Introdução

Merleau-Ponty (1999), em sua obra Fenomenologia da Percepção, traduz o corpo como uma obra de arte que se comunica poeticamente, em diferentes sentidos. Apresenta a percepção na dinâmica relação do corpo no mundo, contrariando a visão positivista da ciência, pois considera a percepção como resultado de um processo: uma ação, pela qual a consciência apreende um dado objeto, por meio da associação de sensações provindas dos órgãos dos sentidos.

Sob a ótica desse filósofo, o corpo vivencia experiências no mundo; e vai se compreendendo o existir pela consciência do que aí ocorre e pela reflexão sobre a constituição do corpo como produto histórico cultural e a percepção desse como corpo que dança e se expressa em diferentes sentidos.

O corpo permite um mergulho na existência e nas diversas experiências que se pode adquirir por meio dele. A dança como movimento artístico traduz o corpo se dinamizando, se comunicando e construindo história no mundo. Para Garaudy (1973), a dança parte da necessidade que o corpo tem de se comunicar com o metafísico, de apreciar o desconhecido e de se relacionar com o outro. É uma das raras atividades que possibilita ao homem a integralidade de seu corpo, sua mente, seu espírito e seu coração.

Nessa perspectiva, o corpo é algo indivisível do mundo ao seu derredor e se constrói em si mesmo, da mesma maneira que faz arte e é o próprio objeto da arte.

1. Corpo fragmentado e corpo construído

Existe uma linha muito tênue entre as distintas concepções sobre o corpo, que muitas vezes restringe o entendimento das questões que envolvem ideias preconcebidas sobre ele. Compreender, portanto, como a cultura define esses conceitos é uma maneira de trazer à tona as discussões sobre a gênese do corpo, implicada nas relações constituintes de identidades, determinadas culturalmente e que perpassam diferentes âmbitos socioculturais.

Cardim (2009) salienta que o corpo humano tem sido tratado de muitas maneiras, justificadas pelas épocas históricas nas quais tais referências se estabeleceram. Após ter sido tratado, por Platão, como prisão para a alma, o corpo foi estigmatizado como lugar do pecado pelo pensamento cristão, fragmentado como uma entidade separada da mente pela lógica Cartesiana e, após a Idade Média, como corpo-objeto, pelas ciências médicas. O corpo tem sido, para muitos teóricos, um objeto de discussão cercado de ambiguidades e indagações, constituindo-se dicotomicamente as noções sobre corpo no cerne da sociedade, de modo que sua compreensão não ocorre de um inteiro, mas de ideias fragmentadas. Levando em consideração que a sociedade é um arcabouço de embasamentos organizados, pode-se intuir que o conceito de corpo foi se estruturando frente a diferentes interpretações, fundamentações culturais e embasamentos socialmente instalados.

Foucault (1984), em seus apontamentos sobre corpo, afirma que esse não é apenas um produto da cultura, mas um espaço direto para se instituir o controle social. O corpo se constitui por meio de processos culturais e de relações que estabelecem a práxis determinada e determinante desse controle social – por meio da cultura se faz o corpo e por meio do corpo controla-se a sociedade. O autor centraliza a discussão sobre as práticas e relações sociais que produzem o corpo num determinado momento histórico. A partir de suas ideias, cabe perguntar: como entender os conceitos de corpo sem compreender os processos que o constituíram no tocante da sociedade? Quais as fundamentações que o definem como um corpo que se cruza socioculturalmente e historicamente?

Foucault (1984) refere que com a repressão sobre o corpo, sempre houve um discurso sobre como ele foi percebido e compreendido na sociedade. Pensar o corpo, necessariamente, permite percebê-lo por meio de uma linguagem, que se relaciona direta e indiretamente com a sua construção identitária. Isso mostra que o entendimento fragmentado sobre ele se contrapõe à sua existência enquanto componente inteiro do sujeito na concepção de um corpo construído socialmente. Essa ideia é reiterada e esclarecida por Rodrigues (1979, p. 15) quando afirma:

O corpo humano é socialmente concebido e a análise da representação social do corpo oferece uma das numerosas vias de acesso a estrutura de uma sociedade particular. Entretanto, a percepção e/ou interpretação do que seja o corpo é posta na subjetividade e individualidade, com indagações anunciadas culturalmente. Sim! Indagações, pois se as respostas fossem dadas culturalmente interromperíamos o processo de constante construção corporal dentro das diferentes culturas que se interpõem socialmente.

Durante séculos carregou-se o legado de entendimento sobre o corpo como algo separado de si mesmo, como se cada um fosse, fora do corpo, aquilo que não podia ser dentro dele. Nega-se o corpo em sua particularidade e determina-se o corpo dos sujeitos. Qual é o sentido do corpo das pessoas? Qual é o sentir do corpo dos diferentes seres que perpassam a contemporaneidade? Como compreender o corpo como um inteiro na percepção, no e para o mundo das coisas visíveis e invisíveis?

Mauss (1974) afirma que o corpo é, ao mesmo tempo, a ferramenta original com que os seres humanos moldam o seu mundo e a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado. Dessa maneira há uma circunscrição do corpo nos moldes da sociedade e da sociedade moldada no corpo, onde o corpo é a matéria-prima que a cultura molda. Não se pode, entretanto, desconsiderar as diferentes linguagens que o corpo imprime socialmente, tampouco as diferentes percepções de mundo que os indivíduos têm a partir do corpo. Sejam essas fragmentadas ou construídas, são percepções dos sujeitos. São essas percepções que constroem as identidades que transitam entre o indivíduo e a sociedade, entre as pessoas e o seu entendimento de mundo.

O corpo é expressão e fala no tocante de seu contexto e de seu universo particular, é o caminho que conecta com o outro, com as coisas e, ao mesmo tempo, é o mundo se constituindo em cada um. O corpo se comunica e se faz comunicar, sem que haja, muitas vezes, a extensão da palavra. Para Merleau-Ponty (1999) não há necessidade de representá-la, basta possuir sua essência articular e sonora como uma das modulações, um dos usos possíveis do corpo.

Analisar o corpo em sua subjetividade é considerá-lo inteiro, indivisível da própria existência, corpo-sujeito que faz arte e que é arte construída, é também dimensioná-lo além dos conceitos que o definem socialmente. É percebê-lo como um corpo em sua existência.

1.1. Corpo, subjetividade e existência

De acordo com Cardim (2009), na filosofia de Merleau-Ponty (1999), diferentemente de Descartes, a existência se traduz na certeza de que a experiência se faz pelo ser no mundo, de maneira que o ato de existir situa aspectos entre o sujeito e o mundo, onde a vivência corporal é o centro dessas experiências. Na filosofia cartesiana, o sentir era apenas um modo da substância pensante e quem percebia era a alma e não o corpo, ou seja, o sujeito em sua experiência de percepção existe como um ser contemplativo, uma vez que, pensante, se retira da percepção. Para esse sujeito pensante que se retirou do corpo em que habita, o mundo torna-se indiferente, enquanto o corpo não passa de um objeto no mundo. Para Descartes, o perceber é pensamento de perceber e há uma assimilação plena entre a consciência e o sujeito, nessa perspectiva o objeto se torna ideia. Já para Merleau-Ponty, a existência não se faz fora do corpo, nem tão pouco por fragmentos de entendimento desse corpo no mundo. Ele afirma que o corpo é repleto de subjetividade e encontra-se permeado pela história. A condição de corpo no mundo, portanto, se estende a decisões conceituais e práticas da vida e do conhecimento. A experiência do corpo e no corpo é o que traduz a vida e suas significações. É o corpo que acentua e interpreta o mundo pelos diferentes sentidos.

Todo pensamento de algo é ao mesmo tempo consciência de si. Na raiz de tudo – da experiência e da reflexão – encontra-se a subjetividade – um ser que reconhece a si mesmo. Desse modo, esse reconhecimento é imediato, já que é saber de si ao saber das coisas. Trata-se de um sistema: o corpo é no mundo assim como é o mundo em si mesmo. O corpo existe para a vida, assim como a vida existe para esse corpo.

1.2 O corpo na arte ou a arte no corpo?

Consideramos como processo de reflexão, o corpo sob a ótica de Merleau-Ponty (1999), para quem o corpo é uma obra de arte com sua linguagem sensível e poética expressa nos movimentos. O ser humano se expressa no corpo que canta, dança, sente e, que por diferentes linguagens, tem sempre algo a dizer, sem necessariamente ter que dizer e/ou compreender, pois o verbo é perceber. É um enfoque que se distancia de pensar o corpo como entidade submersa pela razão e pelo espírito.

O corpo, ao longo da história sociocultural, foi se construindo e sendo construído, e a arte enquanto movimento buscou nesse percurso sua expressão mais plena. Dessa forma, o corpo e a arte ganharam um novo sentido. Garaudy (1973) afirma que a estética indica sempre uma atitude importante a respeito do mundo e do homem, não é apenas uma forma de enxergar o mundo, mas de escolher a vida.

O ato da criação artística parece tornar-se cada vez mais o símbolo e o modelo do ato de viver. [..] A arte, em cada etapa da “história humana da natureza”, procura estabelecer o equilíbrio e a harmonia entre a nova natureza e o novo homem que nela, como dizia Hegel, pode sentir-se “em casa”, e partir uma vez mais ao ataque para uma nova transformação (GARAUDY, 1973, p. 46-47).

A afirmação do autor convida a refletir sobre a importância da arte como instrumento de vivência corporal no mundo e para o mundo. A vida é movimento, o corpo é movimento, mas também é silêncio, quietude. Nesse sentido, há uma confirmação da transformação constante da vida dentro e fora do corpo – corpo obra de arte, reiterado por Garaudy (1973), ao dizer: “a arte é o caminho mais curto entre dois homens. O caminho mais curto por que não comporta a mediação abstrata, impessoal, do conceito e da palavra”.

Quando se indaga “a arte no corpo ou o corpo na arte”, objetiva-se estabelecer, uma linha de reflexão, dentre tantas outras, que delineiam as infinitas possibilidades do corpo no mundo. Está-se falando de um corpo que se comunica e interage das mais distintas formas, com suas congruências e incongruências multifacetadas, que não estão dentro ou fora de si mesmas, mas interligadas pelo sentir e perceber de cada corpo/sujeito no mundo.

Toda experiência vital ou todo ato especificamente humano que transcende o conhecimento ou as práticas quotidianas exige, para expressar-se, que a linguagem verbal seja transcendida: é o que dizem a dança, a música, a pintura e a poesia, como arte, cuja tarefa é “tornar visível o invisível” (GARAUDY, 1973, p. 69) – fazer perceptível, por meio do sentir, um mundo que não está dado, nem tampouco conceitualizado.

Nessa perspectiva, Merleau-Ponty (1999) diz que a percepção é um instrumento de desvelamento do invisível por meio dos sentidos, sem que necessariamente o que é e/ou foi sentido precise ser definido. A definição é um caráter da racionalidade, pois o ser humano tem a necessidade de estabelecer conceitos e formas para o mundo e para as coisas como processo de objetivação. Vale ressaltar, entretanto, que quando se fala de percepção, está-se no âmbito da subjetividade. Isso pressupõe que não é possível definir conceitos diante das diferentes formas de sentir que cada “ser corpo” no mundo tem. O sentir é puramente corporal e permite a conexão do homem com o objeto enquanto entra em contato consigo mesmo. Assim, o corpo se torna não apenas o corpo que sente, mas aquele que se faz sentir, indivisivelmente daquilo que se é e que se faz, e do mundo que se sente e que faz sentir.

2. A dança e suas significações

Garaudy (1973, p.13) define a dança como uma forma de existência. Para ele a dança é uma maneira de expressar o que a razão desconhece. Ele diz:

Não apenas um jogo, mas uma celebração, participação e não espetáculo, a dança está presa à magia e à religião, ao trabalho e à festa, ao amor e à morte. Os homens dançaram todos os momentos solenes de sua existência: a guerra e a paz, o casamento e os funerais, a semeadura e a colheita.

A dança esteve sempre presente na construção histórica, social e cultural da humanidade com diversos sentidos e significados desde os povos primitivos até os dias de hoje. Na era primitiva, a dança era tida como uma forma de manifestação de amor, de morte, de guerra e de religião. Em culturas antigas, ela era compreendida como a maior expressão de vida. De uma forma ou de outra, a dança estava ligada à vida.

Ao longo da história da humanidade, o corpo e a arte ganharam um novo sentido e, dessa forma, o homem foi conduzindo seus processos corporais estéticos em outra perspectiva. Garaudy (1973) denota que a dança foi se tornando um símbolo e um modelo do ato de viver, ao mesmo tempo que outras expressões artísticas em cada momento da “história humana da natureza”, foi buscando estabelecer o equilíbrio e a harmonia entre a natureza e o novo homem. Nesse sentido, a dança como representação artística é possibilidade, é criação, é o corpo se expressando no mundo e sendo expresso por ele. A dança tem como significação as diversas possibilidades de expressão, que só se dão no corpo e para o corpo, na individualidade de um corpo em diálogo com outros corpos.

Dessa forma, a dança é arte do movimento, do gesto, da fala e da linguagem do corpo em comunicação com o meio. A dança é o corpo em diálogo com o mundo, um corpo que assume historicamente, múltiplos significados sociais, culturais e artísticos.

2.1. Merleau-Ponty e a dança do indivisível

Para Merleau-Ponty (1999), o corpo é uma unidade, indivisível do mundo que o toca e é tocado por ele. Nessa proposição, a percepção revela que ser corpo é estar atado a um determinado mundo, e o corpo não está primeiramente no espaço: ele é o espaço. Dessa forma, não se faz possível traduzir o ato de dançar, mas é possível a quem dança sentir e perceber o corpo que dança.

O ato de dançar não se faz pela mera repetição de movimentos corporais, pois, se assim o fosse, o corpo seria reduzido a um objeto moldável às condições estabelecidas que por ele perpassam, sejam elas artísticas ou não. Merleau-Ponty (1999) afirma que o corpo é a arte se constituindo como obra, e toda linguagem expressa por ele se torna uma poesia.

Considerações Finais

Diante do exposto, e considerando o entendimento fenomenológico de Merleau-Ponty sobre a percepção, compreende-se que o corpo que dança não se fecha em si mesmo, sob a ótica do movimento, pois, se assim o fosse, não existiria o diálogo entre o corpo que faz arte e é arte substancialmente. Ao escolher dançar, o corpo se lança em um projeto a ser desvendado no próprio processo que estabelece como arte.

Reduzir o corpo a uma engrenagem mecânica articulada na dança é negar-lhe sua expressão plena no mundo. Quando, entretanto, entende-se o corpo como instrumento de percepção, abre-se uma janela que liga a outros mundos e possibilidades de existência – a percepção se faz pelo corpo e no corpo.

Em Merleau-Ponty, entende-se que há uma dança do indivisível que conecta o corpo na arte e a arte nesse mesmo corpo. O corpo, ao mesmo tempo que se comunica, produz sua própria linguagem, cheia de singularidades e peculiaridades. Nesse processo, a originalidade do corpo que dança se destaca pela unidade poética de ser plenamente. Assim, não é possível traduzir a dança apenas pelo movimento do corpo, mas também pelo perceber e sentir de cada corpo que dança, na própria existência.


CARDIM, Leandro Neves. Corpo: filosofia frente e verso. São Paulo: SP editora Globo 2009.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo: EPU, 1974.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Achiame, 1979.

Capa - Grupo Corpo, Nazareth. Fonte: www.grupocorpo.com.br

Grupo Corpo, A Arte de Dançar por um Triz. Fonte: www.grupocorpo.com.br