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Tudo começa por tocar e ser tocado. A obra de arte abandona o atelier do artista para se insinuar nas paredes do museu. Recebe olhares tão inquietos pela troca, que se comprazem nas primeiras aparências. Em resposta ao olhar ansioso, a obra fecha-se, restrita ao primeiro sentido encontrado. Tão logo se vê insatisfeito, esse olhar a abandona. “Amor à primeira vista geralmente não vinga, a não ser que seu resultado não seja só amor à primeira vista” (DE DUVE, 2004, p. 36). Assim como quando habitava o atelier do artista, a obra exige paciência, atenção, cuidado para revelar-se além da sua materialidade imediata. É preciso diálogo e, nas palavras de Thierry de Duve, carícia: “se a obra mexe com você, toca-o, então toda questão teórica que você dirija a ela é como uma carícia”(DE DUVE, 2004, p. 39).

O teórico e crítico Thierry de Duve propõe que pensemos o encontro com o objeto artístico do ponto de vista da relação amorosa. No texto Reflexões críticas: na cama com Madonna (2004) discute o exercício crítico, pontuando as ações que marcam seu processo de escolha, de reflexão e de escrita sobre determinadas obras. Aceitei a proposta de considerar os pressupostos do teórico belga na visita à exposição Feira de Ciências de Romy Pocztaruk – ocorrida em 2014 no Santander Cultural, em Porto Alegre1 – buscando a leitura de uma das obras da mostra2. Buscarei também partir do método de escrita de de Duve: narrar em primeira pessoa a relação com a exposição e com as obras, de forma a expor os mecanismos que levaram a possíveis leituras.

 

Em visita à exposição, primeiramente circulei entre fotografias, pequenas instalações, pinturas, apropriações. Foi possível identificar, em um primeiro olhar, que a artista lança mão de diferentes técnicas na produção de seus trabalhos e que o título da exposição – Feira de Ciências – referia-se ao processo de criação da exposição, que partiu da visita da artista a um Museu de Ciências Naturais na China. Guilherme Bueno, no texto curatorial exposto logo na chegada, oferecia pistas para modos de leitura:

Os seus trabalhos [da artista] se caracterizam por uma transposição de métodos ou objetos de uma disciplina qualquer para a esfera da arte, em nosso caso, majoritariamente daqueles registros provindos da ciência. Colecionar, classificar, retornar algo ao real. Indicam que a relação entre um método e o resultado dele esperado varia conforme o campo que operam.(BUENO, 2014, p. 10).

Passei então a observar essas imagens vindas de outras disciplinas, que ocupavam, pelo gesto de Romy, o espaço do museu de arte. Ao observar, procurava. Segundo Thierry de Duve, a condição primeira para propor um exercício crítico ligado a uma obra de arte é “tocar e ser tocado” (DE DUVE, 2004, p. 39). Era isso que eu procurava: algo que saltasse aos olhos, tocasse não só no sentido intelectual, mas também incitasse a vontade de tocar, de tomar nas mãos para olhar mais de perto, como criança quando não consegue segurar o interesse genuíno em tomar nas mãos e sentir o que a desperta. Mas para isso precisava estar em liberdade e suspender a necessidade de escrita, para primeiramente sentir, como indica de Duve, que a obra me chamava.

E mesmo após ver toda a exposição, conversando com os colegas e dispondo de tempo para aprofundar leituras, a obra que me chamava a regressar era a primeira com a qual me deparei, na chegada da exposição. O que parecia me atrair especificamente para aquela obra era o que ela comunicava à primeira vista: a representação de uma música. Chamavam à atenção as pequenas perfurações que seguiam um ritmo e a meu ver representavam as notas musicais em partituras antigas. Defini de pronto que era sobre essa obra que gostaria de escrever, simplesmente porque me afetara como nenhuma outra, pela própria dificuldade de estabelecer, a priori, sua relação com as demais. Embora aquela grande mesa com suas três músicas me atraísse, eu não conseguia precisar o porquê. Mas, como comenta Thierry de Duve (2004, p. 36), nem sempre é o amor que define a questão: “As obras que disparam o desejo de escrever são aquelas que eu realmente não sei se amo ou não, e das quais extraio uma convicção forte o suficiente de que é isso precisamente que me arrasta para elas”.

Foi então que começou o flerte: precisava conhecê-la melhor. Seu nome ou, mais precisamente, seu título? Pianola. O que é a pianola? Conversando com colegas descubro que é um instrumento, semelhante a um piano, criado para executar canções mecanicamente, sem que fosse preciso o dedilhar de um músico3. Comecei a fazer anotações, quando percebi que o que me desesperara na obra era o desejo de saber por que a artista me compelia a ver o que a rigor foi criado para ser ouvido. Ao olhar as partituras dispostas inteiramente na mesa, tentava perceber que tipo de música, ritmo e cadência aquelas perfurações na folha sugeriam. Mas de Duve (2004, p. 37) novamente se colocava, sugerindo que quem sabe era esse mistério, o mistério daquela obra, que me atraía: “Definir que sou para ela [a obra] atraído tem tudo a ver com o não saber o que a obra significa e com definir que ‘consequentemente’ ela deve ser significante”.Decido então seguir a estratégia do flerte, desenvolver o diálogo: enviar questões teóricas à obra para ver o que ela responde. Já havia sido tocada e agora precisava buscar a troca, tentar tocar.

Embora pianola fosse o nome da obra, ela não estava presente como um todo, enquanto equipamento, na exposição. Em outras obras, a artista usou a música propriamente dita, mas nessa obra especificamente, o que dava a ver era o código. Após tentar decifrar aquelas músicas, vi que elas não me fariam chegar mais perto de um possível significado, pois o código, a ideia da partitura em si se sobrepunha. E existia uma linha que percorria as três partituras, denominada como linha da melodia. Ela deixava ainda mais clara a ideia de código intrínseca à própria obra. Como uma linha pode representar uma melodia? Era uma maneira de criar no plano do código uma forma de representar a música em sua evolução, quando executada. Segui, então, essa pista, como exercício de observação.

Os dioramas fotografados por Romy também traziam essa ideia de código: uma maneira de representar, no espaço limitado de uma caixa de vidro, um recorte do ambiente natural. Assim como a música,constituíam um código de leitura para se referir ao real. A prova disso estava na existência de três partituras, que apresentavam o mesmo formato e padrão, bem como na organização do diorama, que assumia um mesmo formato em todos os museus de ciência – do Brasil à China. Muito embora essa questão do código de representação aceito e incorporado a determinadas disciplinas – como a música e a ciência – representasse agora uma forma de leitura, não parecia que esse caminho conseguiria me levar mais longe. Resolvi seguir outro rumo, perseguindo as palavras de de Duve (2004, p. 38): “Minha tarefa é desenterrar e tornar explícito o pensamento teórico que nela [na obra] segue implicitamente”.

Logo, a exposição sugeriu outra forma de ler a Pianola. A ideia surgiu por meio das palavras de um colega, que observava em voz alta durante a exposição, que embora os dioramas fotografados por Romy no Museu de Ciência da China contivessem a ideia de preservação, a artista enquadrava as fotografias de forma a mostrar que essa lógica não se estendia ao ambiente do museu.

No espaço que circundava o diorama – delimitado como espaço de preservação – a foto revelava as rachaduras, infiltrações e ranhuras das paredes do museu, que contrastavam com o cenário pretensamente natural do diorama. Com aquele enquadramento, Romy possibilitou que eu fosse além da constatação de um código de representação nos dioramas; que eu fosse além, ainda, da ideia de preservação que os dioramas fundam; a artista deslocou meu olhar para a lógica da ruína. Eu tinha consciência de que não era a primeira vez que Romy trabalhava com esse tema – em outros trabalhos da sua carreira, a ruína aparecia como algo a ser trabalhado, pensado, desvendado.4 E voltando à Pianola, embora o título denotasse uma máquina, um dispositivo, não era isso o que ela dava a ver. A artista trazia para o espaço expositivo apenas vestígios da pianola: partituras tornadas inúteis com o declínio do instrumento, relegadas ao esquecimento, à falta de propósito, à ruína.

Esse parecia um caminho para pensar a obra, mas fiquei me perguntando se não fui levada a ele pelo fato de já ter conhecimento de outros trabalhos da artista, que fundamentavam essa forma de leitura. Soava ainda um pouco forjado lançar mão desse rumo de leitura, pois esse não emergira da obra em questão, mas de outros elementos da exposição e da poética de Romy vista como um todo. De Duve já avisara em seu texto que, muitas vezes, as imagens são enganadoras; e parecia correto continuar a lançar perguntas, sem procurar uma resposta única.

Foi então, pensando na pianola, flertando com o vestígio, perguntando-me quem havia criado aquelas partituras, quem havia convencionado um código para o diorama, quem estava por trás daquelas imagens de que Romy apropriou-se, que encontrei outro modo de ver. Ao invés de partir da exposição para a obra, finalmente me achei na via contrária. Afinal, resolvi partir da reflexão sobre a própria pianola. A pianola foi criada para reproduzir com exatidão as interpretações de músicos. Ela demonstrava a execução das partituras a partir de um registro convencionado e padrão. O funcionamento mecânico da pianola permitia que aqueles rolos de música fossem executados sem que ninguém se perguntasse sobre a figura do autor. A pianola apagava a figura do músico. Quem tocava, a rigor, diante dos olhos da plateia, era o próprio piano. Assim, a cada nota, a pianola concretizava o apagamento do autor. Ao expor o rolo de música, no entanto, e não a própria pianola, Romy Pocztaruk desloca seu sentido, dando a ver que o automático só pertence a máquina, e o que está por trás dela é uma partitura realizada pela mão humana. E eis que na obra fica evidenciado um trecho do rolo de música, que ficaria escondido se estivesse dentro da pianola, onde está declarada e assinada a seguinte sentença: “Este rolo de música é minha interpretação. Ele foi gravado por mim para a Duo-Art e eu autorizei seu uso neste instrumento. Assinado: Alfred Cortot.” (POCZTARUK, 2014, p. 6).



Da mesma forma, pensando as fotografias de diorama, as imagens de museus de ciências emprestam à cena a ideia de realidade, a pretensa ideia de um registro limpo e puro que pode ser encontrado em diferentes museus. As imagens da ciência surgem de métodos científicos, que buscam revelar uma verdade objetiva. E embora sejam resultado da intervenção humana na natureza, seu resultado enquanto imagem segue padrões que se repetem a ponto de nenhum visitante perguntar-se sobre como foram feitas. O que interessa é seu conteúdo, enquanto dado comprovado que atesta o real.5 A cada imagem, o apagamento do autor. Mas ao fazer a fotografia da fotografia, Romy Pocztaruk exibe a imagem enquanto apropriação, indicando que a primeira imagem, a referência para o deslocamento causado pela apropriação, também é fruto de autoria. Assim como a foto exposta na parede da exposição é uma imagem selecionada, feita pela artista para ali estar, também a imagem do museu de ciência não se refere a um procedimento automático. Sempre existe alguém por trás do registro.

Assim, a artista dá a ver que essa falta de arbitrariedade produzida pela execução da música sem intérprete ou pela exibição de imagens sem autor não passa de uma ilusão. Quando deslocadas para o museu de arte, outra forma de encarar esses registros se revela. E da mesma forma que Cortot, Romy se autoriza enquanto autora, conferindo outro status às imagens, pensando-as a partir de outro território.

Esse é, porém, apenas mais um modo de ver. Tudo termina, enfim, por tocar e ser tocado. A obra de arte abandona o atelier do artista para se insinuar nas paredes do museu. Romy traz um museu de ciência e um rolo de música para o meu universo. Apesar de todas as tentativas e aproximações, as obras mantêm-se como mistérios. E só o que me resta é o flerte.

1  A exposição reuniu obras de Romy Pocztaruk e contou com a curadoria de Guilherme Bueno, integrando o projeto RS Contemporâneo. Feira de Ciências ocupou de 20 de agosto a 28 de setembro o segundo andar do Santander Cultural, em Porto Alegre/RS.

2  A visita foi proposta pela Profª Drª Mônica Zielinsky na disciplina Leituras da Obra de Arte I, ministrada no segundo semestre de 2014 no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS.

3  Mais especificamente, a pianola pode ser definida como “um piano automático. As notas a serem tocadas são representadas por pequenas perfurações em rolos de papel intercambiáveis, enquanto o mecanismo é alimentado inteiramente pela sucção, gerada pelo funcionamento de dois pedais. [...] Durante as primeiras três décadas do século vinte, um número substancial de pianistas famosos converteram suas performances em rolos de música, por meio de pianos especiais dedicados à gravação.” (Tradução da autora) In: Pianola information and resources. Disponível em: http://www.pianola.com/.Acessado em: dezembro de 2014.

4  Para mais informações a esse respeito, é interessante consultar a série A última aventura (2011) e Lost Utopia (2012) no site da artista: http://romypocz.com/.

5  Para saber mais sobre o estatuto da imagem científica, pesquisar em: Latour, Bruno. O que é Iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008.

BUENO, Guilherme. Gaia Ciência (Anotações à margem de verbetes invisíveis). In: POCZTARUK, Romy. Feira de Ciências. Rio de Janeiro: Imago, 2014.

DE DUVE, Thierry. Reflexões críticas: na cama com Madonna. Concinnitas, Rio de Janeiro, ano 6, n.7, p.35-45, dez.2004.

POCZTARUK, Romy. Catálogo Feira de Ciências. Rio de Janeiro: Imago, 2014.

Vista geral da exposição Feira de Ciências, de Romy Pocztaruk, no Santander Cultural, Porto Alegre/RS. Fotografia disponível em: http://romypocz.com/Feira-de-ciencias.

Vista geral da exposição Feira de Ciências, de Romy Pocztaruk, no Santander Cultural, Porto Alegre/RS. Fotografia disponível em: http://romypocz.com/Feira-de-ciencias.

Romy Pocztaruk, Diorama II, 2014, Impressão jato de tinta sobre papel algodão, 100 x 150cm (POCZTARUK, 2014, p. 23).

Romy Pocztaruk, Pianola, 2014, 3 rolos de pianola e mesa de madeira(POCZTARUK, 2014, p. 6).