A loucura é, provavelmente, o motivador de alterações de consciência estudado de forma mais ampla em sua relação com a produção artística. Diversos ensaios discutem as doenças mentais e a sua influência na criatividade (KARLSSON, 1970; LANGE-EICHBAUM, 1932; RICHARDS, 1981). No livro Lógica do Sentido, Gilles Deleuze (2011) faz um contraponto entre as chamadas linguagem da superfície e linguagem da profundidade. A linguagem da profundidade seria aquela dos esquizofrênicos, dos alcoólatras, do terror e do sofrimento, e a linguagem da superfície seria a dos que não atingiram essa profundidade, não vivenciaram genuinamente o sofrimento profundo, embora, por vezes, inspirem-se nas questões da profundidade para criarem suas obras. Deleuze (2011) apresenta a obra de autores como Antonin Artaud – surrealista francês que viveu muitos anos em manicômios – e F. Scott Fitzgerald – escritor americano dependente de álcool – como representantes da linguagem da profundidade. Esses autores teriam produzido suas obras através da influência da loucura e do efeito de drogas, elementos que seriam capazes de provocar, de acordo com Deleuze, a superação de limites e a falência de antigos padrões, o que resultaria em uma produção diferenciada. Já a linguagem da superfície é representada no ensaio pela obra de Lewis Carroll, autor que evocava elementos fantásticos em sua obra. Carrol é apresentado como um autor que inspirava-se na fecalidade e no sofrimento das linguagens vindas da profundidade para produzir sua obra, mas sem propriamente vivenciá-los. Deleuze (2011) marca, assim, uma diferenciação entre as produções dessas linguagens da profundidade, que viriam de alterações de consciência – fossem elas oriundas da loucura ou do efeito de psicotrópicos – das produções da superfície. A produção a partir de estados alterados de consciência permitiria a dissolução de fronteiras, a revelação de novas experiências e uma nova organização dos sentidos que dariam origem a uma nova linguagem, a uma nova estética.

Inspirado nas análises de Deleuze (2011) sobre a linguagem da profundidade, o presente trabalho se insere em um campo que se abre para o estudo da ligação entre as alterações de consciência geradas pela loucura e a produção artística. O objetivo do ensaio é apresentar a loucura como uma energia primal, como uma força catalisadora de processos artísticos, capaz de gerar novos signos e linguagens. Para isso, serão analisados estudos que revelam uma ligação entre a loucura, a criatividade e um possível adiantamento artístico dado pela loucura. Serão apresentados ainda trabalhos de autores contemporâneos produzidos sob o efeito de doenças da mente.

Apesar das relações entre a arte e a loucura não serem novas, o fetiche causado pelas obras de arte produzidas a partir da loucura e de outras alterações de consciência e a sua inclusão no mercado de arte é relativamente recente, como o interesse crescente pela chamada Art Brut em países como a França. Obras e artistas que possuem uma forte ligação com a loucura e que já estiveram em um lugar de exclusão, de outsider, hoje estão incluídos na cena artística, o que motiva um estudo mais detalhado sobre o tema. Dessa forma, o presente trabalho constitui um esforço inicial dentro do projeto de identificar e analisar as relações entre loucura, criatividade e produção artística, assim como identificar as atitudes e obras criadas a partir de estados alterados de consciência pela loucura, tema que possui ainda uma insipiente bibliografia em língua portuguesa.

O posicionamento da sociedade em relação à loucura e às obras realizadas a partir dela modificou-se substancialmente ao longo da história. Em determinadas épocas, a loucura foi considerada cotidiana, naturalizada; em outras, foi qualificada como um estado não aceito, que deveria ser excluído e silenciado:

Na Idade Média, e depois no Renascimento, a loucura está presente no horizonte social como um fato estético ou cotidiano; depois, no século XVII – a partir da internação – a loucura atravessa um período de silêncio, de exclusão. Ela perdeu essa função de manifestação, de revelação que ela tinha na época de Shakespeare e de Cervantes (FOUCAULT, 2006, p.163).

A crença de que loucura, criatividade e produção artística estavam interligadas também alterou-se com o passar do tempo. Frederick Goodwin e Kay Jamison (2007), no livro Manic-Depressive Illness, afirmam que é antiga a noção de uma relação entre a criatividade e os extremos dos estados do humor, relação essa descrita em mitos pré-gregos e, mais tarde, por Platão e Sócrates. A loucura, como entendida por Platão e Sócrates, abrangeu uma ampla gama de estados de pensamento e emoção – não apenas a psicose – com ênfase em um estado profundamente alterado de pensamento, consciência e sentimento. Acreditava-se que loucura divina e inspiração eram obtidos somente durante particulares estados da mente, como a perda de consciência, contração de doença ou estados de possessão. Platão discutiu amplamente a afinidade entre loucura e arte em Fedro e chegou a afirmar que uma obra de arte perfeita só poderia ser alcançada se produzida através da inspiração da loucura:

Loucura, desde que ela venha como o dom do céu, é o canal pelo qual recebemos as maiores bênçãos. [...] Os homens de antigamente, que deram nomes às coisas, não viram desonra ou vergonha na loucura; caso contrário eles não a teriam ligado com o nome da mais nobre de todas as artes, a arte de discernir o futuro, e chamou-lhe de a arte maníaca. [...] Se um homem chega à porta da poesia intocado pela loucura das Musas, acreditando que a técnica, sozinha, vai torná-lo um bom poeta, ele e suas composições sãs nunca alcançarão a perfeição, mas serão totalmente eclipsados pelos desempenhos do louco inspirado. (PLATÃO, 2007, p.46-48, tradução da autora).1

Platão revelou, assim, que a loucura nem sempre foi vista como vergonha e desonra. Ela era valorizada pelas sociedades antigas, tendo sido relacionada a aspectos considerados positivos, como a capacidade de revelação da verdade e do futuro e a manifestação do espiritual. A chamada loucura divina era vista como fonte de inspiração para a produção artística, como algo que superava a técnica. A qualidade da obra, para Platão, dependia da inspiração adquirida pela loucura, capaz de eclipsar o talento e o entusiasmo criador.

Durante a Renascença, de acordo com Goodwin e Jamison (2007), houve um ressurgimento do interesse na relação entre gênio, melancolia e loucura. Apesar disso, foi feita uma distinção entre os melancólicos sãos que possuíam uma capacidade elevada de realização e os indivíduos cuja insanidade impediu-os de utilizar seus dons. No século XVIII, houve uma mudança brusca de atitude, com o pensamento racional visto como essencial para o gênio. A visão do século XVIII inverteu-se drasticamente, em seguida, pelos românticos do século XIX que, mais uma vez, enfatizaram os extremos de humor e a experiência como fundamental para a inspiração e a expressão artísticas. O primeiro ensaio do século XIX a analisar obras realizadas por pacientes psiquiátricos foi Traité Médico-philosophique sur L'aliénation Mentale, ou La Manie, do francês Philippe Pinel que, em 1801, escreveu sobre dois artistas psicóticos. Em 1812, o médico Benjamin Rush, autor do primeiro grande tratado psiquiátrico realizado nos Estados Unidos, registrou suas observações clínicas sobre a relação entre os estados maníacos agudos e os estados criativos. O discurso de Rush mostrava-se em consonância com o defendido por William James (1929) – um dos fundadores da psicologia moderna – que afirmava que, através de certos estímulos, seria possível despertar diferenciadas formas de consciência que os indivíduos passam a vida sem imaginar que existem, estados que permaneciam latentes. Da mesma forma, Rush (1935) declarou que a mente seria capaz de descobrir talentos desconhecidos, como o talento para a produção artística, que seriam trazidos à tona pelas alterações de consciência atingidas através da loucura. De acordo com ele, a loucura poderia, portanto, funcionar como catalisadora de aptidões e habilidades em determinados indivíduos.

Porém, nem todos os teóricos do século XIX estavam em concordância com a ligação direta entre loucura e criatividade. O ensaísta Charles Lamb, ele próprio diagnosticado com o que hoje é conhecido como bipolaridade, discorreu em seu ensaio The Sanity of True Genius (1828) sobre a importância do equilíbrio entre as faculdades mentais para o gênio e a produção artística. Ele defendia que para alcançar o verdadeiro gênio seria necessário não o alcance da loucura mas, ao contrário, do equilíbrio entre as faculdades mentais. Lamb (1987) acreditava, ainda, que por identificar características de sonhos e alucinações na exaltação das obras de arte, o homem acabava por transmitir essas características da obra para o poeta. Ele defendia, assim, que a exaltação das obras não viria de uma falta de controle por parte dos criadores, mas, inversamente, que os artistas teriam domínio sobre o que criam, sobre as estéticas que concebem.

Em 1922, é publicado o livro Talento artístico dos doentes mentais, de Hans Prinzhorn, psiquiatra e historiador de arte alemão. Prinzhorn trabalhou, entre 1919 e 1921, no hospital da Universidade de Heidelberg com a função de expandir a coleção de arte e artefatos criados pelos doentes mentais. Talento artístico dos doentes mentais consistia no estudo da arte esquizofrênica – termo utilizado por Prinzhorn – discutindo a fronteira entre a psiquiatria e a arte, a doença e a autoexpressão, e analisando artistas da coleção de Heidelberg. Prinzhorn (1972) destacava em seu ensaio que as obras pertencentes à coleção eram extremamente diferentes das encontradas no mercado de arte da época. Ele creditava isso ao fato desses autores trabalharem sem que fossem alimentados pela tradição e pela escolarização que eram atribuídas à maior parte dos reconhecidos trabalhos artísticos. Prinzhorn (1972) afirmava que o processo configurativo desses autores esquizofrênicos havia sofrido menos influências externas se comparado ao de outros artistas cujo instinto configurativo havia sido limitado pelo racionalismo, pela escolarização, pelas regras e pelo sistema. Ele acreditava que esse surgimento de um instinto configurativo original nos pacientes poderia estar relacionado à própria internação, com a renúncia ao mundo exterior, à concentração autista em sua própria pessoa, à mudança no ambiente, à separação do resto do mundo com seus inúmeros pequenos estímulos ou, ainda, à própria esquizofrenia:

Se vamos atribuir maior responsabilidade para a mudança no ambiente, outras configurações semelhantes, como conventos e prisões, devem também facilitar a liberação. Também parece teoricamente provável que a introversão irá produzir o mesmo efeito. Por outro lado, nós poderíamos buscar uma explicação em uma base muito diferente. O paciente alcançaria um poder configurativo sob o efeito muito específico da esquizofrenia, que seria, em outro caso, negado a ele, por ter processos que ocorrem em sua psique que normalmente são limitados a artistas. (PRINZHORN, 1972, p.307, tradução da autora).2

Assim, Prinzhorn revelou que a esquizofrenia seria capaz de gerar processos na psique do indivíduo que, a princípio, seriam atingidos exclusivamente por artistas. Com isso, ele anunciou a potência da esquizofrenia em despertar estados e processos que beneficiariam a criatividade e a produção artística. Porém, ele afirmou que essa consideração só poderia ser confirmada se pudessem ser identificadas quais são as experiências exclusivas da psicose, quais os fatores que seriam considerados normais para os psicóticos e surpreendentes para os outros. O estudo seminal de Prinzhorn não chega a essa resposta. Porém, ao levantar essas questões, ele teria dado os primeiros passos na direção da formulação de uma resposta.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, a loucura tornou-se, novamente, foco de perseguição, dessa vez pelos nazistas, que definiram os trabalhos desses artistas como degenerados, fazendo com que a coleção de Heidelberg caísse em desuso por vários anos. No entanto, no pós-guerra, o interesse por essas obras foi retomado. Um dos responsáveis pela revalorização das obras produzidas por pacientes de manicômios foi o artista francês Jean Dubuffet. Dubuffet dedicava-se à busca do que seria a verdadeira arte que, para ele, seria encontrada em um lugar distante das produções dos museus, salões e galerias. Assim como Prinzhorn, ele acreditava que uma desconexão com influências externas, regras e costumes e, principalmente, com o mundo da arte, produziriam uma arte única. Dubuffet cunha, em meados de 1940, o termo Art Brut, que postulava uma arte inventiva, não conformista e espontânea, enfaticamente distinta do que ele via como os estereótipos derivados da cultura oficial. Suas pesquisas sobre a Art Brut foram fruto de sua atração por desenhos de doentes mentais produzidos na Suíça, como os de Adolf Wölfli – um dos primeiros artistas a ser associado à chamada Art Brut. Dubuffet procurava, assim, autores que estivessem desligados das convenções e encontrou o que buscava, muitas vezes, em pacientes de hospitais psiquiátricos:



Eu procuro pessoas que lutam contra a prisão do condicionamento cultural, dos costumes [...] que são tratados pelo público como originais, pessoas singulares [...] que não adotam as convenções, os costumes, e que acabam internados pela polícia nos hospitais psiquiátricos e são decretados pelos médicos como doentes. (DUBUFFET, 2009).3

Foi, assim, a partir da coleção e dos estudos de Prinzhorn e do esforço de Dubuffet em conservar e divulgar a Art Brut que essas obras produzidas em desconexão com o mundo da arte por indivíduos considerados doentes mentais puderam conquistar um espaço no mercado da arte. Com a entrada dessas obras em coleções particulares e privadas, surgiu o interesse em se estudar também os artistas que as produziam, o que implicou em uma modificação no modo de vida desses artistas. Antes confinados em manicômios, esses autores produziam sem contato com o mundo da arte e suas obras eram encontradas e expostas somente após as suas mortes, como ocorrido com os autores da coleção de Heidelberg. A inclusão desses trabalhos no mercado de arte contemporânea provocou a inclusão social também de seus artistas, que saíram de uma posição de outsider e passaram a viver em ateliers criados especialmente para recebê-los, como o Atelier Goldstein, na Alemanha, e o Atelier Art Brut Parabiago, na Itália. Esses artistas passaram, assim, a visitar as exposições realizadas com suas obras e a dar entrevistas sobre sua produção. Essa nova relação entre os artistas, suas obras e o mercado de arte consistiria em uma mudança da própria definição de Art Brut – que centrava-se em uma desconexão dos autores com o mundo da arte. Além disso, as entrevistas concedidas por eles constituiriam um interessante material de estudo capaz de enriquecer a análise de suas obras. A partir da inclusão dos antigos outsiders no mercado, fez-se necessária também a criação de novas formas de estudo da arte que fossem capazes de englobar essas obras criadas em desconexão com a cultura oficial. Nesse sentido, o curador Harald Szeemann propõe uma análise centrada no caráter da intenção que move a realização da obra de arte, mais do que nas características de seu produto final. Com isso, ele vê a possibilidade de construir uma nova história da arte: “A história da arte das intenções intensivas em detrimento da história da arte das grandes obras-primas" (SZEEMANN, 2007, p.373, tradução da autora).4

O tcheco Zednek Kosek está entre os autores recentes que, apesar de produzirem a partir de suas psicoses, tiveram contato com o sucesso de suas obras. Kosek nasceu em 1949, em Duchcov, na República Tcheca. Ele foi tipógrafo, caricaturista e cartunista de jornais e revistas regionais. Foi casado por duas vezes. Pintor autodidata, ele produzia obras convencionais, de estilo clássico. A partir de 1980, uma profunda fratura psíquica o levou a perceber o mundo de maneira radicalmente diferente. Kosek foi diagnosticado com psicose, tendo então que aposentar-se em 1989. Desde então, ele transcreve suas percepções em uma obra gráfica que nada tem em comum com suas produções anteriores. Durante alguns anos, viveu sozinho em Usti nad Labem, uma pequena vila a duas horas de Praga, onde foi dominado por sua obra, produzindo obsessivamente. Hoje, Kosek vive em um hospital, onde começou um regime de prescrição para tratar sua doença, que fez com que sua produtividade recuasse junto com seus sintomas. Suas obras já foram expostas em museus como o Palais de Tokyo e La Maison Rouge, em Paris.

A partir da ruptura psíquica, Kosek passou a acreditar que possuía a tarefa de controlar o mundo, produzindo, assim, uma obra paranoica e mística. Seus trabalhos foram construídos em torno de sua obsessão por produzir diagramas, com os quais ele acreditava conduzir o mundo e garantir a manutenção da ordem universal. Como explica o colecionador francês Bruno Decharme (2005, p.7, tradução da autora), fundador da Associação Abcd (Art Brut Connaissance & Diffusion), “ele se vê como uma espécie de estação de energia, continuamente recebendo e emitindo uma imensa quantidade de informações”.5 Kosek agia como se tivesse o peso e o poder de controlar e influenciar episódios do dia a dia, fossem eles climáticos ou políticos, através de seus desenhos ou, simplesmente, de seus sentimentos e gestos:

Eu me sentia como o centro do universo. Eu tinha o poder de dirigir tudo, de influenciar tudo. Por exemplo, ao fumar um cigarro, ou com as minhas emoções, eu posso criar a chuva ou um tornado na América. Agosto é o mês das inundações. É o mês mais crítico do ano. Em minha vida, eu publiquei um só livro. Em 500 anos, houve apenas uma inundação aqui, certamente por causa desse livro. Meu corpo sente todo o universo. Eu tenho continuamente dores de estômago, porque há constantemente problemas no universo. (KOSEK, 2009).6

Kosek acreditava, portanto, que suas atitudes, suas sensações e sua obra possuíam um papel central e definidor. Os complexos diagramas criados por ele a partir de símbolos formados por diferentes combinações de números, letras e elementos químicos, representavam os acontecimentos diários que ocorreriam ao redor do mundo. Os diversos números que podem ser vistos em seus desenhos parecem representar horários, graus de temperatura, datas e distâncias, formando combinações que não se consegue decifrar. Já as letras formam nomes de países e cidades, de elementos químicos, de animais e plantas, entre outros, compondo fragmentos de frases aleatórias. Surgem, por vezes, desenhos figurativos de animais e pessoas. Os círculos também possuem grande importância na obra de Kosek e aparecem recorrentemente em seus trabalhos. Ele utiliza as esferas por considerá-las a expressão perfeita do universo, pois elas não possuem um começo nem um fim.

A diagramação criada por Kosek fazia parte da tentativa de criar um sistema para o emaranhado de conexões que representava. De acordo com crítico de arte Lyle Rexer (2009), autores como Kosek acreditam em uma ordem pré-existente, mas, ao mesmo tempo, creem que tem o poder de influenciar essa ordem através de sua inteligência e de sua produção. Sua obsessão se constrói através do sentimento de que é capaz de influenciar a ordem universal:

As figuras de Kosek não chegam realmente a descrever um conjunto de relações, mas colocam seus elementos em ação, ação que talvez as definam. Tal como acontece com um outsider como Wölfli, tem-se a impressão de que o artista (se é isso que Kosek é) pode acreditar em uma ordem pré-existente, mas que essa ordem continua a mudar enquanto os desenhos são feitos. O que dá às produções sua pungência desesperada é a sensação de que a ordem é incessantemente desfeita pela própria inteligência que procura articulá-la. (REXER, 2009, p.4, tradução da autora).7

Kosek acreditava, assim, estar continuamente recriando o destino do mundo. Somente através dos novos códigos e diagramas que produziu ele podia representar o seu universo, pois a complexidade de seu mundo não poderia ser retratada através dos símbolos já existentes. “A escrita que é ensinada é demasiado primária. Meus diagramas refletem melhor a complexidade que nos rodeia. Por exemplo, essa borboleta representa a República Tcheca, mas também a formação de nuvens” (KOSEK, 2009).8 Kosek considera, assim, que a linguagem corrente seria um limitador para o seu trabalho, criando, com isso, uma nova maneira de se expressar e de representar seu mundo.

Apesar de considerar que seus diagramas são mais eficientes para a representação de seu mundo que a escrita tradicional, Kosek admitiu a complexidade de seus desenhos. Revelou que, até para ele, tornou-se difícil, após um tempo, decifrá-los. Porém, apesar de reconhecer a dificuldade de decodificá-los, ele acredita que as próximas gerações poderão, talvez, decifrá-los, como se eles possuíssem um significado oculto:

Ninguém pode compreender meus desenhos. Eu mesmo, quando os olho hoje em dia, não os compreendo. Em mil anos, poderão, talvez, decifrá-los. Eu criei cerca de três mil diagramas... (KOSEK, 2009).9

Kosek acreditaria, portanto, ter um canal com uma força maior, sendo capaz de deixar uma mensagem para ser descodificada pelas gerações futuras, em uma ideia messiânica. Michel Thévoz (1975) acredita que a complexidade dos símbolos usados por certos autores tem um propósito. Ele crê que alguns desses artistas veem a humanidade como inimiga e, por isso, criam um sistema próprio de comunicação a fim de travestir a mensagem de forma a não entregá-la para os indivíduos considerados inimigos. Essas linguagens seriam, assim, um sistema que desenvolve um uso interno, sem entregar aos outros nenhuma espécie de informação. Kosek ressalta, ainda, a importância da produção da obra de arte como válvula de escape, como forma de expressar o que está contido. Ressalta o importante papel que a arte possui ao permitir que o autor expresse necessidades e desejos reprimidos de forma sancionada pela sociedade:

Fazer estes desenhos foi exaustivo, mas eles salvaram a minha vida. Eles me permitiram ventilar minhas percepções, tudo o que me perseguia. Eu estou feliz que hoje eles viajam pelo mundo, o que mostra que as pessoas estão descobrindo o que seu cérebro é capaz de criar. (KOSEK, 2009).10

Assim, para o artista, o interesse do público em sua obra revelaria um entendimento de que a capacidade de criação do cérebro pode ser surpreendente. Sua obra seria um lembrete de que, como citava o psicólogo Arnold Ludwig (1966), abaixo da fina camada de consciência do homem existe um reino relativamente inexplorado da atividade mental.

Em conclusão, diferentes alterações de consciência são capazes de influenciar amplamente a produção artística. Essa heterogeneidade de linguagens, com seus próprios símbolos e códigos, revela universos subjetivos que colocam em questão padrões vigentes de normalidade, bem como formas de representação do real. A crescente importância dos trabalhos provenientes de estados alterados de consciência no panorama do mercado e da crítica aponta também para alterações na figura do artista e no conceito de arte no cenário contemporâneo. Ao abordar as alterações de estados de consciência como unidades de energia geradoras de processos artísticos, o presente estudo aponta para a possibilidade de se pensar de forma transversal a relação entre produções estéticas concebidas como obras de arte e efetivações estéticas que não visavam valor artístico.

1  “Madness, provided it comes as the gift of heaven, is the channel by which we receive the greatest blessings. [...] The men of old who gave things their names saw no disgrace or reproach in madness; otherwise they would not have connected it with the name of the noblest of all arts, the art of discerning the future, and called it the manic art. [...] If a man comes to the door of poetry untouched by the madness of the Muses, believing that technique alone will make him a good poet, he and his sane compositions never reach perfection, but are utterly eclipsed by the performances of the inspired madman”.

2  “If we assign major responsibility to the change in environment, other similar settings like convents and prisons should also facilitate liberation. It would also seem theoretically likely that introversion will produce the same effect. On the other hand, we could look for an explanation on quite a different basis. The patient would achieve a configurative power under the very specific effect of schizophrenia which is otherwise denied him, by having processes occur in his psyche which are normally limited to artists. Both explanations seem to us to interpret correctly apart of our observations, but the reliability of the latter could be established only when we know clearly which forms of experience are new to an artist in psychosis. Above all we would have to know whether perhaps something appearing quite normal to him would surprise others as totally alien”.

3  Transcrição a partir do filme Rouge Ciel. Dir. Bruno Decharme. Paris: Système B, 2009.

4  “The art history of intensive intentions over the art history of the great masterpieces”.

5  “He sees himself as a kind of power station, continuously receiving and emitting multitudes of information”.

6  Transcrição a partir do filme Rouge Ciel. Dir. Bruno Decharme. Paris: Système B, 2009.

7  “Kosek’s figures do not so much describe a set of relations as act them out, or perhaps constitute them. As with an outsider like Wölfli, one gets the impression that the artist (if that is what Kosek is) may believe in a preexisting order but that this order keeps shifting as the drawings are made. What gives the productions their desperate poignancy is the sense that order is ceaselessly unmade by the very intelligence that seeks to articulate it”.

8  KOSEK. Transcrição a partir do filme Rouge Ciel. Dir. Bruno Decharme. Paris: Système B, 2009.

9  Transcrição a partir do filme Rouge Ciel. Dir. Bruno Decharme. Paris: Système B, 2009.

10  Transcrição a partir do filme Rouge Ciel. Dir. Bruno Decharme. Paris: Système B, 2009.

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Zednek Kosek, Sem título, entre 1980 e 1990, desenho sobre papel. Collection Abcd, Paris. ©Collection Abcd.

Zednek Kosek, Sem título, entre 1980 e 1990, desenho sobre papel. Collection Abcd, Paris. ©Collection Abcd.