1. Introdução à visceralidade na obra de Anna Bella Geiger
A primeira fase da artista Anna Bella Geiger desenvolve-se enquanto prova de uma gravadora intensamente atuante nos anos de 1960 – a fase áurea da gravura no Brasil, com obras abstratas que brilhavam em salões, museus, galerias e bienais. Diante da eminência da arte contemporânea, o visceral apresenta-se na obra da artista através dessa fase (1965-1969), reconhecida oficialmente pela crítica de sua obra em geral, como a inserção de uma nova interpretação do corpo. Tem por intuito traduzir sua recepção numa sociedade contemporânea, remetendo às entranhas ou vísceras do corpo, à essência mais íntima e mais profunda; tudo aquilo que é visceroso, essencial e estrutural. Consiste em aproximadamente trinta obras entre gravuras em metal e desenhos em guache, ecoline e nanquim, a maioria delas catalogada e outras presentes apenas em seu acervo pessoal. Nas obras viscerais, há uma profunda consciência perceptiva e solidária do corpo próprio ou vivido, conhecida também como nostalgia do corpo ou “morcelement”.
Anna Bella Geiger é senhora de muitas linguagens: vídeos, instalações, fotos, cadernos. Nasceu e vive até hoje no Rio de Janeiro realizando exposições em Nova York, Munique, Londres, Tóquio, Genebra, Paris e outras cidades ao redor do mundo. Sua obra faz parte de coleções particulares como a do Museu de Arte Moderna de Nova York, Biblioteca Pública de Paris, Museu de Arte Histórica de Genebra e coleção Gilberto Chateaubriand, além de ter reconhecimento imprescindível e único dentro da arte contemporânea. Constata-se em seu trabalho a particularidade de abranger desde as investidas herdadas da primeira metade do século XX, passando por diversas situações de pós-modernidade, o que evidencia a convivência de sua obra com um cenário artístico instável e em contínua transformação. A trajetória de Anna Bella, inclusive, é indiscutivelmente significativa, se não exclusiva na história da arte brasileira no sentido de atentar para a complexidade da mudança de uma cena moderna para outra contemporânea.
A maneira como o suporte é utilizado, ou seja, cortando e subdividindo a chapa de metal, demonstra uma forma tipicamente inovadora do ato de gravar, que trata metaforicamente da própria fragmentação do corpo. Um processo poético e dramático ao mesmo tempo que, segundo a própria artista, remete a uma operação para construir e construir-se.
A denominação “visceral” foi criada primeiramente pelo crítico Mário Pedrosa durante a década de sessenta, para definir a obra da própria artista como um todo. Durante o princípio da série, escreve um texto para o Catálogo da exposição de Anna Bella Geiger, realizada em 1967, na Galeria Relevo, no Rio de Janeiro, e publicado na Coleção Debates. Segundo o autor, Anna Bella fez por conta própria uma descoberta: a de que a realidade maior é a do corpo; e ao tentar definir a materialidade das vísceras do corpo humano, Anna Bella, no fundo, o que procura é recriá-las, dar-lhes vivência própria e autônoma, e mostrar que a vida múltipla se perpetua na dissociação do próprio corpo de sua evidente natureza introspectiva, idealista senão mística. A carne lhe oferece todo um mistério a desvendar: o corpo vivo é como as engrenagens de um relógio: composto de vísceras que se movem dentro dele (PEDROSA, 1967). Pois essa é, para Mário Pedrosa, a primeira série de gravura em metal a seccionar a chapa de gravura para aludir ao interior do corpo através da estética da Nova Figuração. A passagem do Informalismo para a Nova Figuração traz uma crise da representação por meio da passagem não proposital das manchas informais para órgãos neo-icônicos e de cunho expressivo, pois a artista adota seu mundo interior enquanto natureza.
As obras viscerais são o resultado de um processo artístico quase que oposto ao de Fayga Ostrower, que passara da figuração realista-expressionista para a abstração de caráter sensível: “Os trabalhos iniciais de Anna Bella centram-se por vezes na figura humana enquanto herança expressionista de uma postura que integra ao trabalho sempre a dimensão política da existência” (TAVORA, 2000 p. 66). A consciência política da figura é uma consciência advinda das aulas de Fayga Ostrower. A artista oferece a Anna Bella uma formação aberta às mudanças operadas pelas vanguardas (TAVORA, 2000). Anna rompeu gradualmente com o aspecto abstratizante, e utilizava-se da cor com grande desenvoltura, principalmente o vermelho.
Há um aspecto de fundo expressivo em toda a série, desde o subjetivismo da abstração informal até a busca pela recuperação da figura do homem não mais como medida externa de observação, e sim como princípio interno, subjetivo, através da expressão de seus órgãos. A Nova Figuração, a partir de 1960, reintroduz a representação icônica, vinculada ao significado proposto pelo artista. Configurava uma tomada de consciência de uma geração mais crítica perante o estado da sociedade, criando uma arte polêmica que dava possibilidades da colocação de compromissos morais e políticos ante a realidade (PECCININI, 1999). Refletia os problemas que afetam o homem como a liberdade política, a solidão urbana, a questão social, a integridade física e a permanência da vida, além dos objetos da memória pessoal.
2. Críticas à visceralidade
Segundo Paulo Herkenhoff em “A trajetória de Maiolino: uma negociação de diferenças”, o tema da visceralidade se desenvolve nos anos de 1960, através do próprio meio artístico brasileiro. Artistas como Ana Maria Maiolino, Rubens Gerchman, Antonio Dias, Hélio Oiticica e Lygia Clark passam a empregar as expressões como “visceral” e “visceralidade” para iniciar a intensidade expressiva simbolizada no corpo ou a produção de sentido a partir do orgânico. A visceralidade, portanto, buscava dar conta dos indivíduos psicologicamente, em sua resistência política e inconformidade. Vivencia-se um novo papel do artista “revolucionário consequente” e instrumentalizador do reconhecimento das massas, que criava uma dinâmica de resistência presente em neovanguardas como a da Nova Objetividade Brasileira. Como proposta de uma arte comprometida com uma produção cultural de militância política, a atitude do artista é decisiva; para definir uma consciência de realidade social, bem como sua análise. (PECCININI, 1999, p.14-15).
De acordo com o artista Arthur Barrio, há uma dramaticidade vivenciada a partir do afetamento provocado pela obra. Onde há uma visceralidade, há a expressão resultante do contato direto com questões políticas, sociais e afetivas. Atuar em um mundo rarefeito como o nosso, pode ou não ser uma vivência dramática. Portanto, a visceralidade na obra de arte remete à consciência das coisas, onde o organismo teve que atuar e viver.
Cada obra, com o respectivo fragmento do corpo pode constituir um parágrafo metafórico de um discurso político de cunho secreto. Assim, na sequência em que aparecem, desenvolve-se criticamente a partir deles relações possíveis em sete das obras viscerais com o intuito de criar um discurso sequencial que faça sentido dentro do contexto político em que habitam: “(...) estômago/ digerir; coração/ comprometer-se; olho/ ver, observar; cérebro/ pensar; tronco/ posicionar-se; ouvido/ captar; carne na tábua/ sofrer, morrer. Todo um ciclo está pensado e é manifestado no tratamento que a artista imprime à sua gravura. Anna Bella responde a toda uma situação externa sem abrir mão de articular poeticamente seu meio expressivo.” (TAVORA, 2000, p. 69). Segundo Paulo Herkenhoff, o conceito repercute na arte brasileira a partir da metade da década de 1960, através do contato entre artistas cariocas e argentinos.
3. Visceralidade em obras mitológicas de “Las Furias”
A visceralidade pode ser detectada em outros momentos históricos, bem antecedentes ao de Geiger, e por outros meios estéticos que não o da gravura. Em obras pictóricas da exposição “Las Furias”, reconhece-se princípios de visceralidade em representações corporais de seres mitológicos em estados profundos de desejo, dor e agonia, em contrações e contorções de seus corpos e faces.1
Nota-se que não apenas no domínio da ciência, mas também na arte, o corpo e sua dramaticidade passam a ocupar lugar central como objeto de pesquisa. O deslocamento do lugar do humano que ocorreu com o advento da modernidade, transformou o olhar da arte sobre o corpo (COLI, 2003). O corpo humano aparece na linha de frente do pensamento moderno, não como unidade, perfeição, todo, e sim como fragmento, corte, ruptura, decomposição, impossibilidade. A fragmentação da consciência, um dos princípios fundadores do modernismo, desencadeou de forma correlata a ideia de fragmentação do corpo. Entre o fim do século XIX e a Segunda Grande Guerra, diversos artistas e escritores se voltaram para a criação de imagens do corpo dilacerado, dispostos a subverter a tradição do antropomorfismo (MORAES, 2010).
Em obras como “Prometeu Acorrentado”, a obra se propõe pelo corpo inteiro e não por uma parte interna do mesmo. Em Anna Bella, o que é orgânico sobressai. A visceralidade é demonstrada no órgão e não no corpo, ou no órgão feito corpo. O órgão de “Fígados Conversando” é o próprio órgão fígado, enquanto corpo. Há uma relação de especificidade com artistas do período de “Las Furias” como um extremo oposto ao mesmo, embora também ou ainda mais visceral por representar a dor dizimante na figura do homem. Em Anna, é a víscera como um todo, em Furias, é o todo como víscera. Portanto, a visceralidade não é igual à corporalidade, mas é próxima ou oposta a ela. “Prometeu Acorrentado”2 remete à submissão religiosa do homem em troca do reino dos céus. Aquele que a desobedecesse seria brutalmente castigado por meio da dor. A visceralidade presente na obra de Anna Bella Geiger é o resíduo do mais profundo aspecto que ficou da crise do espírito, em que o esvaziamento dos céus é um elemento inassimilado (PEDROSA, 1947). Um dos tormentos do homem moderno e contemporâneo é o destemor à figura de Deus, a desvalorização da religiosidade e sua velha função imemorial em prol do reconhecimento filosófico.
4. Análise de obras viscerais
A visceralidade em Anna Bella Geiger revela que a revolução política e pessoal está a caminho; a revolução social vai-se processando inerentemente. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, a visceralidade a induz a ser concebida através da liberdade concreta. A mesma não virá senão quando os homens tiverem novos olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuição para superá-las. Como uma retomada criadora de nós mesmos, incita o movimento da percepção perante as crises do mundo, através da afirmação da condição inerente da arte em mobilizar e manter uma potência humana, em estado puro e latente. As obras analisadas a seguir tratam de fenomenologias da “imagem do corpo”, tangenciadas por aspectos científicos e políticos, que são as partes internas do corpo referenciadas por imagens de livros de medicina e imagens-ícones que aludem à vivência da artista perante a ditadura. Todavia, as mesmas criam uma “poética do fragmento”. Em busca de uma autorrepresentação, desenvolve-se um corpo de modo a compor e recompor a personalidade individual da artista. Um autorretrato interno, uma fábula da identidade na qual o artista se autorreferencia.
4.1 “Corpo Humano – estômago” (1965)
A obra visceral “Corpo humano – estômago”, de 1965, é praticamente abstrata. Faz uma breve alusão a uma possível figura, não propriamente ao estômago, órgão não facilmente reconhecível na obra, a não ser pela menção em seu título. Concebida em um ano de significativo acontecimento para a perspectiva da arte brasileira no Brasil: Opinião 65 do Museu de Arte Moderna do Rio. A alusão ao estômago como centro da obra remete a um importante conceito que colocava o homem na centralidade de sua problemática, porém, diante de uma linguagem onde a proposta principal era o rompimento gradual com a arte abstrata, estreitando assim as relações com a vanguarda experimental da Nova Figuração brasileira, trazida da Escola de Paris através da realização de Opinião 65. O imaginário de artistas referentes à Nova Figuração no Brasil centralizava-se na figura humana, caracterizada pelo aspecto fragmentário, como que refletindo a constante dicotomia existencial do ser humano e as relações vitais estabelecidas entre o homem e seu ambiente circundante (PECCININI, 1999). É uma das últimas gravuras abstratas produzidas por Anna Bella e exemplo da busca do afastamento preponderantemente da abstração, a fim de retomar a figura em sua obra, porém, enquanto resultado de sua experiência com a abstração. O fato de ser intitulada indica não só uma pretensão à figuração, como permite filiar sua temática à categoria fisiológica de organismo. Apesar de fazer alusão ao estômago por meio do título, a obra não se faz reconhecer enquanto tal, devido à sua natureza abstrata. Há manchas irregulares claras, quase transparentes, que criam a sensação de passagens, movimento e transformação, conceito ligado ao órgão central da digestão, o estômago, órgão que digere, assimila e absorve. Suas manchas contrastam com grossas sensações de linearidade a nanquim e que dão a forma ao possível estômago. Próximas às manchas tachistas, as grossas linearidades que se convergem em forma circular levam o espectador ao centro da obra, onde há dois pontos equidistantes. Simbólica ou iconicamente, de acordo com a própria artista, considera-se a obra uma expressão do dever de um alerta da necessidade de “digerir” a realidade de um ano de ditadura, em que vivia-se com dramas e medos.
4.2. “Coração e Outras Coisas” (1965)
“Coração e outras coisas”, a terceira obra da série, demonstra uma transição da abstração para a Nova Figuração. O órgão que recebe e bombeia sangue, é definido como a sede dos sentimentos e o compromisso do homem com seu mundo (TAVORA, 2000). A gravura apresenta-se essencialmente na diagonal e em contornos mais precisos que as anteriores. Instaura-se uma ambiguidade sobre a imagem, pois a mesma estabelece uma relação com a forma do órgão “coração” através de uma representação icônica do mesmo (PECCININI, 1999). Há uma relação de semelhança com seu significado real, porém, sem representá-lo fielmente. As formas ao redor citadas como “Outras Coisas” enfatizam a expressividade, a encarnação de uma pesquisa do imaginário perante o próprio espectador, que pode referenciá-las a outros órgãos, embora propositalmente não denominados ou reconhecidos enquanto tal, no intuito de enfatizar a importância do órgão do coração na obra. Os contornos de “Outras Coisas” são mais precisos se comparados aos contornos das gravuras anteriores, desdobram-se em direções opostas e diversas em tons variados, em que as cores preto, marrom e vermelho auxiliam na ordenação do movimento das formas.
O coração é o órgão-corpo que escapou de si a ponto de abdicar de suas emoções próprias para readaptar-se diante do mundo. É a relação do corpo-no-mundo e o corpo-na-arte advinda dos expressionistas e o corpo retomado e deformado imaginado fora da hierarquia humanista, num processo interrompido pela hegemônica proposta da arte abstrata que perdura até os anos quarenta “Coração e Outras Coisas” remete ao próprio sentimento do homem fragmentado pelo mundo sendo posto à prova, diante de sua necessidade de readaptar-se ao mesmo.
4.3. “Limpeza de Ouvido com Cotonete” (1969)
“Limpeza de Ouvido com Cotonete” é a última gravura visceral produzida por Anna Bella. As imagens atingem um maior grau de reconhecimento a partir dos elementos de sua composição presentes na máquina-ouvido (a mão e seu cotonete), que ganha um caráter quase monumental enquanto órgão, com reentrâncias e detalhes instigantes ao espectador. O mesmo ouvido torna reconhecível e possível o desejo de adentrar o seu interior, e funciona alusivamente a uma “arma” ou instrumento, com possibilidade de abrir a capacidade de escuta da sociedade. Que seria então este delicado, porém penetrante instrumento, senão a própria arte intrigante ao artista-mão, que descobre no ato de limpar sua capacidade de “acordar” a sociedade diante da ditadura? Por seu caráter monumental e para além deste, o ouvido social assemelha-se a uma grande escultura/metáfora surrealizante. Na parte inferior, logo abaixo do ouvido, há uma grande sombra de sua própria figura, aspecto não existente em outras gravuras da série. Percebe-se, nessa obra, o clímax dado à importância do órgão. Pois há não só a grandiosidade do mesmo, com maiores reentrâncias e detalhes, como também uma relação desse ouvido com a mão, por meio de um cotonete que o adentra.
A obra revela também uma postura possível à sociedade do homem por meio de seus hábitos cotidianos: “[...] que se movem no mundo da cultura já conquistada, no mundo do já sabido e adquirido” (PONTY, 1981, p. 156). Ou a importância de ter os ouvidos bem abertos para a necessidade de escuta diante do momento político vigente. Segundo Merleau-Ponty (1981) vivemos num meio de objetos construídos por homens, entre utensílios, em casas, ruas, cidades e geralmente não os vemos senão apenas enquanto ações humanas cotidianas (como a ação da limpeza do ouvido com cotonete). Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e é inabalável. Ou seja, um mundo do maravilhamento ou do espanto. E esses elementos do cotidiano antes de serem cultura, a funda de uma vez por todas na natureza, também fazendo parte dessa, inerentemente, os órgãos humanos. A artista, por meio dessa obra, promove uma nova percepção em si mesma e concomitantemente no espectador, chamando-o a rever-se em seus próprios hábitos cotidianos, a fim de formar, a partir desses, uma nova mentalidade pautada na necessidade de mudanças políticas e sociais.