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Em seu famoso texto “O olho e o espírito”, Merleau-Ponty critica a supremacia da ciência no século XX e defende uma retomada da possibilidade da arte como conhecimento:

A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Fabrica para si modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de longe se defronta com o mundo atual. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, este parti pris de tratar todo ser como “objeto em geral”, isto é, a um tempo como se ele nada fosse para nós, e no entanto, se achasse predestinado aos nossos artifícios. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.7).

A percepção do distanciamento entre o pensamento científico e a essência do mundo sensível, conforme nos aponta Merleau-Ponty, reflete-se também no trabalho de artistas plásticos contemporâneos. Em um mundo dominado pelo racionalismo científico, no qual o homem se relaciona com o mundo natural de maneira distanciada, através de modelos e teorias, cabe ao artista repor ao homem um contato mais sensível com a natureza, não mais de forma ingênua e fundante, mas considerando as alterações histórico-científicas e interagindo poeticamente com elas.

A popularização da ciência, ao longo do século XX, permitiu que os artistas tivessem acesso a seus documentos e procedimentos e passassem a empregá-los propositalmente na constituição de suas obras, quer seja para criticá-los, quer seja para aproveitar suas qualidades tecnológicas e racionalizantes. Paralelamente a isso, o desenvolvimento da ecologia e da genética trouxe ao homem novos questionamentos éticos sobre sua relação com a natureza e seu manejo consciente. O próprio conceito de natureza tem sido revisto, distanciando-se cada vez mais da ideia de uma origem imutável e determinante, tornando-se algo manipulável, provisório e até mesmo virtual. A natureza original, que servia de refúgio ao homem ou que tinha que ser enfrentada por ele, dá lugar agora a uma natureza manipulada e aparentemente dominada, na qual é possível existirem seres sintéticos, virtuais, transgênicos e híbridos.

A natureza encontra-se hoje esquadrinhada pela ciência e torna-se cada vez mais artificial. A produção da imagem da paisagem contemporânea, além de ser informada por toda a produção artística histórica anterior à atualidade, incorpora concepções e modelos advindos da biologia, da arquitetura e da engenharia, da física, da meteorologia e das mais variadas ciências. O artista contemporâneo tem acesso a esses modelos e conceitos científicos e sua visão de mundo já vem contaminada por eles.

Muitos dos trabalhos recentes têm apresentado uma postura crítica sobre as relações entre a natureza e a ciência. Embora nem sempre engajados ecologicamente, esses trabalhos têm procurado deixar mais visível a manipulação da natureza pela ciência e o distanciamento entre o homem e a natureza. Em muitos deles, a possibilidade da existência de um mundo natural real chega a ser negada, salientando a artificialidade construída do ambiente contemporâneo. Outros servem-se de procedimentos científicos para a criação de situações poéticas inusitadas, introduzindo dados da sensibilidade em um campo marcado pelo racionalismo distanciado.

O artista americano Mark Dion, por exemplo, desenvolve um trabalho bastante consistente no que se refere à percepção crítica do racionalismo científico e dos métodos historicizantes das catalogações museográficas. Diversos de seus trabalhos consistem de instalações nas quais ele organiza fósseis, animais empalhados ou em formol, microscópios, tubos de ensaio e outros materiais, remetendo muitas vezes aos Wunderkammer do século XVI ou a antiquados laboratórios de ciências. Ele desloca a ideia do museu de história natural para o ambiente da arte contemporânea, procurando demonstrar o autoritarismo supostamente objetivo presente na exibição museográfica de espécimes do mundo natural.

Embora a apresentação de seus trabalhos lembre a exposição de museus de história natural, o artista frequentemente insere elementos que perturbam a organização aparentemente racional, causando uma certa distopia na percepção da obra. Pedras de interesse supostamente científico são exibidas em vitrines juntamente com tijolos e blocos de cimento, como se todos os materiais, naturais ou culturais, tivessem a mesma importância para a ciência. Em outro de seus trabalhos, um lobo é exibido sobre um vagão de transporte, o que torna ainda mais clara a artificialidade da cena. O cenário no qual o animal se encontra, embora devesse representar um ambiente natural estável com uma localização geográfica típica, como em um diorama, pode ser transportado livremente de um lugar para outro, apresentando-se assim como instância transitória e construída artificialmente.

Em outra instalação do artista, um urso empalhado aparece sentado em uma bacia de metal, apoiada sobre uma caixa de transporte, e segurando na boca um grande toca-fita amarelo. A junção de elementos totalmente díspares leva à percepção da interferência indisfarçável do homem no mundo natural contemporâneo, causando uma fricção entre os tradicionais conceitos de natureza e cultura. Ao mesmo tempo que Dion nos alerta sobre nosso distanciamento da natureza, ele também nos mostra que nossa aproximação dela só se dá através de nossa própria subjetividade humana e que a pretensão de neutralidade da abordagem científica é apenas relativa.

A ciência apresentada no trabalho de Mark Dion possui algo de anacrônico. Os laboratórios e salas de estudo científico que o artista encena em suas instalações parecem antiquados e ultrapassados e pouco lembram a visão futurista tão propalada pela ciência contemporânea. Este envelhecimento da ciência, presente no trabalho do artista, denota a fragilidade e a transitoriedade do pensamento puramente racional, que tantas vezes é encarado de maneira heroica e puramente afirmativa pelo homem contemporâneo.

Entre os artistas brasileiros que atuam na crítica à percepção científica da natureza, um dos mais interessantes é Walmor Corrêa. Apoiado na visão dos artistas europeus viajantes, que descobriam e documentavam espécies de suas colônias a partir do século XVIII e XIX, Walmor Corrêa desenvolve desenhos, pinturas e instalações nas quais representa seres imaginários, com detalhes anatômicos e indicações pseudocientíficas. No início de sua carreira, o artista desenhava insetos inventados, que eram apresentados em uma espécie de taxonomia, incluindo nomes em latim e alemão, o que contribui para atmosfera científica que seus trabalhos pretendem aparentar. Em uma série de trabalhos posterior, o artista retrata seres fantásticos oriundos do folclore popular brasileiro, como a Ondina (sereia), o Curupira, a Ipupiara, entre outros, apresentando detalhes de sua anatomia biológica, que são explanados através dos textos que acompanham os desenhos. Posteriormente, o artista passa a representar também super-heróis, como o Homem-Aranha, ou vilões da fantasia, como o Pinguim, do Batman. A delicadeza com que retrata esses seres, entretanto, permanece a mesma, e o artista parece querer dar vida real aos personagens fantásticos. Sua representação sobre fundo branco, com delicadas anotações de textos explicativos e ampliação de certos detalhes, lembra muito a linguagem visual das ilustrações científicas. Os trabalhos descrevem de maneira precisa a anatomia dos orgãos internos dos seres, tornando a fantasia passível de verossimilhança científica.

Posteriormente, Walmor Corrêa passa a utilizar animais taxidermizados de diferentes espécies, que são unidos para criar novos seres híbridos apresentados em dioramas. Na obra Memento Mori, de 2007, Corrêa passa a apresentar seus animais imaginários mas como esqueletos tridimensionais. Ele cria pequenos esqueletos de pássaros montados a partir de ossos encontrados em laboratórios de biologia. Estes espécimes estão colocados dentro de campânulas que funcionam como caixas de música, nas quais dançam ininterruptamente. O trabalho inclui ainda um relógio cuco, que ao invés de apresentar o tradicional passarinho ao bater das horas, exibe apenas seu esqueleto. Através de uma aparência pretensamente científica, Corrêa estabelece uma onírica reflexão sobre a morte e a passagem inefável do tempo, demonstrando os limites da vida terrestre.

Assim como Mark Dion, Walmor Corrêa questiona os limites da ciência em nossa relação com o mundo natural. Sua produção, entretanto, diferencia-se da de Dion, porque, embora também apresente certa ironia, é contaminada pela fantasia e pelo misterioso, demonstrando que, por mais que a ciência e a racionalidade se esforcem, sempre restará algo de inexplicável. Sua abordagem histórica do fenômeno dos artistas viajantes também traz uma interessante crítica ao sistema eurocêntrico que dominou a ciência por muitos séculos. De fato, é possível encontrar entre as representações pictóricas dos artistas dos séculos XVIII e XIX seres fantásticos que só existiam na imaginação deles, mas que eram apresentados na Europa como animais reais existentes nos selvagens continentes colonizados. Ao criar conscientemente seres fantásticos como se fossem reais, Walmor Corrêa atualiza esta tradição, porém a partir de um ponto de vista pós-colonial, cujo objetivo assumido é iludir os desavisados e divertir-se com a ingenuidade de europeus assustados com o desconhecido.

Além disso, o trabalho de Walmor Corrêa retoma as discussões entre os conceitos de natureza e cultura, realizando uma tabula rasa entre aquilo que é considerado cientificamente comprovado e explicável e aquilo que só é possível em nossa imaginação. O mundo imaginário não é colocado em segundo plano, mas, ao contrário, ocupa o ponto central do trabalho artístico e abarca instâncias que a ciência não consegue alcançar.

Enquanto Dion e Corrêa colocam em dúvida a modernidade da ciência, o brasileiro Eduardo Kac serve-se das mais avançadas tecnologias da genética para a realização de suas experiências artísticas. Apoiando-se em tecnologias da genética, o artista interfere na criação de bactérias, plantas e animais, de modo a produzir seres híbridos, que incorporam genes que não lhe pertencem originariamente. No trabalho GFP Bunny criado em 2000, por exemplo, ele produziu através da engenharia genética uma coelha que possui em seus genes uma proteína fluorescente verde. Sob luz azul a coelha emite luz verde. O trabalho gerou intensas discussões sobre as questões éticas de se alterar o material genético de um ser vivo apenas por motivos artísticos. Segundo declarações do artista, a coelha era saudável e viveu sob os cuidados de sua família. Porém, as atitudes polêmicas de Eduardo Kac têm gerado ao mesmo tempo admiração e desconfiança tanto por parte da comunidade científica como pelo meio artístico.

Em 1997, em uma ação realizada na Casa das Rosas, em São Paulo, Brasil, o artista criou a obra “Time Capsule“, na qual implantou um microchip em seu próprio calcanhar. O artista pretendia discutir assim os limites da intervenção científica nos seres vivos. A implantação de microchips tem se tornado comum em animais domésticos, com o intuito de identificá-los e até mesmo localizá-los via satélite. Em alguns países, essa já é uma prática obrigatória. Porém, ao implantar o microchip em seu próprio corpo, o artista pretende ampliar as discussões sobre as questões éticas do monitoramento científico e da criação de seres transgênicos. Entre 2003 e 2008, Eduardo Kac desenvolveu ainda a criação de uma flor que teve em seu código genético a inserção de um gene do próprio artista. A flor recebeu o nome de “Edunia“, em referência à junção do nome do artista à flor petúnia da qual se originou. Em suas pétalas, é possível ver veias vermelhas, que expressariam a inserção do DNA do artista. A flor seria, portanto, um híbrido entre animal e vegetal.

Para refletirmos sobre a obra de Eduardo Kac, podemos invocar o conceito de pós-humano. O pós-humanismo seria um conceito surgido após a Segunda Guerra Mundial a partir do interesse pelos processos de informação e controle embutidos na atividade científica. O pós-humano seria a integração do homem com a máquina ou do homem com o animal de maneira a criar seres híbridos que alcancem formas superiores de sobrevivência. A possibilidade da ciência produzir próteses e aparelhos ou órgãos de animais implantados no corpo humano, com o objetivo de melhorar suas condições de saúde ou até mesmo criar cyborgs superdesenvolvidos gerou os pensamentos a respeito das condições do pós-humanismo. Os trabalhos de Eduardo Kac propõem polêmicas discussões a respeito dos limites éticos de atuação da arte e da ciência sobre o mundo natural. Alguns comentadores afirmam que o trabalho de Kac utiliza a arte como desculpa para realizar experiências que não encontram acolhimento na ciência, ou que então sua obra não passa de uma encenação falsa, que depende da crença do observador para se concretizar. Não pretendo chegar a uma resposta definitiva a esse respeito neste artigo, já que a meu ver a arte não se destina a fornecer conclusões, mas sim a possibilitar o surgimento de discussões e múltiplas interpretações.

Em meu próprio trabalho pessoal como artista, busco discutir as possibilidades de contato entre o homem e o mundo natural em uma época mediada pela ciência, porém considerando as relações afetivas entre o homem e o mundo que o cerca. No início de minha trajetória artística, criei diversos aquários que continham esculturas flutuantes feitas de parafina, que estavam sujeitas aos processos físico-químicos do ambiente aquático. Os aquários eram uma espécie de laboratório nos quais micropaisagens eram exibidas e modificavam-se conforme o passar do tempo. Estudar a flutuação, a transparência, a reflexão e a distorção óptica eram alguns dos objetivos desses trabalhos, que remetiam a icebergs em degelo ou a paisagens relacionadas com a ideia de sublime.



Posteriormente, passei a reunir uma grande quantidade de aquários com água, argila, parafina e outros materiais que faziam referência a rios de diversos locais. As instalações são como rios que não fluem mais, engolidos pela arquitetura das grandes cidades e contaminados pela poluição. As obras buscam estabelecer uma reflexão a respeito do homem urbano e seu distanciamento da paisagem natural, que é apresentada como um modelo reduzido da natureza real.

Após a realização de diversos trabalhos dessa série, passei a me interessar também pelas relações entre homens e animais, procurando compreender o animal não como um objeto de estudo da ciência, mas como um ser dotado de subjetividade e individualidade. Os modos de observação científica dos animais são entretanto tematizados nessas obras, buscando compreender os limites entre a racionalidade e a afetividade que estão envolvidos no nosso relacionamento com outras espécies.

Um exemplo disso são minhas obras da série "Libélulas". Há algum tempo venho realizando várias obras sobre libélulas, inicialmente retratando-as como representação abstrata e posteriormente incluindo a colaboração das próprias libélulas na realização do trabalho. Em um determinado momento, criei uma escultura feita com canos de cobre que representavam as asas de libélulas. Esta escultura ficou exposta em meu quintal por vários meses e uma vez pude observar três libélulas reais penduradas nas asas da escultura. Este fato se repetiu por vários dias, às vezes, com uma única libélula, às vezes, com várias. Comecei a documentar esse processo, produzindo uma série de fotografias. Fiquei intrigado se haveria alguma comunicação possível entre as libélulas e a escultura, e por mais que a ideia parecesse absurda, ela poderia sugerir uma investigação científica ou pelo menos servir como inspiração poética para meu trabalho artístico. Em 2012, apresentei essa série de fotografias, a escultura e um texto poético que narra esse acontecimento na exposição Atrator de Libélulas.

Quando as libélulas voavam ao redor da escultura, procurei observá-las e, às vezes, encontrei asas de libélulas mortas, que já fazem parte de uma coleção com intuitos artísticos. Também produzi dois vídeos com libélulas que encontrei no mesmo local. No vídeo “Morse”, uma câmera parada capta uma libélula quase imóvel, que está prestes a morrer. O olhar aparentemente neutro e distante da câmera, que remete aos filmes de documentação científica, é contraposto ao fato sensível de que a libélula está prestes a morrer e que se movimenta como se quisesse se comunicar através de um código Morse com o observador. A cena é bastante lenta, quase uma fotografia. Ao mesmo tempo que observamos os movimentos da libélula e suas semelhanças com alguém que tecla um código Morse, vemos também o esvair da vida da libélula. A aparente ironia, que é sugerida pelo título, é posteriormente desfeita quando percebemos que o filme documenta os últimos minutos de vida do animal. O trabalho procura oferecer uma reflexão sobre a efemeridade da vida, o isolamento e as dificuldades de comunicação, quer seja entre o homem e a natureza, quer seja entre o homem e seus semelhantes.

Já no vídeo “Desmedida”, a imagem de uma asa de uma libélula é esquadrinhada por linhas que parecem querer medir todas as formas das nervuras presentes na asa. As medidas, produzidas pelo computador, movimentam-se de maneira mecânica e possuem sons característicos de aparelhos eletrônicos. A impossibilidade de se medir a delicadeza sensível de uma asa de libélula é tematizada nesse trabalho. Objetividade e sensibilidade são contrapostas, remetendo à ideia do conflito entre arte e ciência na apreensão do mundo natural. O processo de produção do trabalho também reflete essa questão. A asa da libélula foi coletada por mim, escaneada e retrabalhada no computador, de onde foi filmada e passou posteriormente por edição videográfica. Todo esse processo, que parte do mundo natural e extrai dele seu caráter indicial, proporciona também uma alteração na imagem da libélula, que passa a ser puramente virtual e incorpora elementos da imagem eletrônica. Esses vídeos procuram encenar, de forma fictícia, os processos de observação racionalizante da ciência, que transformam o animal em um objeto a ser estudado sem, porém, alcançar a compreensão de sua beleza ou de sua representação poética e simbólica para a sensibilidade humana.

No vídeo recente "Evoluções em Três Lições", também estou interessado em discutir processos de observação de animais e da paisagem, os limites da ciência objetiva e seus significados simbólicos, históricos e políticos. Filmado na Inglaterra e na Argentina, o vídeo mostra imagens de três seres diferentes que estão interligados através de suas histórias. O trabalho apresenta três diferentes questões: as relações entre os homens brancos europeus e os animais, a partir de suas tradições; os índios nativos da Terra do Fogo na Argentina e sua colonização; e os animais que vivem atualmente nessa localização geográfica, alguns ameaçados de extinção.

O primeiro capítulo do vídeo mostra corvos que viveram por vários séculos na Torre de Londres (Tower of London) e que hoje têm suas asas cortadas por causa da crença popular de que, se eles fugissem, o Reino Unido desapareceria. Os animais são aqui mostrados não como objeto da ciência, mas como seres possuidores de poderes além dos racionais.

A segunda parte do vídeo mostra os índios fueguinos, hoje exterminados, que foram no passado descritos por Darwin como selvagens, depois de sua viagem à Terra do Fogo, Argentina. Durante sua passagem pela Patagônia, a expedição de Darwin leva três crianças nativas para viver na Inglaterra e aprender os costumes ingleses e depois as traz de volta para que elas pudessem ensinar a cultura europeia para suas tribos. Apenas um dos índios sobrevive à viagem e logo depois de chegar a sua terra natal, volta a viver de acordo com os costumes de sua tribo. Para Darwin, esse era um sinal de que suas teorias da evolução poderiam ser aplicadas também à espécie humana, que possuiria raças mais e menos evoluídas.

A terceira parte do vídeo mostra lobos-marinhos que vivem até hoje na Patagônia Argentina, que poderão brevemente desaparecer por causa do progresso da civilização. No passado, os lobos-marinhos serviam como fonte de alimentação para os índios da Terra do Fogo, porém, embora esses índios já tenham sido exterminados através do contato com o homem branco, os lobos-marinhos ainda permanecem lá, como uma espécie de testemunha da história.



Os três capítulos do vídeo se entrelaçam através de uma narrativa que se repete, destacando as dificuldades de relacionamento entre o homem e aqueles que ele considera diferentes, quer sejam seus próprios irmãos humanos de outras raças ou os animais que o rodeiam. Ao interligar todas essas histórias, procuro discutir os aspectos éticos que estão envolvidos em nossa relação com o outro, que não deve ser considerado como simples objeto, mas como alguém dotado de subjetividade e individualidade. Também são discutidos os limites do racionalismo científico e as conotações políticas, sociais e históricas presentes em uma atividade que se coloca de forma pretensamente neutra e objetiva.

Arte e Ciência são formas diferentes de compreender o mundo natural, que não devem ser colocadas de forma hierárquica, como se uma fosse mais importante do que a outra. A natureza, na atual sociedade tecnológica, não pode mais ser observada de maneira ingênua, apenas como modelo de representação para a arte ou objeto reduzido para o racionalismo científico. A ciência produz modelos para a compreensão do mundo natural, que não são completamente isentos de subjetividade ou engajamento ideológico. A arte contemporânea, ainda que, muitas vezes, se utilize desses próprios modelos para se aproximar da natureza, pode abrir brechas para a percepção sensível e para a discussão ética e filosófica. Apenas quando o homem se torna consciente de seu papel frente ao meio ambiente e de que ele próprio faz parte do mundo natural, mesmo com suas idiossincrasias e atividades predadoras, é que ele pode pensar em políticas ecológicas factíveis e sustentáveis, nas quais a tecnologia e a ciência entram como colaboradoras. Ampliar a consciência a respeito da natureza não como um lugar idílico e idealizado, mas como um ambiente em que a presença do homem é incluída de forma responsável, mesmo que seja aparentemente através de obras distanciadas e antinaturais, é o objetivo de muitos dos trabalhos artísticos aqui apresentados.

BURT, Jonathan. Der Post-humane mensch und das post-animale tier. In: ULLRICH, Jessica et al. Ich das Tier. Tiere als Persönlichkeiten in der Kulturgeschichte. Berlim: Reimer Verlag, 2008.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.

KAC, Eduardo. Signs of Life: Bio Art and Beyond. Cambridge: MIT Press, 2007.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

Capa - Hugo Fortes, Atrator de Libélulas (detalhe), 2009, fotografia, dimensões variáveis. Foto: Hugo Fortes.

1  Hugo Fortes, Chattahoochee (detalhe), 2014, instalação com aquários, parafina, água, madeira, dimensões variáveis. Foto: Hugo Fortes.

2  Hugo Fortes, Evoluções em 3 Lições, 2012, vídeo, still do vídeo.