A série de fotografias Glass Pieces / Life Slices (1973) da artista brasileira Iole de Freitas (Figura 1) foi o primeiro trabalho artístico que eu vi num museu. Foi numa viagem que fiz de Maringá (interior do estado do Paraná) para o litoral com a minha família, passando por Curitiba e visitando o Museu Oscar Niemeyer. Lembro especialmente dessa obra porque fiz o registro com uma câmera point and shoot que eu havia ganhado na época, aos 13 anos. Reencontrar essa série na 10ª Bienal do Mercosul, morando em Porto Alegre para o mestrado em História, Teoria e Crítica de Arte me faz pensar como tudo tem fluído de maneira generosa no meu caminho. Estar estudando artistas mulheres e seus autorretratos me faz voltar a essa primeira experiência estética (e física) com arte e a essa obra – de uma artista, mulher, e suas escritas de si. Apesar das vicissitudes da vida, os acontecimentos se repetem e isso forma, também, quem eu sou. A escolha em abordar a série neste ensaio, que se trata de uma leitura, provém desse encontro repetido com oito anos de distância, pertinente ao tema da minha dissertação em vigor. Encontro esse que é atravessado, à vista disso, por uma dimensão permanente da subjetividade, a repetição.

Ver o passado como um conjunto de lembranças que é possível evocar será reduzi-lo a algo passivo, a um conjunto de objetos que se pode colocar diante de si e do qual se diz “Houve tal coisa, depois outra; aconteceu-me isso, depois aquilo”. Nessa medida, já não é o eu, é um quase eu. Para que esse passado exista todo o tempo como possibilidade de ser posto a distância, é preciso que ele seja perpetuamente retotalizado; ou seja, é preciso que haja um aspecto constante da subjetividade que é a repetição. O ser se retotaliza sem cessar, logo, ele se repete sem cessar [...]. (SARTRE, 2015, p. 53).

É sob o prisma de uma heteroautobiografia,1 portanto, que a leitura da série Glass Pieces / Life Slices se concebe, alinhavada por esse princípio da repetição proposta em Sartre. Iole de Freitas, artista mineira, nascida em 1945, possui uma investigação artística extensa e diversificada com início na famigerada década de 1970, quando atuou fora do Brasil. Dos seus anos em Milão, Iole se recorda:

Fui verificando que essa experiência corpórea e de entendimento espacial poderia, talvez, trazer aquele espaço para uma determinada qualificação pertinente ao meu próprio processo, à construção da minha própria linguagem, que vem sendo feita desde a infância. Comecei a trabalhar construindo algumas instalações que fazia no meu ateliê, em casa, buscando registrá-las através de linguagens fotográficas. (FREITAS, 2005, p. 17).

O período no exterior marca a escolha da artista para o desenvolvimento de uma poética nas artes visuais, definida por preocupações em relação ao corpo, ao movimento e ao espaço – temas e operações que a acompanham, também, em suas empreitadas contemporâneas materializadas na linguagem escultórica. O corpo da artista enquanto elemento de composição da obra tem vida breve, explorado em sua temporada italiana, em consonância com as inclinações do momento à arte povera, ao minimalismo, à performance e à body art. As elaborações críticas que se propõem a falar da poética de Iole tratam a fase artística de Milão como propulsora dos assuntos que serão tratados nas esculturas da artista a partir da década de 1980, onde há o abandono do corpo-matéria, e a passagem do plano que aos poucos conquista o espaço.

O livro “Sobrevoo” (2002) consiste em uma reunião de escritos críticos que abordam a trajetória artística de Iole de Freitas. Alicercei-me nesse livro para pensar como os trabalhos da década de 1970 são percebidos nas críticas publicadas, quando postos em perspectiva com as esculturas vindouras. Noto que os trabalhos germinais da artista são tratados como sementes que desabrocham em frutos nas décadas seguintes, numa linha que indica maturidade e evolução, e que prioriza a identidade da artista enquanto escultora. Apesar da constatação generalista, pois se trata de uma gama de análises críticas, de autores distintos, interessa-me nesse corolário pensar a coesão em curso na produção da artista, botando à prova a noção de subjetividade como um ser de repetição e, ao mesmo tempo, um ser de invenção, como ponderado por Sartre. O filósofo francês conceitualiza a subjetividade fundamentada na teoria marxista que prevê uma profunda ligação do homem real, com uma sociedade real, e de um ser material circundante que não é ele, caracterizada enfim, por uma relação de transcendência (SARTRE, 2005). Em Iole de Freitas, esta relação transcendente com o meio, da necessidade de algo que não está em si, se dá por sua apropriação singular do espaço, que advém de sua formação na dança:

Aí é que a dança entra na estrutura do processo criativo. Pois se eu trabalho com o espaço, foi através dela que passei a entender o que era espaço. [...] Pude ir entrelaçando essa informação sobre quem sou eu movimentando-me no espaço, em relação com que pessoas, de maneira mais lúdica, mais criativa, interagindo-me com os outros, e um outro aprendizado mais sistemático, mais preciso, dentro de uma pedagogia, que é a alfabetização e todos os outros passos que se desdobram. (FREITAS, 2005, p.11).

Parece-me operar na prática da artista um ponto nuclear sintetizado pelo espaço que liga três momentos distintos, um triplo condicionamento: o ser de aquém, o ser de além e o ser da conjuntura, nas palavras de Sartre (2015, p.46). O primeiro, essa investigação espacial proveniente de sua aprendizagem territorial como dançarina; que deságua no segundo momento, no uso do corpo como suporte para abordar questões artísticas; e o terceiro, a passagem do plano para a linguagem escultórica. Sartre julga que a melhor forma de reconhecer a subjetividade é, justamente, analisá-la por meio da práxis, pois é na resposta a uma situação que melhor se delineia o aspecto subjetivo:

Se posso descobrir a subjetividade será por uma diferença existente entre o que a situação costuma exigir e a resposta que lhe dou. (...) De qualquer forma, se considerarmos a situação como um teste, seja ela qual for, ela exige algo da pessoa. A resposta nunca será completamente adequada à demanda objetiva; irá além da demanda ou não se porá exatamente onde é preciso, ficará ao lado ou aquém. Logo, é na própria resposta, como objeto, que podemos perceber o que é em si a subjetividade. A subjetividade está fora, como característica de uma resposta e, na medida em que é um objeto que é constituído, como característica do objeto. (SARTRE, 2015, p.41).

O que está em vigor aqui é, portanto, uma investigação da subjetividade a partir das problemáticas artísticas que Iole de Freitas responde / materializa ao longo de sua carreira.

Faz-se importante trazer à tona, todavia, que a artista endossa a opinião de Mário Pedrosa: ato criador é fato estético e não autoexpressão (2005, p.20). Em seu depoimento sobre a década de 1970 quando o corpo do artista tornou-se um eixo do trabalho, Iole declara (2005, p.19) que a ativação desse corpo mediado pelas tecnologias da fotografia e do vídeo ganhavam qualidade e contundência quando sabiam alinhavar duas situações importantes: a própria organização corpórea e a investigação da estrutura psíquica. Isso não tem relação com o processo de investigação possibilitado pela psicanálise, no entanto, da qual a práxis artística é independente, pois se importa fundamentalmente com a estruturação de uma linguagem. A artista ainda afirma:

Ao falar de body art, você não está falando somente do uso do corpo na obra de arte, mas da confluência dessa pulsão interna, dos valores do inconsciente e do consciente, do conjunto de uma psique em relação à organização de uma linguagem que usa, às vezes, a corporeidade do próprio artista, a materialidade densa de seu corpo como um dos elementos que integram a linguagem. Acho que podemos perceber isso agora, porque todo artista se serve da parte psíquica, mas a presença do corpo no movimento conhecido como body art vai existir a partir do momento desta confluência, porém dentro das abordagens estéticas as mais diversificadas. (FREITAS, 2005, p.20).

Atenta-se à ideia da artista de que existe, de fato, uma vertente psíquica coexistindo com o corpo nos trabalhos da body art, vertente que influenciou sua produção da década de 1970. Todavia essa coexistência alude estritamente ao uso de um aprendizado, a fim de uma construção estética. Aprendizado espacial, que é marca subjetiva, e se configura como resposta às suas criações artísticas, renovando-se no percurso de sua trajetória.

No relato dos meus encontros com a série de Iole, há uma descontinuidade narrativa em curso nas duas experiências, deixadas até então em suspensão. Quando comparados os registros (Figura 1 e 2), percebe-se uma vontade curatorial de contar duas histórias ímpares a partir da mesma série. As imagens de Iole foram feitas dentro do espaço interno do ateliê da artista, num gesto performático capturado por uma câmera de vídeo, filme que origina fotogramas. A perspectiva se dá por uma visão superior, que filma o chão, onde são dispostos alguns objetos. Na composição de 2007 (Figura 2), as quatro fotografias foram organizadas emparelhadas em duas filas de imagens. Na primeira fileira, primeira imagem, vemos a representação do topo da cabeça da artista que se apoia com sua mão. Ela segura uma faca e há uma sequência de espelhos coroando sua cabeça, com os cabelos divididos ao meio. Na segunda imagem, a artista segura um pedaço de espelho que reflete seu rosto olhando para frente. Com a mão esquerda, ela segura outro espelho próximo de sua boca aberta e vemos uma mancha onde devia estar seu céu da boca refletido. Ainda nessa imagem, é possível ver seus pés, logo acima do espelho. Na segunda fila, a primeira imagem mostra a representação do mesmo círculo de espelhos dispostos no chão, que desta vez coroam o pé da artista. É possível ver ainda a mão da artista, que segura uma faca, apoiada sobre seu pé. Na última imagem, vemos apenas o círculo de espelhos e a faca centralizada, sem a presença do corpo da artista.



Na composição exposta na 10ª Bienal do Mercosul, as imagens são apresentadas em sequência numa linha, uma após a outra (Figura 1). Essa linearidade propõe uma ordem narrativa cronológica que é diluída na formatação do Museu Oscar Niemeyer. O arranjo das imagens se dá pela seguinte configuração: a fotografia sem o corpo, a que mostra o pé e a mão segurando uma faca, a da cabeça coroada, e por fim, a que não mostra o chão, mas o reflexo da artista de boca aberta. Essas imagens se destacam pela proximidade do objeto filmado em relação ao plano da imagem, de acordo com Lorenzo Mammì (2002, p.04), que observa que o corpo retratado é maior que o limite do quadro que o contém. Desse limite imposto pelo fotograma, cria-se uma associação com a faca e os espelhos, os elementos utilizados, conforme Paulo Venâncio Filho (2002, p.49) que acredita que a folha retangular do papel fotográfico aprisiona imagens que mostram elementos reais e simbólicos, contrastantes e ameaçadores, e metáforas para aquilo que a fotografia realiza no plano da imagem: cortes, desmembramentos e fragmentações.

Atendo-se ainda à análise da linguagem fotográfica, podemos pensar a relação que o retrato sustenta com sua própria identidade. Segundo Annateresa Fabris (2004, p.55) a identidade do retrato é construída de acordo com normas sociais precisas, onde se assentam a configuração de um eu, ficcional e precário, estabelecido no século XIX e que perdura ao longo do século XX.2 Dessa forma, fica mais perceptível entender a diferença entre ato criador e autoexpressão, reiterada por Iole de Freitas sobre sua poética, quando percebemos o retrato como uma representação ficcional, enquanto fato estético. O corpo representado se torna um campo de transformações e reconfigurações, colocando em xeque a noção de identidade fixa e encerrada em limites precisos.

Quando encarada como construção estética a série Glass Pieces / Life Slices (Pedaços de Vidro / Fatias de vida) revela a edificação de um universo construído pela artista que escolhe espelhos, vidros e facas para habitar junto a si. Esse território inventivo é escasso, estreito, pequeno, contrastante com a dimensão ampla que possui uma sala de dança, por exemplo, lugar de alfabetização espacial da artista. Todavia esses dois ambientes possuem algo em comum, pois são repletos de espelhos. A dança conquista a excelência do movimento quando mediada pelo reflexo. A escolha desse objeto não me parece ao acaso, levando em conta a dimensão da repetição, e uma vez que temos no espelho símbolo que revela ao indivíduo sua própria identidade:

Se o espelho parece revelar ao indivíduo sua própria identidade, não se pode esquecer que ao mesmo tempo o coloca diante da evidência de que a unidade do eu é ilusória. O espelho, de fato, obriga o indivíduo a confrontar-se com a experiência da divisão entre o eu que se reflete na superfície e o eu que percebe a imagem especularmente produzida. Ao colocar em crise a crença numa identidade unitária, o espelho acaba por transformar-se num objeto de conhecimento graças ao qual o sujeito é capaz de refletir sobre a relação existente entre o eu e a própria imagem. (FABRIS, 2004, p.165).

Essa unidade ilusória do sujeito é desmantelada, ainda, quando se considera o uso da faca, que para Lorenzo Mammì (2002, p.05) possui uma função positiva, uma vez que a vida é mostrada em fatias, mas nem por isso mutilada. Rodrigo Naves (2002, p.55), ao contrário, percebe a fragmentação da unidade do ser por um caminho doloroso, pois o corpo em suas facetas refletidas no espelho, convivendo com facas, estilhaçam sua unidade, e as lâminas aproximam o conhecimento corporal da dor e da dilaceração.

Realiza-se, nessa série de Iole de Freitas, uma operação possibilitada pela lente da filmadora de transformação do sujeito em objeto, manobra que coloca em crise a noção profunda de subjetividade, segundo Annateresa Fabris (2004, p.115) numa leitura de “A câmara clara” (1980) de Roland Barthes, ao analisar o conceito de semelhança. Nessa linha de raciocínio, o retrato é um atestado de presença e testemunho inadiável da identidade e da condição civil de uma pessoa. Sartre nos reitera continuamente a importância funcional do não saber da subjetividade, uma vez que o plano objetivo a deforma e a subjetividade objetivada provoca uma transformação no ser. Enquanto um regime de interiorização, a subjetividade faz o indivíduo viver um processo de reorganização permanente, do qual ele não tem conhecimento, e que se exterioriza pela repetição, pela invenção e pela projeção. Para Sartre (2015, p.54), o sujeito nunca deixa de se projetar em toda parte, em tudo o que faz, em todos os seus gestos, em toda a sua realidade, e, por certos testes, ele se decifra, ele se projeta porque ele se decifra, mas ele mesmo não percebe isso. Em Glass Pieces / Life Slices, Iole de Freitas faz uma projeção de si na bidimensionalidade do papel, transformando-se em objeto, decifrando-se, e isso a torna um esquema empobrecido de si mesma, ao materializar naquele momento uma única identidade dentro de infinitas. Contudo, a artista parece ter plena consciência desses regimes em jogo no seu trabalho quando o denomina de “fatias de vida”, enunciando as facetas plurais e inexoráveis da existência: este é seu assunto, o qual aborda com destreza.

O último encontro que tive com Iole de Freitas aconteceu em sua exposição em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, semanas antes de começar a escrever este texto. “O peso de cada um” (2016), com curadoria de Ligia Canongia, confronta o espectador com esculturas monumentais feitas em aço e a série em vidro “Escrito na água” (1966/69), obras as quais a artista declara: “Todo trabalho guarda uma herança estética do anterior. Tudo que fiz com fotografias, performances, opacidades, espelhamentos no passado está presente neste.” (FREITAS, 2016), depoimento que reaviva parte dos princípios que busquei defender neste ensaio, em relação à projeção da subjetividade, sua repetição e invenção contínuas, materializadas em concepções estéticas. O nome que dá título à exposição no MAM traz fulminante à memória a série de fotografias aqui analisadas. O peso de cada um alude a singularidade exteriorizada da subjetividade, por certo, todavia remete a uma noção de corpo mais substancial, um corpo com contorno, forma, densidade, que ocupa um lugar, mesmo que esse lugar seja uma utopia inventada, um espaço de tempo onde é possível coexistir entre espelhos e lâminas, fragmentar-se, para demonstrar exatamente nossa completude, retotalizada perpetuamente. Afinal, como nos lembra Foucault, as utopias nascem do próprio corpo:

O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. (FOUCAULT, 2013, p.14).

O corpo enquanto objeto da arte contemporânea propõe a profanação da herança do corpo idealizado grego, expresso na imagem do nu, corpo incorporal, nas palavras de Foucault (2013, p.08). Essa profanação exige o reconhecimento da corporalidade humana , que em Iole de Freitas se dá pelo discernimento do corpo no espelho, pela fragilidade da pele quando próxima da faca, pelo sangue que escorre desse encontro (apenas sugerido em sua sequência de imagens), e pela estrutura cognoscitiva criadora de utopias.

Entre os trabalhos de aquém e os da conjuntura, expressos nesses encontros com Iole, faz-se perceptível a diferença instalada em relação à narrativa: nas estruturas de aço a história é contada pela presença dos materiais, pelo movimento ritmado do espectador fruindo as esculturas pelo deslocamento corporal, que constrói sua própria versão das obras pelas escolhas de seu trajeto / dança: este é o peso de cada um. A narrativa da série de fotografias se constrói por um viés outro, ancorado na ficcionalidade, com variações expográficas, de fato, mas que nos contam a história de um lugar imaginado pela artista, vivenciado pelo seu corpo: aqui é ela quem dança. Segundo Jacques Rancière (2005, p.58) o real precisa ser ficcionado para ser pensado. A sequência de Iole é um arranjo de símbolos na linguagem fotográfica, ato criador. Não se trata de reconhecer a realidade que deriva dessas ordenações estéticas, de mapear a autoexpressão da artista, pois é possível reconhecer sua subjetividade exatamente em seus gestos: nas repetições, no passado perpetuamente retotalizado, na pesquisa do espaço, no aprendizado da dança – encarnados nas suas propostas artísticas, nos rearranjos materiais dos signos,4 em suas fatias de vida.

1  Entrei em contato com o termo heteroautobiografia pela primeira vez no livro “A aventura de contar-se” (2013), da autora brasileira Margareth Rago, que o define como uma escrita de si que se dá através da reinscrição das vidas de outras mulheres.

2  Esta é a tese defendida por Annateresa Fabris em seu livro “Identidades Virtuais – Uma leitura do retrato fotográfico” (2004).

3  Essa ideia é defendida por Viviane Matesco em seu livro “Corpo, imagem, representação” (2009) da Editora Zahar. Esse uso do conceito de profanação do corpo ideal grego pela arte contemporânea também é da autora, e foi a partir da leitura de seu livro que pude me dar conta dessa vertente da arte que busca tornar o corpo aquilo que ele é, enquanto matéria, que possui suas limitações.

4  Jacques Rancière reflete sobre discursos ficcionais no capítulo “Se é preciso concluir que a história é ficção. Dos modos de ficção”. Sua abordagem restringe-se à análise da narrativa, com foco na poesia, mas seu pano de fundo é mais abrangente, pois se esforça em pensar os pontos de encontro entre arte e política. Segundo o autor (2005, p.59), “a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz, e o que se pode fazer”. Assim sendo, o testemunho real e o ficcional pertencem a um mesmo regime de sentido, e é a partir desse argumento, dessa linha tênue entre ato criador e autoexpressão, que instalo a poética de Iole de Freitas.

DUARTE, Paulo Sérgio. Lições de Anatomia. In: MAMMI, Lorenzo (org.). Sobrevôo – Iole de Freitas. São Paulo: Cosac Naify, 2002. 160p. p.59.

FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

FILHO, Paulo Venâncio. O corpo da escultura: a obra de Iole de Freitas 1972-97. In: MAMMI, Lorenzo (org.). Sobrevôo – Iole de Freitas. São Paulo: Cosac Naify, 2002. 160p. p.51.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heteropias. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

FREITAS, Iole de. Iole de Freitas Depoimento. Belo Horizonte: C/Arte, 2005.

______. Iole de Freitas celebra 70 anos com exposição no Museu de Arte Moderna. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jul. 2015. Entrevista concedida à Mariana Filgueiras.

MAMMÌ, Lorenzo. Sobrevoo. In: ______ (org.). Sobrevôo – Iole de Freitas. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 2.

MATESCO, Viviane. Corpo, imagem, representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

NAVES, Rodrigo. A arte da leveza. In: MAMMI, Lorenzo (org.). Sobrevoo – Iole de Freitas. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se. Feminismos, escritas de si e invenções da subjetividade. Campinas: Editora UNICAMP, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2005.

SARTRE, Jean-Paul. O que é a subjetividade? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

Iole de Freitas (1945–), Glass Pieces / Life Slices (1973), fotografia, série. Porto Alegre: 10ª Bienal do Mercosul, 2015, acervo pessoal.

Iole de Freitas (1945–), Glass Pieces / Life Slices (1973), fotografia, série. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2007, acervo pessoal.