Se situarmos o marco zero de nossa cultura nos textos de Homero (século IX a.C.) e Hesíodo (VIII a.C.), temos dois mil e oitocentos anos de conceitos como arte, democracia, educação, jurisprudência, cidadania e outras noções que pautam nossas vidas até hoje. Seis partes de todo esse processo histórico já haviam sido transcorridas há quatrocentos anos, no ano de 1615, quando o europeu expandia territórios colonizando regiões pertencentes a povos com menor tecnologia bélica. Arte e Ciência só terão designações claramente distintas trezentos anos depois, sendo que podemos pensar que apenas em 1915 essa separação já seria possível, ao passo que em 1715, tampouco 1815, arte e ciência dificilmente poderiam ser consideradas contrárias ou circunscritas em diferentes espaços, como os do infográfico do Centro de Ciências de Ontario aqui reproduzido. A configuração do que entendemos como conhecimento está implicada na disseminação de material gráfico que trata das matérias que se dão a conhecer. Após duzentos anos da invenção de Gutenberg, a prensa de tipos móveis, que permite produção de textos até então copiados a mão, a segunda metade do século XV começa a dar volume a conhecimentos outrora restritos, possibilitando a venda e a distribuição de materiais gráficos por toda Europa e colônias. O desenvolvimento da gravura em metal possibilita um refinamento das reproduções gráficas nunca antes visualizado, aproximando o material impresso da qualidade das obras monumentais que são erguidas nesse período.

É preciso voltar a esse contexto barroco para compreender como, até o século XVIII, tempo que até hoje é apenas um sétimo de toda essa história, as concepções quase opostas que atualmente distinguem a arte da ciência, nunca existiram, isso tanto na acepção vulgar dos termos como na literatura de cunho mais erudito. A literatura que hoje precede a ciência advinha especialmente das Academias, instituições de ensino superior que se propagaram no século XVII; fomentadas pelos reinos, paulatinamente tomavam o espaço secular das Universidades medievais ligadas à Igreja, que também se moderniza. Em 1615, a Igreja Católica detém grande montante de publicações e dissemina suas escolas, sendo importante destacar a ampla produção de livros e tratados sob o selo da Companhia de Jesus. Além das missões evangelizadoras encontradas no processo de colonização e da constante influência na política inquisitorial que prevaleceu por aquele século, os jesuítas detiveram o controle de pesquisas e de grande montante do conhecimento produzido na Europa.

Embora a noção racional, cética e empírica de Ciência, que começa a emergir no século seguinte, advenha de um movimento intelectual anticlerical, não é possível compreender essa concepção sem considerar o aristotelismo escolástico deixado pela Igreja, cujas bibliotecas perpassam a cultura livresca no Ocidente. Desse legado, temos a distinção dual, ainda sentida nos dias atuais, entre um saber aplicado, empírico, técnico e um conhecimento de caráter mais abstrato e conceitual tomado como “superior”. Contudo, apesar dessa distinção advinda de Aristóteles, o que predominou desde a Antiguidade Clássica, seguindo a perspectiva presente nos diálogos de Platão, era a noção de que toda atividade e conhecimento humano o distinguia da natureza. Isso permite encontrarmos, entre os romanos, expressões como Ars Bellica, Ars Judicandis, Ars Erotica, para tratar de técnicas e práticas ligadas a táticas e estratégias de guerra, a questões de Direito e aos prazeres do sexo. Nos textos clássicos como os de Plínio, Galeno, Sêneca, Marco Aurelio, toda essa diferenciação da atividade humana em relação à natureza, num rol muito amplo de saberes e práticas, era designada Ars. Somente no século das Luzes a palavra sciencia, após impregnação do uso escolástico no sentido de consciência e de verdade, vem expressar a superioridade do conhecimento obtido pelo estudo, exames e análises pormenorizadas, começando, então, a ser empregada para designar saberes e práticas que irão delimitar o que hoje tratamos como “áreas” ou “campos” de conhecimento. O que a secularidade eclesiástica chamou disciplina, na qual uma matéria era tratada junto a discípulos por aquele que dela tinha mestria, configurava as Ars Liberalis, disciplinas que compunham o currículo das Universidades medievais. Embora não existisse mais a Ginástica, praticada como eixo da educação clássica na antiguidade, as escolas medievais seguiam a paideia grega, de modo que o currículo escolástico incluía a Gramática, uma das disciplinas da etapa inicial chamada Trivium, a qual também incluía a Retórica e a Lógica (ou dialética) e a Música, que fazia parte do Quadrivium. Um eclesiasta formado padre comum completava seus estudos com o Trivium, sendo que o estudo da Música, da Aritmética, da Geometria e da Astronomia, os quais consistiam no Quadrivium, eram exigidos como a base para o doutoramento. Tais conhecimentos, incluindo a Arquitetura e a Medicina, advinham da antiguidade, sendo a arquitetura, por lidar com construções mundanas, e a medicina, por tratar do corpo, não mais consideradas conhecimentos libertadores do espírito como os praticados pelas escolas eclesiásticas. As Artes Liberais se opunham às Ars Servilis, artes ligadas a ofícios, artesanias, engenhos e técnicas. Na cultura clássica, de origem helenística e tradição alexandrina, a arquitetura e a medicina foram consideradas artes liberais, porém, nas escolas medievais não entraram no curriculum. Chamada Arte Real, a arquitetura envolvia preceitos práticos e conhecimento empírico de aritmética, geometria e astronomia, mas envolvia conhecimentos práticos aprendidos nos próprios canteiros e campos de obras. Por outro lado, os conhecimentos fisicistas, ou Ars Curandi, que podem ser entendidos como rudimentos do que vem a ser a medicina moderna, eram difusos e podiam ser encontrados em textos de disciplinas e filosofias dispersos em relação ao que hoje compreendemos como áreas de conhecimento. É possível encontrar noções de anatomia, fisiologia, patologia e farmacologia no que, desde o século XII, vinha sendo designado Ars Philosophorum, o que podemos traduzir como arte “amiga” de tudo o que consistia o saber.

As relações entre todas as matérias da natureza, práticas humanas e diversos signos passíveis de serem estudados, eram abstraídas num sistema simbólico numérico, alfabético e astronômico, no qual todas as coisas do macrocosmos e do microcosmos eram combinados sob a égide de forças determinadas entre os sete céus de Ptolomeu, o eneagrama da numerologia de Pitágoras e os quatro elementos presentes no zodíaco duodecimal herdado dos caldeus. No Renascimento, entre os séculos XIV e XVI, sob o impacto da difusão das artes combinatórias de Ramon Llull, filósofo catalão em contato com saberes árabes e judaicos que viveu no século XIII, o que se designava como filosofia trazia não apenas considerações linguísticas e conceituais envolvendo prospectos lógicos, advindos dos tratados estudados junto às Artes Liberais, mas também elementos de botânica e “História Natural”, configurações cosmogônicas, diagramas cabalísticos, matemática e experimentações alquímicas. A alquimia, chamada “Arte dos Filósofos”, não apenas operava com a combinatória como também apresentava procedimentos do que, na acepção contemporânea, poderiam ser considerados protocientíficos. Desde que a fabricação de prensas começa a ser difundida pelas principais cidades da Europa, a propagação de gravuras e textos impressos propicia que escrituras e esquemas mnemotécnicos não fiquem restritos a mosteiros e bibliotecas como antes, e sim sejam disseminados por burgos, cidades e nas academias laicas que começam a ressurgir. Na Renascença, um filósofo, “amigo do saber”, era alguém que transitava entre oficinas, feiras, palácios, cortes e universidades, instruindo e sendo instruído num rol bastante amplo de saberes que, por sua amplitude, também aparecem sob a alcunha de Llull, Ars Magna ou Grande Arte. Leonardo Da Vinci é um dos exemplos mais notórios desse tipo de sábio, entre os quais também podemos citar Paracelso, Giordano Bruno, Girolamo Cardano, Robert Fludd, Basilio Valentino, Galileu Galilei e, em 1615, o jovem estudante, filho de um erudito, Athanasius Kircher.

Padre jesuíta, autor de tratados como Ars Magnesia, Ars Magna Lucis et Umbrae, livros que precedem a física e a química, inventor da Lanterna Mágica, dispositivo que antecede o cinema, Kircher escreveu um tratado de combinatória que, devido a pretensão de abarcar o conhecimento universal, pode ser considerado uma protoenciclópedia. Ars Magna Sciendi, publicação de 1669, mostra a emergência da palavra ciência como designação para um saber legítimo, universal e esclarecido, passando a circular nos meios acadêmicos e intelectuais. Ainda assim, a maior parte dos estudos desenvolvidos nesse período, mesmo que hoje possam ser considerados textos dos primórdios de campos ditos Ciências, ainda se fazem valer da palavra arte para dar vigor a seus propósitos. O que, desde o Renascimento, passa a ser chamado de Belas Artes inclui não apenas realizações da Pintura, da Escultura e da Arquitetura, de extrema relevância para a imponência e fortificação dos Reinos, mas também saberes ensinados em Academias. O status das Belas Artes, neste período, era igualado às seculares Artes Liberais. As Accademias italianas e, posteriormente, as Academias de Belas Artes, antecedem as academias ditas científicas não apenas em datas, visto o próprio nome Arte aparecer em trabalhos que hoje seriam estritamente situados no que consideramos Ciência. Um exemplo é o tratado do francês Nicolas Andry de Boisregard, L’Orthopédie, ou l'Art de prévenir et de corriger dans les enfants les difformités du corps, de 1741, criador do termo Ortopedia, cujo subtítulo pode ser traduzido como A arte de prevenir e de corrigir desde a infância as deformidades do corpo.



Quando, em 1772, Denis Diderot e Jean D’Alembert publicam a Enciclopédia, ou Dicionário Raciocinado das Ciências, das Artes e dos Meios, é possível ver o conceito de ciência em fonte maior, portanto em destaque, antecedendo como nunca antes a palavra Artes, agora do mesmo tamanho e na mesma linha que os “meios” ou “mídias”. No diagrama do que os enciclopedistas chamam de Sistema Figurativo do Conhecimento Humano, a palavra arte, então, ganha a noção de feitura ou habilidade. Nesse esquema, o entendimento se divide em três grandes chaves, cada uma relativa a uma faculdade: a da Memória, onde se encontram a História e a História Natural, a da Razão, onde a Filosofia engloba as Ciências da Natureza (Matemática e Física) e as Ciências do Homem, e a pequena chave da Imaginação, que abre uma única chave, a da Poesia, a qual se designa aos gêneros literários narrativos, dramáticos e alegóricos, sendo que a Música, a Pintura, a Escultura, a Arquitetura e a Gravura se colocam fora das chaves, numa linha paralela junto a menor de todas as faculdades. Dentro desse desenho, as artes, em especial aquelas compreendidas na contemporaneidade como plásticas ou visuais, em suas diversificadas mídias, não são consideradas nas grandes chaves do conhecimento. A Lógica, presente na grande chave das Ciências do Homem, engloba a “Arte de Pensar”, a “Arte de Reter”, ligada à memória, e a “Arte de Comunicar” a qual abre a chave da Ciência dos Instrumentos do Discurso} Gramática (que abre a chave dos Signos, da Filologia Crítica, da Construção Sintática e da Pedagogia, assim como a chave da Ciência da Qualidade do Discurso} Retórica e Mecânica da Poesia ou Versificação. A Arte também figura na chave da Memória no que tange aos Usos da Natureza, abrindo as chaves dos trabalhos manufaturados e artesanais. Ao tomar a arte como meio na chave dos “Suplementos da memória” que pertencem à “Arte de Reter”, ou conservação da memória, (Artes de escrever, de ler, de imprimir, de decifrar), mais uma vez, o termo arte se reduz a meios e técnicas e não a um saber em si. Além de excluir o que trata como arte do caráter epistêmico dos conhecimentos que começam a se tornar científicos, o sistema iluminista afasta conhecimentos próprios da Arte na chave da Matemática, na qual encontram-se a ótica, a dióptrica, a perspectiva e a geometria, assim como da subchave da Mecânica. Podemos, assim, concluir que as Luzes separaram a poética de conhecimentos que o século XIX toma como necessários e essenciais ao progresso.

De algum modo, o esquema iluminista reverbera nos preconceitos e dificuldades que a arte encontrará a seguir, como é possível acompanharmos nas biografias de artistas, críticos e estudiosos da arte durante os movimentos que sucedem o neoclassicismo. Enquanto campo de conhecimento transdisciplinar de ampla gênese, as artes, em suas múltiplas facetas, possuem uma inserção incerta nas políticas ditas “progressistas” das nações estatizadas. A ênfase nas artes aplicadas, ofícios e técnicas industriais como relevantes ao progresso, originária no aristotelismo da educação jesuítica, reforça as acepções do Iluminismo das artes legadas ao “fazer”. A industrialização traz uma economia que desconsidera a epistemologia das artes em suas forças éticas e estéticas. Perante conhecimentos delimitados em áreas que apartam saberes transversais entre si, na medida que a ciência se torna sinônimo de um “bom” conhecimento, a arte chega ao ponto de precisar se afirmar “pela arte”. Desse modo, numa tendência oposta aos cientistas e experimentadores de antanho, estudos e pesquisas em Arte trazem, em diversos casos, a palavra Ciência para legitimar academicamente seus procedimentos e suas produções. Colocar as chaves dos conhecimentos em áreas estanques, em campos que pouco se comunicam a partir de saberes estritamente especializados é um problema sentido por artistas, diversos trabalhadores da arte e pesquisadores do que se configurou, especialmente ao longo do século XX, a arte enquanto campo que luta para legitimar seus conceitos. O alcance desse problema não se esgota nesta simples amostragem, entretanto, ela permite reverter a proeminência das ciências no ano de 2015, dando subsídio para repensarmos as funções e o papel da arte dentro do que esquematizamos como conhecimento nos últimos quatrocentos anos.


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Frontispício Ars Magna Sciendi sive combinatoria, Amsterdan, 1669. Obra na Diapositiva da Biblioteca Histórica da Universidad Complutense Madrid. Fonte da imagem: Tomash Collection.

Capa XII tomo Ars Magna Sciendi, Amsterdan, 1669. Obra na Diapositiva da Biblioteca Histórica da Universidad Complutense Madrid. Fonte da imagem: Tomash Collection.

Capa da Enciclopédia, “com aprovação e privilégio do Rei”, 1751. Fonte: imagens Wikipédia.

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