisível (p. 61-62). No projeto proposto por Maura, essas questões vêm à tona. Ao examinar uma dimensão do mundo (supostamente) não aparente, a fotografia assume-se, assim, como evidência de um mundo impalpável.
Esses questionamentos voltados à veracidade das imagens rondam sua poética. Seus trabalhos nos mostram como sintonizar matéria e conceito; como articular a impressão de uma visualidade às suas próprias problemáticas, a partir do entrosamento entre diferentes campos do conhecimento. Maura Grimaldi é fotógrafa, mas em vez de documentar percepções, ela as interroga, interfere nelas, promove dúvidas, gera inquietações. Adentra universos científicos para dar luz à subjetividade. Propõe algo interessante, a humanização de maquinários junto com a racionalização do pensamento criativo.