A carne da imagem e uma breve reflexão sobre a relação do homem com o objeto fotográfico
Os pensadores quando buscam uma solução para um problema aparente, reúnem seus dados mentais resultantes de observações e experiências para planejar seus passos. Desde a antiguidade, os conhecimentos acerca da formação de imagens ampliaram-se muito, e, consequentemente, foram desenvolvidas tecnologias que buscam, através do funcionamento óptico, capturar e fixar projeções luminosas em superfícies. Dentro da história cultural do Homo sapiens, há diversos relatos de experiências com a energia eletromagnética emitida pelo sol, a partir dos efeitos de refração e reflexão do espectro visível e a interação dessas ondas-partículas com a camada elétrica dos átomos com o intuito de produzir imagens.
Há um vasto corpus de observações empíricas, de experimentos, de teorias, que começou a constituir-se desde a Antiguidade. O pai da geometria, Euclides, foi também, em torno de 300 a.C., um dos fundadores da óptica (ciência da propagação dos raios luminosos) e um dos primeiros teóricos da visão. Na era Moderna artistas e teóricos (Alberti, Dürer, Leonardo da Vinci), filósofos (Descartes, Berkeley, Newton), e, é claro, físicos, empenharam-se nessa exploração (AUMONT, 2002, p.17).
A partir de experiências alquímicas pôde-se então, utilizar as propriedades e comportamento dos fótons como um meio de registro do espaço-tempo, através do qual a luz incidente provoca reações no campo elétrico dos átomos aumentando sua entropia. Esse aumento de entropia foi o maior desafio a ser superado pelos pesquisadores que buscavam meios de fixar as reações fotoquímicas em superfícies. Dentre os vários alquimistas que almejavam tal feito, há registros históricos de que Joseph Niépce (1765-1833) conseguiu em seu atelier fixar a primeira imagem fotográfica em uma placa de alumínio coberta com betume. A placa foi exposta por mais de oito horas por causa da baixa sensibilidade de reação do material utilizado. A primeira patente de um processo fotográfico foi feita por Louis Daguerre (1787-1851), no qual, após certo desenvolvimento de pesquisas, a emulsão fotossensível era feita de sais de prata e gelatina, sendo que a imagem precisava ser revelada por um oxirredutor e fixada por vapor de mercúrio. O tempo de exposição das fotografias já reduzira de oito horas para oito minutos, mas ainda assim eram necessárias diversas horas para preparação das placas e posterior revelação, os registros eram feitos em chapas de vidro ou metal polido. A criação da primeira caixa fotográfica com película celulósica foi realizada por George Eastman (1854-1932) no final do século XIX, e a partir de então o objeto fotográfico passa a ter uma maior difusão e impacto na vida humana. (AUMONT, 2002).
Cada elemento reage de diferentes maneiras ao processo de exposição ao sol. Toda massa, quando exposta aos efeitos diários da radiação solar, tem suas interações elétricas intensificadas, cada uma com seu tempo de reorganização entre partículas. Essas transformações seguem a orientação da seta do tempo termodinâmica, que influencia no modo como nos relacionamos com o mundo, inclusive com a duração de nossa própria existência corporal e sua efemeridade perante o tempo cosmológico, ou psicológico, imaginário, pois:
O Tempo imaginário é indistinguível das direções no espaço. Se podemos ir para o norte, podemos dar meia-volta e ir para o sul; da mesma forma, se podemos avançar no tempo imaginário devemos ser capazes de virar e retroceder. Isso significa que não pode haver diferença importante entre ir para frente e para trás no tempo imaginário. Em contrapartida quando se olha para o tempo "real" há uma grande diferença entre essas direções, como todo mundo sabe. De onde vem essa diferença entre passado e futuro? Por que nos lembramos do passado, mas não do futuro? (HAWKING, 2015, p. 180).
Neste movimento ondulatório entre tempo termodinâmico e tempo imaginário, a pesquisa se torna uma possibilidade de encontro com o passado em busca do futuro, onde se percebe uma potencialidade na alteração dos eventos futuros a partir da participação no aumento da entropia. Quanto mais conhecemos as transformações da matéria, mais imaginamos possibilidades de interferência no tecido do espaço-tempo. Toda imagem capturada interfere no tecido temporal e possui um peso simbólico significativo para a compreensão da natureza humana. A fotografia encanta por que conseguimos sentir o peso daquilo que os olhos não conseguem capturar, e principalmente postergar sua existência para que outros tenham acesso. O Dispositivo Fotográfico Instantâneo, em ações públicas para a comunidade, tem a potência de alterar a percepção do objeto fotográfico e a experiência de espaço-tempo, a partir de um escaneamento da imagem refletida e invertida do mundo em uma exposição fotográfica que capta o movimento dos corpos. Híbrido de tecnologias subvertidas de seus usos comuns, as fotografias do DFI resgatam os primórdios da fotografia ao mesmo tempo que é produzida digitalmente, graças aos avanços nos conhecimentos dos circuitos eletrônicos e códigos binários.
Sobre a construção do Dispositivo Fotográfico Instantâneo
O Dispositivo Fotográfico Instantâneo (DFI) surge como uma proposta da subversão do tempo fotográfico habitual. Mistura conhecimentos primitivos do comportamento da luz em lentes convergentes aliada aos espelhos, com a tecnologia de escaneamento digital por um Dispositivo de Carga Acoplada (Charge Coupled Device, CCD em inglês) e impressão de uma impressora multifuncional a jato de tinta. A Figura 1 é um esquema em desenho feito para compreender o funcionamento do primeiro protótipo do Dispositivo Fotográfico Instantâneo, que surgiu da curiosidade em saber como o sensor do scanner de uma multifuncional reagiria a uma imagem projetada por uma câmara escura. Existem diversas pesquisas como o The Scanner Photography Project (http://golembewski.awardspace.com), em que os fotógrafos encontram nos scanners de mesa uma alternativa para usarem suas antigas câmeras de grande formato. São necessárias diversas adaptações no próprio scanner para que ele seja acoplado à câmera.
No meu caso, o mote desta pesquisa foi projetar e construir uma câmera que se adaptasse às características de funcionamento da impressora multifuncional, buscando também se seria possível obter fotografias instantâneas ao apertar o botão copiar da impressora.
O desafio era construir uma câmera obscura do tamanho do sensor do scanner. Para respeitar a posição de funcionamento da impressora, foi preciso o uso de um espelho em uma diagonal à 45º em relação aos eixos vertical e horizontal. Essa posição do espelho projeta os raios captados pela lente à frente da impressora e conduz os fótons em um ângulo de 90º em direção ao sensor do scanner. Seria impossível o sensor captar uma imagem se não houvesse uma superfície opaca para reduzir a velocidade da luz projetada pela lente. Nas experiências primordiais do DFI, foram usados diversos tipos de papéis, vegetal e manteiga, sem a obtenção de resultados satisfatórios. Utilizei então um pedaço de vidro opaco pelo jateamento de areia. Os microgrãos opacos do vidro, resultantes do atrito com a areia, ao reduzirem a velocidade da luz e ao serem lidos pelo scanner dão a impressão da granularidade da película analógica, mas em uma imagem positiva, construída a partir de um código binário ou impresso digital (Figuras 2 e 3).
Resumindo, o DFI funciona da seguinte forma: os objetos à sua frente refletem a luz em direção à lente convergente, que gera uma imagem virtual refletida à 90º por um espelho, e que é projetada sobre a superfície granulada de um vidro jateado, onde a luz diminui sua velocidade para, então, ser lida pelo scanner que interpreta os claros e escuros no seu fotossensor. Após, os dados binários gerados pela placa de circuitos são transformados pela impressora em pontos de tinta na folha de papel.
Após conseguir captar imagens com o protótipo, construí uma versão definitiva do Dispositivo Fotográfico Instantâneo, feita de madeira de caixote, tecido e peças de um retroprojetor em desuso, ressignificando um objeto que tem se tornado obsoleto na contemporaneidade (Figura 6).
Sobre as distorções do tecido espaço-tempo provocadas pelo DFI
O objeto fotografia, seja ela fotoquímica, eletrônica, binária ou impressa, tornou-se extensão da memória do homem, podendo assim disseminar seus signos e símbolos com uma maior facilidade a partir da evolução das tecnologias de produção e reprodução de imagens. O objeto fotográfico possibilita com que o registro de um determinado espaço-tempo supere a efemeridade da visão humana, projetando para o futuro aquilo que antes era restrito à narrativa, à escrita, à pintura e a outras artes gráficas. A presença física destas imagens causa distorções gravitacionais que afetam o modo como o ser humano se relaciona com o mundo. Essas tecnologias que alteram a percepção do imaginário social são chamadas de Tecnologias do Imaginário (SILVA, 2013). Essas tecnologias são dispositivos que nos auxiliam nas interações humanas e, consequentemente, na interação de imaginários, através das quais os rios semânticos que seguem lado a lado têm uma breve conexão por seus meandros, intercambiando suas águas e seguindo seus percursos;
O processo de desencaixe “espaço-tempo” que as novas tecnologias da informática têm proposto para os lugares da memória no corpo da sociedade contemporânea, ao configurar as relações homem e cosmos em redes mundiais de comunicação, tem provocado nas ciências humanas a necessidade de se aprofundarem novas formas de entendimento das estruturas espaço-temporais que configuram a magia dos mundos virtuais (ROCHA; ECKERT, 2000, p.1).
O Dispositivo Fotográfico Instantâneo propõe um momento de pausa e imersão no tempo imaginário, um encontro consigo e com sua própria imagem refletida e espelhada. A natureza de leitura do sensor do scanner é mapear a luz incidente não em um único quadro como acontece nas câmeras convencionais, mas, sim, a partir de uma leitura fragmentada que capta, em uma sequência de linhas verticais, pequenas frações do espaço-tempo que são unidas pelo software do scanner. Por meio dessa leitura de fragmentos, o DFI confronta os seres com outra percepção espaço temporal a partir de um escaneamento do instante fotográfico e sua impressão na matéria, pois:
Visto que a compreensão é a de que cada meio visual instaura uma experiência particular, e por mais que possa haver semelhanças entre essas experiências, a visualização da imagem em cada um deles subentende situações distintas de percepção. Em outras palavras, o olhar proporcionado por uma mesma imagem não é o mesmo se essa imagem é mostrada por diferentes meios visuais (MELLO, 2013, p.131).
Em seu tempo de espera, os seres fotografados são transportados no tecido temporal até as práticas fotográficas arcaicas que necessitavam de um tempo maior de exposição, e, consequentemente, uma postura diferenciada daquele que é fotografado. Esse deslocamento no tecido temporal é ocasionado pelas características materiais do DFI e a sua potência em construir imagens, que com suas massas física e simbólica, distorcem o espaço-tempo, ocasionando alterações nas percepções de mundo daqueles que entram em contato com a câmera artesanal.
Já foram realizadas diversas atividades com a comunidade dentro das ações do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq) tituladas de "Experimentações PhotoGráficas" (Figura 5), quando foi montado um gazebo em diferentes espaços públicos, na busca pela interação com os transeuntes e o estabelecimento de uma relação mais íntima a partir da disponibilização de diversas tecnologias PhotoGráficas do Imaginário, como câmeras analógicas, câmeras artesanais feitas com latas de sardinha, câmera lúcida, lunetas, lentes e o Dispositivo Fotográfico Instantâneo. Esse precioso tempo de partilha é uma oportunidade de encontro de águas dos meandros da vida. Na partilha, as correntezas das águas sedimentam ideias no leito do espaço-tempo imaginário.
Ao encararem a lente do DFI no tempo de espera pela captação da imagem, cada sujeito se coloca frente à câmera na posição em que se sente confortável para ser fotografado. Alguns sorriem, outros permanecem sérios e estáticos, enquanto os que se movimentam durante o escaneamento têm seus corpos distorcidos na leitura do scanner (Figura 4).
Conclusões até o momento desta escrita
O mundo contemporâneo em sua complexidade exige dos seres uma capacidade de interconexão de ideias e tecnologias que se fundem na busca pelo resultado das somas. Quando dois se unem para surgir como algo híbrido, a capacidade de catalogação dentre as coisas já pré-existentes entra em colapso e é preciso formular um novo pensamento a fim de inventariar a nova coisa. O Dispositivo Fotográfico Instantâneo surge como um novo meio de produção de imagens visuais que traz em si peculiaridades da soma de tecnologias, sendo utilizado em ações com a comunidade interna e externa à Universidade Federal de Pelotas, a fim de elucidar sobre os conhecimentos da imagem e confrontar os seres fotografados com um tempo diferenciado do instante fotográfico. Esse encontro com o DFI, uma tecnologia do imaginário, possibilita, àqueles que se permitem, uma viagem ao passado, ao presente e ao futuro imaginário, antes mesmo de se pensar em querer viajar. A observação e registro fotográfico daqueles que cruzam os caminhos que o DFI percorre, torna-se um objeto de pesquisa antropológica, baseado na sedimentação de imagens, seres, e ideias influenciadas pela nossa relação com os espaços-tempos termodinâmico e imaginário.
Na era da fotografia digital, a relação com a produção e o consumo de imagens é comparável à efemeridade das fotografias na época onde não era possível fixá-las na matéria. Poucos ainda imprimem algumas de suas fotografias para consumi-las como objetos fotográficos potentes de ressignificação simbólica. Isso pode ser feito na virtualidade da internet, mas cada meio tecnológico de produção e reprodução de imagens possui em si características que influenciam no modo de interação com a comunidade. O Dispositivo Fotográfico Instantâneo, como híbrido que é, abre portas para o devaneio poético, mostrando uma dimensão espelhada e monocromática de mundo, em uma leitura escaneada que confronta os serem com um tempo fotográfico instantâneo não habitual, que causa oscilações na percepção do espaço-tempo daqueles que cruzam o seu percurso, criando imagens e novas memórias que se depositam e alimentam a bacia semântica do imaginário.