O processo de ocupação das terras e registro dos reinos vegetal, animal e mineral na colônia portuguesa, realizado por viajantes naturalistas, fornecem riquíssimas fontes escritas e pictóricas que permitem narrar uma história da natureza. Seus relatos, ao longo de quatro séculos, testemunham uma nova natureza estranha aos europeus; desvelam costumes, representações geográficas e sociais das terras coloniais, e nos mostram as relações existentes entre arte e ciência naquele período.

Uma das primeiras experiências de documentação da natureza da colônia brasileira se dá em 1555, quando, na baía de Guanabara, fixa-se uma colônia francesa chefiada por Nicolas Durand de Villegagnon, com os geógrafos André de Thevet e Jean de Léry, que produziram obras geográficas significativas para o estudo da flora e da fauna do lugar. Em 1630, com a chegada dos holandeses, comandados por Maurício de Nassau, à Capitania de Pernambuco, estão os artistas Albert Eckhout e George Marcgraff, além de geógrafos, médicos, engenheiros, geômetras e botânicos, que se estabelecem na região.

Nesse percurso, a história natural ilustrada por desenhos, aquarelas e gravuras torna-se disciplina aliada à exploração de terras além-mar. Desde o século XVII, nota-se a presença de pensadores como Galileu, Descartes, Huygens, Leibniz, Boyle, Hooke, Fermat e outros, tornando esse um período no qual a investigação científica é tida como ferramenta para o progresso material e intelectual das nações. À época, diversas academias científicas são criadas: Collegium Naturae Curiosum, na Alemanha-Schweinfurt (1651); Accademia del Cimento, em Florença (1657); Royal Society, em Londres (1660); e Académie des Sciences, em Paris (1666). Os registros gráficos, pictóricos e literários realizados por religiosos, naturalistas, artistas e cientistas de diversas nações, entre elas Portugal, Holanda, França, Áustria e Alemanha, são motivados pelos objetivos de desbravar terras inóspitas, explorar as riquezas naturais do Novo Mundo e coletar informações sobre seus habitantes, sua fauna e flora. Porém, sua contribuição relata, sobretudo, o olhar exótico que esses viajantes guardam para as novas terras – na confluência desse processo histórico está uma nova postura frente à ciência e à arte que engendra a concepção desses viajantes.

Historicamente, a emergência das academias de ciências envolve a reunião dos homens mais notáveis dispostos a auxiliar suas nações em questões que envolvem ciência, técnica, economia, meteorologia, solos, fauna, flora, entre outros assuntos. “Congregações do saber”, a notoriedade e o desempenho dos membros das academias científicas afirmam a hegemonia e o progresso de uma nação. E, simultaneamente, no campo artístico, os primeiros raios do neoclassicismo buscam o rigor e a técnica no traço do desenho e na representação da natureza.

Gradativamente, em Portugal, o interesse pelas ciências da natureza torna-se mais denso com a criação da Academia das Ciências de Lisboa, fundada em 16 de janeiro de 1780. A Academia das Ciências de Lisboa está no cerne das ações que assinalam a adesão do Império Português às ciências e marcam as investigações em torno da história natural nos territórios do Reino e do Ultramar, particularmente a partir da segunda metade do século XVIII. Ações coordenadas pelo governo português mobilizam dezenas de naturalistas, muitos deles nascidos nas próprias colônias da América Portuguesa, da África ou da Ásia – representantes “das luzes”, empenhados na tarefa de estudar as possibilidades de desenvolvimento dos setores agrícola e minerador. A Instituição tem como missão livrar os cientistas lusitanos do obscurantismo, da teologia e da metafísica, revelando a natureza através da razão que, por sua vez, proporciona a secularização da ciência. Seu objetivo é promover o Estado português e sua economia, retirando a população de um isolamento filosófico, pedagógico e científico por muito tempo instituído. Nas artes, Portugal sai do período pombalino que marca, sobretudo, a arquitetura, e recebe as luzes do neoclássico por volta de 1770.

Em terras brasileiras, os membros da Academia das Ciências de Lisboa se empenham na exploração de recursos naturais centrados em metais e pedras preciosas, porém, a descoberta e o inventário da fauna e da flora das terras ultramarinas se tornam algo extremamente relevante para os interesses da metrópole, que aposta numa ocupação do território que sai do litoral e adentra pelo interior e pelo sertão da colônia. O registro da flora, particularmente a catalogação de plantas medicinais, está presente na literatura que aborda as expedições científicas que circundam o rio São Francisco desde o século XVI. A fármaco-botânica recebe atenções de Gabriel Soares de Souza (1560), de Guilherme Piso (1648) e de Jorge Marcgrave (1648) – os dois últimos sob o patrocínio de Maurício de Nassau.

Entre 1783 e 1792, o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira e os ilustradores José Joaquim Codina e José Joaquim Freire realizam a Viagem Filosófica ao Amazonas. Contemporâneo a essa aventura pelo Amazonas, Francisco Antonio Sampaio, chamado por muitos estudiosos como o "gênio naturalmente curioso", português, autodidata em “medicina, cirurgia e farmácia”, estabelece-se em Cachoeira, no sertão baiano.

A região do sertão do rio do São Francisco, onde atua Francisco Antonio Sampaio, é percorrida por naturalistas que buscam, nos elementos naturais, produtos para o comércio, os muitos tipos de exploração, ou a simples observação científica. Em suas folhas de viagem, registram-se tatus, onças, capivaras, preguiças, mutuns, veados, emas, jacus, ananases, mandiocas, sapucaias, caraguatás, ingás e jaborandis (LOSADA, 2013, p. 268). Essas narrativas dos viajantes ilustram os debates que envolvem o naturalista francês Conde Buffon e o cientista sueco Carolus Linnaeus sobre a nomenclatura científica. Os estudiosos deixam importantes contribuições para a história da História Natural e o seu desenvolvimento na Biologia atual. Carolus Linnaeus, ou simplesmente Lineu, é responsável pelo primeiro sistema de classificação de plantas por gêneros e espécies. Lineu, em sua obra Systema naturae, classifica os “reinos naturais”. Ao passo que Buffon cria as bases teóricas da Geologia e Paleontologia, ambas de extrema relevância para a Biologia. Nesse período histórico, as informações sobre os seres vivos no mundo conhecido dependem dos pioneiros viajantes que se arriscam nas florestas e lugares inóspitos para a coleta de espécimes e observação dos seres silvestres.

Já os naturalistas que se dedicam a representação do sertão brasileiro vivem “o sertão-ambiente e o sertão-cultura, entrelaçando-se simbioticamente em paisagens, mapas, desenhos, livros e fotografias que descortinam as terras chamadas sertanejas” (LOSADA, 2013, p. 265). Geralmente, na escrita dos relatos, o emprego simultâneo de desenhos é prática desejável e função de ofício de muitos viajantes, entre os séculos XVI e XVIII. Eles trazem consigo conhecimentos que mesclam as tradições greco-latinas, escolástica e empírica. Nesse quadro, o desenho e a gravura tornam-se, cada vez mais, importantes instrumentais para a pesquisa dedicada às novas espécies de plantas e de animais. Aqui, assinala-se que o desvelar da fauna e da flora alcança a sociedade moderna por meio do registro artístico minucioso realizado por esses viajantes.

As relações existentes nesse período entre arte e ciência residem no traço apurado e descritivo dos espécimes aliado à sensibilidade do desenho preocupado com a fidelidade ao real – a mimese. No resgate da memória e da trajetória desses viajantes, arte e ciência se entrelaçam no exercício do conhecimento. Nesse esforço por anotações precisas, Francisco Antonio Sampaio desenha a flora e a fauna brasileira, compondo uma História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral do Brasil pertencente à Medicina (Tomo 1, 2, e 3, Bahia, 1793) para a Academia das Ciências de Lisboa. Nessa obra, o naturalista faz diversos desenhos e descreve 104 espécies de animais, aves, mamíferos, peixes, insetos e moluscos. Na figura 1, por exemplo, observa-se um inventário de aves e ovos, claramente enfatizando os tamanhos e as cores dos pássaros, no entanto, percebe-se a estranheza das cores selecionadas para os ovos.

Em seu exercício de registro, Sampaio evidencia que entre o “sertão-ambiente” e o “sertão-cultura”, a fauna e a flora brasileira surgem como aporte utilitário da metrópole; aparecem como uma paisagem natural descrita por meio de relatos grandiosos, cercado pelo “olhar exótico” e romântico, no qual se intrica o culto à nação. No seu relato, por exemplo, o tamanduá-bandeira, observado na figura 2, é descrito como um bicho do tamanho de "um grande cão", "com cauda comprida e coberta de cerdas como os esquilos" e "cabelos grossos como os de um cavalo". Além de explicar as funções de sua língua "longa e elástica", nota-se que o naturalista emprega o léxico europeu para recompor uma imagem de um animal encontrado no sertão. Para seus contemporâneos, radicados em Lisboa, a descrição de viajantes, como Sampaio, significa a única possibilidade de conhecimento desse animal estranho à paisagem europeia, como o exemplo da figura 3, onde o artista coloca a imagem de um tatu – animal completamente estranho à fauna europeia. Ao mesmo tempo, a descrição e a classificação desse espécime se dá como a posse de algo que pertence, agora, à nação portuguesa.



Como homem de ciência e arte dos setecentos, Francisco Antonio Sampaio vive dificuldades impostas ao Brasil do século XVIII, dominado pelo governo e pelas ideias do ilustrado mundo português. O isolamento geográfico e os poucos povoamentos existentes distanciam o sertão da presença constante da metrópole. Porém, quando surgem por lá representantes da administração ultramarina, "prendendo, sequestrando e extorquindo dinheiros avultados", o naturalista sente a força das relações de poder que articulam a colônia e motivam um rigoroso inventário de riquezas para a metrópole. Em Vila Cachoeira, o médico mais próximo fica "a 14 léguas por mar e mais de 30 por terra". Nessa condição, Sampaio faz às vezes de médico e é multado como charlatão. Isso porque Sampaio atrela seus conhecimentos científicos aos saberes da terra, empregando ervas medicinais e métodos populares (CAMARGO, s.d.).

Frente ao poder régio, Sampaio passa a se denominar como "geógrafo". Mesmo cerceado pelo erário lusitano, Sampaio insiste em mostrar à metrópole os recursos naturais da colônia, preparando sua obra História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral, em três tomos. Sampaio se dedica ao estudo de suas plantas e de seus animais a partir de um olhar que leva em conta o espécime que encontra em sua região e o método científico de Lineu. No mundo da experiência, Sampaio se apropria das “luzes da razão”, do saber clássico, para auxiliá-lo na sua produção e construção de um sertão, que aos seus olhos, deveria ser valorizado pela metrópole.

Nessa empreitada, Sampaio envia seus originais coletados para Lisboa em caixotes, e aguarda até oito anos para obter a confirmação de que as remessas teriam chegado ao destinatário. Os entraves políticos da ilustração portuguesa são significativos para a notoriedade do trabalho de Sampaio. Apesar de o naturalista organizar a coleta de espécimes e fazê-la chegar a Lisboa, ele não consegue dar continuidade ao estudo das peças enviadas. Esses desenhos e documentos se tornam repositórios quase únicos do esforço científico de uma época. A lentidão no reconhecimento das contribuições de Francisco Antonio Sampaio marca sua obra, que foi recolhida às coleções particulares, arquivos públicos ou anais bibliográficos. Sua produção tarda em ganhar significado entre seus pares. Seus desenhos e textos levam mais de dois séculos para serem reunidos e divulgados numa pequena publicação intitulada Eu observo e descrevo.

Diga-se, então, que Francisco Antonio Sampaio integra lugar de destaque no grupo de cronistas, religiosos, viajantes, naturalistas, médicos, botânicos, geólogos, entre tantos outros, que produzem registros sobre os sertões, coletando espécies dos reinos vegetal, animas e mineral. Embora tardiamente reconhecido, seu trabalho dá a conhecer o sertão como parte do Novo Mundo através do emprego da ciência e da arte. Significa um esforço de pesquisa cientifica e artística que envolve a experiência vivida, o simbólico (representado por seus desenhos e textos) e os métodos clássicos apreendidos pela razão e pela ciência, envoltos por um contexto de relações entre colônia e metrópole. Ele abriu caminhos para que outros naturalistas-artistas pudessem registrar o sertão e a colônia portuguesa.

Na sua trilha, tem-se em meados do século XIX, após a abertura dos portos às nações amigas, a missão austríaca, da qual participam o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius e os zoólogos Johann Baptiste von Spix e Johann Natterer, acompanhados por desenhistas, entre eles Thomas Ender, e assistentes. A chegada da família real na América portuguesa em 1808 abre um ciclo de viagens de cientistas, comerciantes, missionários e artistas de várias partes da Europa em busca de um conhecimento mais preciso da flora, fauna e geografia da região. Os viajantes buscam ainda caracterizar os tipos humanos e avaliar se a sociedade teria caminhado no sentido de estabelecer a vida civilizada nos trópicos. O trabalho de Francisco Antonio Sampaio é anterior a essa fase de pesquisas intensas realizadas pelos viajantes estrangeiros. Logo após seu trabalho, ocorre a expedição de cunho científico empreendida pelos naturalistas bávaros Spix e Martius. Em 1816, a convite da corte portuguesa, aporta no Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa, liderada por Joaquim Lebreton, e composta por um grupo de artistas, entre os quais os pintores Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny.

E, durante o século XIX, ainda acontecem as expedições de Auguste de Saint-Hilaire, que percorre o território brasileiro entre 1816 e 1822, visitando as regiões de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Sua última viagem se dá na província do Rio Grande do Sul, a qual se constitui como a primeira expedição botânica a esta região. Na sequência, tem-se a expedição liderada pelo Barão George Heinrich von Langsdorff, entre 1822 e 1829, com os artistas João Maurício Rugendas, Aimé Adriano Taunay e Hércules Florence, que percorre as regiões de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo.

Assim como Francisco Antonio Sampaio, esses cientistas-artistas almejam desbravar as terras brasileiras, catalogar as espécies naturais, grupos étnicos e costumes. Diferente do naturalista-artista português, esses viajantes empregam a técnica da aquarela para seus registros. Isso porque a busca pela mimese é algo bastante valorizado no estilo neoclássico e, para o transporte, a secagem rápida desta técnica leva vantagem sobre outras. Outro dado importante: as expedições contam com homens da ciência e das artes, ao passo que o trabalho de Francisco Antonio Sampaio é solitário nas isoladas terras sertanejas e em período bastante difícil na história colonial.

Em síntese, Francisco Antonio Sampaio, “o gênio curioso”, pode ser considerado como um pioneiro nas relações que envolveram arte e ciência nas terras coloniais, no século XVIII, especialmente em um momento no qual arte e ciência são saberes que estão se organizando em Portugal. Ao mesmo tempo, a partir de seu trabalho, ele abre espaço para as expedições que mapeiam as terras brasileiras a partir do século XIX. O resultado desse empreendimento, envolvendo diretamente arte e ciência, pode ser dimensionado pela grande quantidade de diários, coleções de objetos e espécies naturais, desenhos e aquarelas. A cultura material acumulada por esses viajantes mostra, ainda, a possibilidade de liberdade de criação artística, uma vez que as imagens, por mais que tentem ser a “fisionomia real” dos reinos vegetal, animal e mineral, elas são sempre fruto do “olhar exótico e do pitoresco” que cerca as relações entre a Natureza e o naturalista-artista europeu.

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Capa e figura 1 e 2 Desenhos de Francisco Antonio Sampaio. Fonte: História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral do Brasil pertencente à Medicina (Tomo 1, 2, e 3, Bahia, 1793).