Muito se debate sobre a fotografia contemporânea, se ela ainda pode ser pensada como fotografia, com tudo que advém dos processos analógicos – a captação da luz, sensibilização do negativo, revelação, impressão; ou se o meio digital, a composição da imagem por pixels, por dados eletrônicos, teria dado lugar a um novo e complexo campo de pesquisa. Para pensar essas questões, é preciso voltar no tempo. O experimentalismo da imagem fotográfica aparece pela primeira vez na história da arte no final do século XIX, com a popularização dessa técnica. O primeiro passo neste caminho foi dado com a fotografia alegórica. Com ela, artistas como Gustav Rejlander e Peter Henry Emerson, utilizavam-se das características pictóricas para compor suas imagens e valeram-se de seus temas e estilos na construção das cenas a serem capturadas pela câmara. Com isso, eles almejavam “conferir à imagem técnica a mesma função social e cultural da pintura e conseguir ser reconhecida como arte maior” (FABRIS, 2012, p.18).
É nesse rastro que despontará o movimento pictorialista, que tem na figura do americano Alfred Stieglitz um de seus principais representantes. “Stieglitz demonstra seu desejo de afirmar a foto como uma forma moderna de arte”, como pontua Fabris (2012, p.46) Se o primeiro impulso era produzir fotografias que estivessem o mais próximas possível da pintura – como o próprio nome do movimento sugere –, considerando para isso as suas características, temas, materiais e acabamentos, por outro lado, foi à custa do experimentalismo técnico trazido por ele que a fotografia pôde verdadeiramente buscar e encontrar a sua autonomia. Assim, o pictorialismo, de forma controversa, acabou por libertar a fotografia do desejo de semelhança à pintura e foi responsável por abrir espaço à fotografia no campo artístico, inserindo-a nas coleções de museus e nas grandes exposições e inaugurando os debates sobre imagem e representação do real, que levariam ao estabelecimento da fotografia moderna.
Esta reflexão ganha corpo a partir de um olhar sobre um conjunto de obras da artista Samy Sfoggia. Imagens híbridas, que ficam entre a fotografia, o desenho, a gravura e a colagem, nos remetem a um repertório de referências históricas, convidando-nos a lançar um olhar anacrônico para suas obras, para refletir sobre a relação entre fotografia e arte. Tal exercício é, também, um convite à revisão da história da arte que, desde o seu princípio, relegou à fotografia um lugar à parte das “belas artes”.
Samy vive e trabalha em Porto Alegre. É formada em artes visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Sua primeira formação foi em História, tendo passado também por uma especialização em Arte, Corpo e Educação, na qual dedicou-se a analisar a obra do cineasta David Lynch, e um mestrado em Literatura Comparada – este último interrompido no meio. Esta breve biografia revela as etapas, referências e influências do seu percurso, que estão presentes e constituem a sua poética, mesmo que percebida, pelo público, implicitamente.
Normalmente começo a produzir as séries justamente quando eu deveria estar fazendo algo burocrático. Acredito que, assim como eu, muitas pessoas passam anos reprimindo sentimentos. Ao invés de ir a um terapeuta, resolvi produzir imagens com base nas minhas experiências. De certa forma, acho que funcionou. (SFOGGIA, 2016).
A liberdade de criar e, principalmente, experimentar com e a partir do meio fotográfico é o ponto central de sua obra. A câmera fotográfica analógica e o filme são o seu ponto de partida, desencadeando um processo posterior de manipulação manual e digital. O processo de revelação no laboratório é, para Samy, um de seus principais interesses e é de onde surge o princípio de suas imagens.
O que sempre me interessou na fotografia analógica foi o trabalho no laboratório, não tanto pela ampliação das imagens, mas sim pelo processo de revelação do filme, que era o momento no qual eu podia fazer experiências modificando o tempo de ação ou a ordem dos químicos, deixando que o “acaso” também estivesse presente no processo de trabalho. (SFOGGIA, 2016).
Uma segunda etapa, pós-revelação, divide-se entre a interferência direta no negativo, colagens e sobreposições, e a digitalização desse para, a partir disso, manipular a imagem digitalmente. Ou então, digitalizar o negativo, imprimir a imagem, manipular, redigitalizar, manipular digitalmente, imprimir novamente... Não há uma regra, há o desejo de experimentar os limites da imagem e da fotografia, das sobreposições e da criação de camadas de sentido. Tanto o negativo quanto a imagem impressa podem ser trabalhados manualmente com os mais variados meios: alfinetes, agulhas, lápis, canetas, arames, pregos, colagens, cola, tintas de todos os tipos, parafina de vela, etc. Nas mãos de Samy, qualquer material é passível de tornar-se instrumento artístico. Algumas vezes, a imagem interferida é o produto final. É ela que será exposta, com todos os elementos e rastros, como o caso da série Samy’s dreaming about the forest. As imagens finais desta série foram digitalizadas apenas para compor o livro Drømmer on Skov, publicado em 2015, pela Azulejo Arte Impressa.
Em outros momentos, uma vez pronta a imagem, com as interferências e camadas, ela é novamente digitalizada e aí, sim, impressa a versão final. É o caso da série Rapid Eye Movement, de 2012. Neste caso, a imagem bidimensional condensa as camadas e as etapas do fazer. Desvendar o processo, bem como compreender a natureza da imagem – se fotografia, desenho ou gravura – torna-se um interessante jogo de atenção e percepção.
De sua formação em História e sua passagem pela literatura comparada, persiste a relação com as palavras e a linguagem, responsáveis também por criar a atmosfera onírica de suas obras. Frases e/ou pequenos textos aparecem nos títulos ou como parte da imagem. A linguagem e a narrativa compõem, assim, mais uma das camadas de sua poética, funcionam como mais um elemento que se soma às camadas de sentido aglutinadas na imagem.
De alguma forma, sempre tento fazer com que o texto esteja presente no trabalho. No início, restringia apenas aos títulos das imagens. Eles são, normalmente, atribuídos aleatoriamente, como em um jogo, ou seja, frases em diferentes idiomas desconectadas do seu sentido habitual são associadas às imagens. Isso também é um artifício que remete a um estado onírico, visto que quando uma pessoa sonha que está lendo, por exemplo, é comum que as frases fiquem embaralhadas e que ela não consiga discernir o que está escrito. Quando uma palavra ou uma frase é colada à imagem, ela pode remeter a tantas outras coisas que, ao invés de explicar ou dar sentido ao trabalho, ela acaba confundindo e causando curiosidade do motivo dela estar ali. (SFOGGIA, 2016).
A presença da palavra, bem como as colagens, as interferências com elementos variados e a sobreposição de negativos e imagens, também pode nos remeter ao uso dessas, e da própria fotografia, pelos artistas do dadaísmo e do surrealismo – este último, um dos movimentos da história da arte que mais interessam à artista. Entretanto, o resulto poético de Samy nos remete a um universo mais íntimo e subjetivo; mais escuro, tanto no sentido literal – suas obras são quase sempre em preto e branco, com fortes contrastes que nos dão uma lembrança do cinema expressionista alemão e do cinema noir – quanto no figurado – como a própria artista afirma, seus trabalhos partem de um lugar consciente da subjetividade, dos sentimentos, dos medos e angústias.
Entre o literal e o figurado, narrativa e ficção estão fortemente presentes em suas montagens, construindo uma atmosfera densa de um universo onírico que traz algo de fantástico e, por vezes, macabro às suas imagens. É como se cenas de sonhos, ou filmes de terror reais, ou partes do nosso inconsciente-consciente viessem à tona, e, censurados, eles vêm rasurados, costurados, remendados. Há algo de dor e, ao mesmo tempo, de alívio, de catarse. Não é à toa que a artista tem uma de suas principais referências no cinema de David Lynch e na literatura de Franz Kafka.
Assim, os elementos que compõem a poiética e a poética de Samy podem provocar uma discussão não apenas acerca da fotografia de hoje e sua relação com a história da arte, mas, ao mesmo tempo, colocar em debate o lugar e o papel da fotografia na contemporaneidade, quando técnicas analógicas, manuais, digitais e virtuais estão ao nosso dispor para experimentar e descobrir não somente um caminho poético, como também sobre os tempos em que vivemos. “A fotografia eletrônica não constitui uma simples transformação da fotografia fotoquímica, mas introduz toda uma nova categoria de imagens que já devem ser consideradas ‘pós-fotográficas’”, afirma Fontcuberta (2012, p.62). Indo ao encontro das reflexões do fotógrafo catalão acerca de uma pós-fotografia, talvez pudéssemos propor não mais pós, mas uma metafotografia,1 ambígua, entre a linguagem analógica e a digital, levando a uma reflexão sobre o que é a fotografia contemporânea. Propor a ideia de uma metafotografia, seria pensar em termos de uma fotografia que se volta para si mesma, como no momento do pictorialismo, para se descobrir a partir de cruzamentos – entre meios e disciplinas, entre texto e imagem, entre narrativa e linguagem – e de experiências.