Marcas iniciais
Todos nós rabiscamos, em algum momento e sem maiores compromissos, marcas que organizam nossas ideias. Rabiscamos tentando, de alguma maneira, dar forma concreta àquilo que se constrói em nosso pensamento. Esses rabiscos são uma possibilidade de tornar palpáveis raciocínios abstratos que, organizados sobre uma superfície qualquer — papel, pedra, tela, meio digital ou o próprio espaço —, adquirem sentido, retornando com maior acomodação ao nosso pensamento. Além do sentido individual e momentâneo que detêm nossos planejamentos, nossas primeiras contas infantis ou os mapas esquemáticos e sem proporção que fazemos para indicar um determinado lugar, as marcas de um artista sobre um determinado meio compreendem projeções: procuram esboçar aquilo que ainda não existe.
Em artigo intitulado Dummy Text, or The Diagrammatic Basis of Contemporary Architecture, publicado como texto de abertura ao livro Diagram Diaries, do arquiteto Peter Eisenman, Robert Somol define os diagramas "como a primeira instância a operar precisamente entre a forma e a palavra”.1 (SOMOL, 1999, p.8). Essa afirmação é crucial, pois a situação intermediária em que Somol identifica o lugar dos diagramas indica que esses são um meio de representação gráfica flexível, uma espécie de registro do processo de projeto. Como um meio de representação mais aberto a diversas possibilidades de desenvolvimento, isto é, com maior mobilidade do que a notação arquitetônica tradicional, o diagrama "é um dispositivo de execução, mais do que de representação"2 (SOMOL, 1999, p.8), o que equivale a dizer que, considerando as proposições espaciais, o diagrama realimenta o raciocínio do arquiteto ou do artista funcionando de maneira operativa.
Operar, nesse caso, implica transformar a realidade pela representação. Toda representação é uma ficção, ela nos coloca diante de uma maneira de ver, uma interpretação. Dessa forma, toda representação comporta, como ressalta Quatremère de Quincy,3 algum grau de ficção, isto é, de invenção de algo imaginado, algo que não existe, mas que poderia existir. Esta digressão pela teoria acadêmica permite trazer para o contexto da produção contemporânea que nela se enraíza uma dimensão operativa frequentemente negligenciada do papel dos meios de representação nas proposições espaciais. A representação, sob o ponto de vista operativo, não é apenas um registro ilustrativo, como se o projeto surgisse da manipulação abstrata de dados previamente ordenados; tampouco constitui o subproduto de uma criatividade inata que concebe o objeto independentemente do trabalho de desenvolvimento de uma ideia que, na realidade, é construída no próprio fazer.
Diagramas Negligenciados
A ideia de que o diagrama é fundamentalmente operativo traz à tona questões que estão por trás das relações de conhecimento no que diz respeito aos meios gráficos. De acordo com Catherine Recanati, "ainda que amplamente utilizados, os diagramas têm há longo tempo sofrido da reputação de serem apenas uma ferramenta heurística na busca de solução, um simples suporte para a intuição"4 (RECANATI, 2005, p.9). Essa noção é herdada da lógica tradicional, na qual a validade do raciocínio só é comprovável por meio de modelos lógico-linguísticos ou lógico-matemáticos, e, sob esse ponto de vista, a noção que toma os diagramas como meros suportes para intuição desqualificou-os como provas. Os diagramas foram, dessa forma, postos de lado, considerados como configurações que não eram tornadas públicas, pertencentes a uma espécie de lado obscuro, mas que hoje vêm à luz trazendo novas abordagens interpretativas. Essa desqualificação dos diagramas, com todas as implicações metafóricas e não geométricas que esses instrumentos necessariamente contêm, é, sob o ponto de vista desta argumentação, uma perda quanto à possibilidade de desenvolvimento de novas técnicas de invenção ou de novas alternativas notacionais. Vale lembrar que os raciocínios lógico-matemáticos compreendem as configurações geométricas e mensuráveis que são base da representação arquitetônica tradicional e, principalmente, que essa matriz “geometrista” tem implicações nos esquemas espaciais e não apenas nos esquemas gráficos.
Entre a forma e a palavra
Na exposição intitulada Notations: Kalkül und Form in den Künsten5 (2008/2009), uma seleção de anotações diagramáticas de Benjamin foi reunida, juntamente com uma seleção bastante variada de documentos e obras de diversos artistas. A inclusão das anotações gráficas de Benjamin em uma exposição sobre o tema das notações foi o ponto de partida para considerá-las, nesta argumentação, sob o ponto de vista dos diagramas.
É possível aproximar a afirmação de Robert Somol, em que os diagramas estão situados entre a forma e a palavra, da ideia enunciada com respeito a algumas anotações que fazem parte do acervo dos arquivos de Walter Benjamin6: desenhos diagramáticos “que fornecem os elos de ligação entre ideias iniciais e os primeiros esboços” 7 (WIZISLA, 2007, p.3), ou ainda, formas gráficas consideradas como “constelações: ordenações espaciais, bipolares ou elípticas, em que conceitos ou figuras de pensamento existem em intenso relacionamento um com o outro”.8 (WIZISLA, 2007, p.3).
O diagrama Lullaby Drawing (Fig. 2), demonstra um pensamento solto de Benjamin que teria sido feito sob o efeito do uso da mescalina.9 Nesta anotação diagramática, Benjamin rabisca o movimento do embalo de uma canção de ninar ao desenhar uma linha e suas circunvoluções que, por sua vez, abraçam a escrita como um conjunto moderno. Em Lullaby Drawing, as palavras reforçam as curvas em espirais e sugerem o sono que sentimos ao sermos embalados; assim, a indefinição da forma e a sugestão apresentada pelas palavras, juntas, diagramam livremente a ideia de sono e embalo que apreendemos ao ver a imagem produzida por Benjamim. Nesse sentido, o diagrama seria uma possibilidade de representação do movimento, portanto, um sistema notacional mais adequado do que o sistema convencional.
De maneira semelhante, os diagramas coreográficos de Merce Cunningham mostram desenhos sintéticos, inicialmente vacilantes (Fig. 3), que avançam em complexidade ao se reafirmarem com a multiplicação de uma forma sobre si mesma (Fig.4). São diagramas de movimentos que seriam executados posteriormente pelos bailarinos; mas são também diagramas que procuram anotar os movimentos dos bailarinos para que esses movimentos fossem reproduzidos depois. Em qualquer sentido, esses diagramas constroem uma ponte entre o pensamento do coreógrafo e o movimento do bailarino, operando apropriadamente, nesse caso, entre forma e movimento. A composição do diagrama consoante com as performances fica evidente se compararmos os esboços da peça "Summerspace" (Fig. 4), com um diagrama feito para "Roaratorio" (Fig. 5): são claramente composições e performances diversas.
Diagramas e intuição
Os diagramas nunca estiveram ausentes, mas apenas encobertos, compondo códigos que se clarificam mais facilmente agora, quando passam a uma categoria “mais do que intuitiva”, considerando que a intuição foi, também, desqualificada e considerada como algo além do sensorial, algo extrassensorial. Para Kant, há uma divisão entre a “sensibilidade”, que permite intuirmos um conhecimento, e o “entendimento” que nos capacita a conceituar o conhecimento intuído. Trata-se então de, com base em Kant, requalificarmos a intuição em suas qualidades sensoriais considerando que são os sentidos e suas relações que nos capacitam a conhecer. A intuição é, dessa forma, um conhecimento anterior e necessário a uma posterior conceituação. Esse é também o papel fundamental dos diagramas.
Ainda que a lógica matemática tenha mantido esses documentos em segundo plano, hoje são os meios informatizados ou de inteligência artificial que vêm reabilitando os raciocínios por diagramas como meios inferenciais de representação do conhecimento. De acordo com Zenon Kulpa (1994, p.79/3), “um resultado inicial da pesquisa sobre a representação do conhecimento foi a discriminação de dois tipos principais de representação: as chamadas representações analógicas (ou diretas) e as representações proposicionais (ou Fregeanas, ou sentenciais)"10. No entanto, o que se observa na prática são sistemas híbridos de representação11 utilizados nas linguagens computacionais.
Catherine Recanati, em seu artigo Raisoner avec des diagrammes: perspectives cognitives et computationnelles, já citado, faz um breve apanhado das principais teorias que surgiram a partir da década de 1990 buscando desmontar os prejuízos imputados aos diagramas. Dentre os principais teóricos, destacam-se Barwise e Etchemendy, para os quais ter tomado como paradigmáticos os raciocínios válidos em matemática, na lógica tradicional, levou a uma explosão de resultados e aplicações; no entanto, “manteve negligenciadas as formas de raciocínio que não se enquadram bem nesse modelo, como os raciocínios que usam dispositivos como os diagramas, gráficos, quadros, frames, malhas, mapas e imagens" (BARWISE; ETCHEMENDY apud RECANATI, 2005, p.11).12
De acordo com Rogério Oliveira, em tese intitulada Construções Figurativas: representação e operações no projeto de composições espaciais: traçados, modelos, arquiteturas, há "pertinência em falarmos de uma condição figural do conhecimento, integrada em seus próprios termos ao desenvolvimento cognitivo como um todo" (CASTRO OLIVEIRA, 2000, p. 47):
[...] em Lógica e conhecimento científico (Piaget) dá margem a uma explicação ainda não inteiramente acabada, mas já inequívoca: a "representação concreta" (imagística) do modelo permite sua matematização, mas uma vez matematizado, o "modelo, com isso, não desaparece, o que mostra que ele não tinha uma função exclusivamente heurística, mas igualmente explicativa" (Piaget, 1967c, p774). O reconhecimento da necessidade da representação concreta do modelo poderá ter parecido, no final dos anos sessenta, uma concessão estranha a uma epistemologia que parecia advogar, sem mais nem menos, a suficiência e supremacia final das formalizações lógico-matemáticas. (CASTRO OLIVEIRA, 2000, p.46).
No projeto, essa condição figural do conhecimento a que se refere Castro Oliveira se apresenta em sistemas notacionais que constituem a base de sistemas de representação, mais abrangentes, capazes de veicular uma proposição arquitetônica ou espacial – um modelo – independentemente de sua eventual e posterior materialização como lugar edificado. O modelo é a representação do objeto projetado: ao ser inscrito numa base material (o papel, a tela do computador, a maquete), ganha plena autonomia como obra documental, ocupando seu lugar na produção do artista ao lado da obra construída.
Mas, ainda que autônomo, o modelo imagístico ou concreto tem propriedades que se materializarão apenas espacialmente — e não graficamente. Nesse caso, se incluirmos os diagramas como parte da obra documental, o modelo ganha a função de demonstrar visualmente o que é chamado em Inteligência Artificial de “propriedades emergentes”, ou seja, as propriedades implícitas de algo que ainda será configurado em suas plenas propriedades, uma sensibilidade ou intuição, nos termos de Kant.
Nos desenhos de Mies van der Rohe para o Pavilhão de Barcelona (Fig. 6), vemos, primeiramente, um esboço ou diagrama que sugere, quase como uma imagem fantasma, uma organização espacial que, sabemos, deu origem ao Pavilhão Alemão para a exposição de Barcelona em 1929; a imagem seguinte (Fig. 7) apresenta uma sobreposição de imagens um tanto abstratas, por isso mesmo, de cunho notacional. O arquiteto opta, na perspectiva interna, por uma imagem que apresenta reflexos e vistas sobrepostas que, ainda que respeitando uma montagem geométrica da perspectiva, avança além da montagem pragmática dos planos corretamente perspectivados; o desenho de Mies van der Rohe é uma representação que propõe qualidades inerentes ao projeto.
Propriedades emergentes
As representações espaciais que interessam a esta argumentação levam em conta propriedades que são emergentes no projeto e que se constituem no próprio espaço, como o movimento e as coreografias no espaço construído ou arquitetônico. Portanto, as representações que as configuram são notações que estão além das plantas baixas, cortes e fachadas; são representações que se valem de diagramas — como nos exemplos — capazes de demonstrar propriedades que se constroem no espaço, mas que são ainda emergentes no projeto, necessitando, para se clarificarem, de um trabalho com os diagramas.
As noções de representação e notação se confundem e sobrepõem, mas a argumentação acerca dos diagramas, que se estrutura nesta reflexão, busca esclarecer uma distinção entre as meras formas de representação e as notações propriamente ditas. Para Stan Allen e Diana Agrest, as notações vão além do visível para engajar aspectos invisíveis da arquitetura, incluindo efeitos de luz, sombra e transparência, som, cheiro, calor ou frio, mas também — e talvez mais significativamente — programa, evento e espaço social. Estariam aí inseridas as propriedades emergentes que se constituem no próprio espaço, como o movimento ou a coreografia. Dito de outra forma, o uso de uma notação marca a mudança de um objeto demarcado (representação) para um campo estendido (notação). No entanto, mesmo esses autores, que estendem o uso de notações além das fronteiras convencionais, fazem uma distinção entre diagramas e notações que se assemelha ao débito da lógica matemática com relação aos raciocínios figurais. Em sua argumentação, os diagramas permanecem instrumentos a serviço de sistemas notacionais ainda convencionais.
Em Linguagens da Arte, Nelson Goodman enfrenta com rigor técnico e filosófico o árduo tema da teoria das notações. Para Goodman, existem requisitos semânticos e sintáticos para que um sistema seja considerado notacional: é necessário que os caracteres desse sistema sejam disjuntos (requisito semântico) e é necessário que a diferenciação dos caracteres seja finita e articulável (requisito sintático), isto é, uma notação não permite dúvidas ou ambiguidades na leitura que se faz dela.
Com base em Nelson Goodman, Stan Allen e Diana Agrest ressaltam a distinção entre notações e diagramas destacando que estes são, ao contrário das notações, abertos a múltiplas interpretações. No entanto, esta reflexão busca indicar que as qualidades interpretativas dos diagramas não os tornam secundários ou menos notacionais; além disso, os sistemas notacionais apresentam pontos em que as notações não se validam como veículo de significados previamente estabelecidos, portanto, abertas a possibilidades interpretativas nem sempre compartilhadas. Nesse caso, quando se perdem os pontos que estruturam as convenções de interpretação compartilhadas, os diagramas passam a ter uma função notacional, dado que são eles que poderão servir de argumento para novas possibilidades interpretativas desejadas a priori e, por vezes, novas possibilidades interpretativas anexadas aos significados iniciais de uma obra.
Para Stan Allen "aqueles aspectos do espaço e da organização contidos em uma notação, tais como a posição do corpo de um dançarino no espaço, seriam diagramáticos, enquanto toda a marcação restante, seria notacional"13 (ALLEN, 2009, p.49-50). Sugestivamente o tempo e, consequentemente, o movimento seriam variáveis não representáveis pela notação convencional e, para sua representação, necessitariam dos diagramas. O sentido da distinção entre diagramas e notações, diante de algumas camadas da composição arquitetônica — ou do projeto de espacialidade diversas — como o movimento, parece se perder. Portanto, a argumentação desses autores que fundamentalmente interessa para esta argumentação, é a de que, "paradoxalmente, a forma seca e não emocional da notação, a qual não tenta aproximar-se da realidade por semelhança, é mais capacitada a antecipar a complexidade e a imprevisibilidade do real [...]"14 (ALLEN, 2009, p.45).
Ora, se reconhecemos a imprevisibilidade do real, há que se aceitar os diagramas e suas indeterminações como instrumentos notacionais qualificados e operativos diante do espaço contemporâneo.