Sabemos que a nova conjuntura política do pós-guerra teve suas traduções culturais, e as artes plásticas, assim como a fundação de um aparato museológico moderno, foram peças-chave desse processo. A arte abstrata como linguagem paradigmática desse raio modernizador resultou em um fator fundamental na militância pela abertura dos novos museus de arte moderna.
O recorte deste artigo buscará analisar de maneira breve como as primeiras instituições modernas brasileiras e argentinas, no início dos anos de 1950, sustentaram a imagem inovadora de seu projeto por meio do estímulo às tendências abstratas. O museu se apresentava na condição de produtor de arte moderna, que nesse momento era definida pela arte abstrata. A alteração dessa tradição visual, antes vinculada com a identidade do nacional, após os modernismos dos anos de 1920, evidenciou um modo de indicar a atualidade das instituições artísticas nacionais numa chave internacionalista. A implantação dos MAMs reivindicava o internacionalismo, “assim revelando o nacionalismo estreito e discriminador, o que é, sem dúvida, exponencial” (LOURENÇO, 1999, p. 104). Contudo, é válido ressaltar que não foi o marco do expressionismo abstrato norte-americano que se consolidou do lado de cá, mas da abstração geométrica vinculada ao concretismo suíço, alemão e holandês, como observaremos adiante, manifestando uma “vocação construtiva”1 de nossos artistas.
A criação dos museus paulistanos e cariocas e a inauguração das primeiras Bienais de São Paulo introduziram o Brasil em um novo patamar na trama regional, tornando-o, para os vizinhos, uma vitrine internacional da renovação das linguagens artísticas.
A implantação dos MAMs, após a Segunda Guerra Mundial, colabora para fomentar modificações nas condições culturais e, também, coaduna-se com alguns ideais político-econômicos realizados ao fenômeno da metropolização, industrialização, desenvolvimentismo e alianças com os Estados Unidos. Nesse panorama, São Paulo assume papel ímpar pela concentração de atividades econômicas, em especial na questão industrial, enquadrando-se a abertura do MAM como parte explicitadora de uma imagem que se almeja atingir. (LOURENÇO, 1999, p.103).
Um novo mecenato proveniente de setores de uma burguesia em ascensão vinculada à indústria buscava projetar-se economicamente por meio de iniciativas culturais. De acordo com Aracy Amaral, desde a década de 1930 estava no ar a ideia de se construir um museu moderno, que fora possível com os esforços de Sérgio Milliet e suas conexões com Matarazzo e Nelson Rockfeller (AMARAL, 2006, p. 240). Embora com perfis institucionais distintos, o MASP e o MAM SP disputaram a supremacia cultural de São Paulo. O primeiro fora fundado em 1947, pelo magnata da área de comunicação Assis Chateaubriand e contou com a consultoria artística do marchand italiano Pietro Maria Bardi. No ano seguinte, o MAM SP fora inaugurado sob o comando do industrial Francisco Matarazzo Sobrinho – o Ciccillo –, e tinha como diretor artístico, o crítico belga León Degand. Ambas instituições contaram com o apoio de Rockfeller.
Embora o modelo de um museu de arte moderna fosse o de Nova Iorque, a estruturação do MAM SP, realizada por Degand, revelava intenções mais ambiciosas para além da renovação dos códigos artísticos. Buscava-se constituir uma entidade para as próximas gerações, um museu didático formador de público que contaria, também, com cinemateca, cursos de arte, palestras e debates, com a abertura total para as novas tendências artísticas (AMARAL, 2006, p. 251).
A exposição inaugural do MAM SP, Do Figurativismo ao Abstracionismo, de 1949, abriu o circuito de mostras do novo Museu e consolidou institucionalmente a inserção da arte abstrata como modelo hegemônico. O internacionalismo aberto por essa tendência teria repercussões mais amplas nos anos seguintes, com a abertura da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, dois anos mais tarde. Essas iniciativas que visavam projetar a arte brasileira, estabilizava ou excluía nomes e tendências da história da arte, tornando-se um mecanismo fundamental para a formação e a ampliação dos acervos museológicos (LOURENÇO, 1999, p. 113). A seleção das obras feita por León Degand privilegiou as escolas francesas, com a presença de artistas do Cercle et Carré (notando a ausência do uruguaio Torres-García), Abstraction-Créactione e Réalités Nouvelles.2 A representação nacional contou apenas com os convidados Waldemar Cordeiro, Samson Flexor e Cícero Dias. O arco temporal indicado no título da exposição – Do ao – evidenciava uma leitura progressiva de Degand, na qual a abstração representava o ápice da linha evolutiva dos movimentos artísticos iniciada com a figuração.
A relação entre o meio artístico brasileiro e o argentino foi gradualmente intensificada ao longo desses anos. Alguns fatores evidenciaram o interesse por esse intercâmbio. Podemos citar a articulação dos novos projetos institucionais brasileiros que transformaram o cenário cultural regional, tendo como ponta de lança a arte abstrata como fator dessa renovação (GARCÍA, 2008). Em um profundo trabalho que serviu de base para esta pesquisa, a teórica argentina María Amalia García (2008) analisou o panorama artístico portenho desse período a partir das relações com o Brasil, indagando por meio de quais canais foi possível realizar esse intercâmbio e como o campo cultural da Argentina reagiu frente à projeção do novo aparato museológico paulistano.
A exposição de Degand, por exemplo, serviu como eixo de articulação entre os dois países. Do Figurativismo ao Abstracionismo também inaugurou outra instituição de caráter modernizador na Argentina. Sob o título El Arte Abstrato, foram abertas as atividades do Instituto de Arte Moderno de Buenos Aires (IAM), em 1949. Amalia García (2008) demonstra como os interesses do fundador do IAM, Marcelo De Ridder, se aproximaram das novas apostas paulistanas, como comprova a análise de diversas cartas trocadas entre o argentino e Ciccillo. A exposição era praticamente a mesma da versão brasileira, salvo algumas exceções, e fora um sucesso de público. Vale ressaltar que as propostas abstracionistas já circulavam pelo circuito artístico e pela crítica portenha há alguns anos, lembrando a importância das tendências concreto-construtivas advindas da revista Arturo (1944) que se desdobraram nos movimentos Madí e Asociación Arte Concreto-Invención.3
No artigo La construcción del arte abstracto, García (2004) nos mostra que De Ridder manteve uma série de negociações com o MASP para tentar incluir a mostra de Max Bill, exposta no museu paulista em 1951, na programação de seu novo instituto. Problemas econômicos e de alfândega impossibilitaram a itinerância da exposição, mas ficou claro que a instituição portenha demonstrava interesse no programa modernizador dos novos museus paulistanos.
A intensidade da movimentação artística em São Paulo, além da vinda de Degand e sua batalha pela arte abstrata, gerando debates fervorosos no circuito brasileiro , apresentou mostras emblemáticas para as gerações seguintes. Nos seus primeiros anos, o MASP organizou as exposições de Max Bill e Alexander Calder e trouxe o crítico argentino Jorge Romero Brest para realizar uma série de seis conferências intitulada Como um sul-americano vê o movimento artístico contemporâneo da Europa.
Em 1948, dois anos antes do ciclo de conferências, Romero Brest e P. M. Bardi iniciaram uma troca de cartas, cujo exame mostra o interesse do argentino em conhecer o Brasil, em especial São Paulo, “ciudad en la que según noticias se está desarrollando un movimiento de importancia”.5 De acordo com as correspondências, sabemos que Brest buscava incluir devida atenção aos temas ligados à arte abstrata, “con cierto carácter polémico en cuanto a la defensa y afirmación de arte abstracto”.6
Os jornais da época anunciaram a presença do crítico argentino e divulgaram os distintos temas abordados nas conferências. Por meio dos estudos de Aracy Amaral, tornou-se plausível dimensionar a repercussão gerada pela presença de Brest na cena artística do período. A autora incluiu uma das matérias que circularam em 1950, A arquitetura é a grande arte de nosso tempo, no catálogo da exposição Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962),7 vinculando as conferências do crítico argentino ao surgimento da arte concreta brasileira, especificamente os artistas que iriam se reunir em torno do Grupo Ruptura (1952), base do concretismo de São Paulo, e do Grupo Frente (1953), base do neoconcretismo carioca.
Nessa matéria, Romero Brest dava um prognóstico para o futuro:
A meu ver a grande arte do nosso tempo é a arquitetura, que, como a escultura maneja o espaço real. De outra parte a pintura de cavalete não satisfaz mais as exigências da nova estética. Tampouco será a pintura mural que salvará a crise deste gênero, o que é presumível pelo movimento da arquitetura moderna que tende para o desaparecimento do muro. Não se tratará pois de um acostamento extrínseco dos diferentes gêneros mas de uma conjuntura real e efetiva entre a pintura, a escultura e a arquitetura.8
A fala visionária de Brest se relaciona com algumas concepções que foram caras à arte brasileira, como a síntese das artes ou arte-total, articulando o interesse despertado dos artistas concretos pela arquitetura, por exemplo. A reivindicação pelo espaço real (próprio da arquitetura) e o rompimento com a bidimensionalidade na pintura e com o volume na escultura, indicariam os caminhos para essa síntese.
Romero Brest ainda esteve presente como jurado de três bienais (1951, 1953 e 1961), além de organizar o envio da importante mostra sobre arte concreta argentina ao MAM RJ, em 1953. Também compartilhava o interesse pelas propostas de Max Bill, outro eixo de interseção entre Brasil e Argentina, publicando artigos do artista suíço na revista sob sua direção, Ver y Estimar.9
Sabemos do impacto que a escultura Unidade Tripartida de Max Bill, grande prêmio da I Bienal, de 1951, causou no panorama artístico latino-americano no decorrer da década de 1950. Tomás Maldonado, artista concreto argentino, outra figura fundamental que estaria presente na II Bienal de São Paulo e que estabeleceu contato com os concretos paulistanos, escrevera sobre as esculturas de Bill: “hablaban a la sensibilidad en un idioma hasta ahora nunca escuchado”. Unidade Tripartida era uma das obras de “mayor temperatura lírica de la escultura contemporánea”10 (MALDONADO apud GARCÍA, 2008, p. 35). Leonor Amarante (1989, p. 24-25) nos conta que Romero Brest disse ter sido o responsável pela premiação de Max Bill na I Bienal:
Chegando ao Trianon, o júri já trabalhava há dias e então pedi algumas horas para ver as obras. [...] Encontrei uma obra sensacional, Unidade tripartida. Voltei correndo ao júri e disse: Senhores, acabo de descobrir um trabalho que deve ser, sem dúvida, premiado. [...] Mas deu para perceber que nenhum deles tinha visto a obra.
A estrutura básica da escultura era a fita de Möebius, uma linha infinita que traduzia a investigação rigorosa do artista suíço aos princípios de uma arte científica com fundamentação matemática e estruturas geométricas. Conforme escreveu Bill, “o elemento de toda obra plástica é a geometria, relação de posições sobre o plano e o espaço”.11 Seus escritos circularam em diversas publicações portenhas e Maldonado, por exemplo, publicou o livro Max Bill,12 em 1955. Um ano antes, o concreto argentino viajou à Ulm (Alemanha), a convite do próprio Bill, para ser professor da Escola Superior da Forma, onde seria posteriormente diretor. O artista suíço e todo seu suporte teórico auxiliaram as propostas dos diversos grupos concretos argentinos que trabalharam de diferentes modos, a partir de alguns pontos fundamentais: a ruptura com a figuração e a afirmação dos valores do concretismo, a preocupação com a inteligibilidade das obras e o desejo de transformação da realidade por meio de uma arte comprometida com o social (PERAZZO, 1990, p.162).
A penetração das ideologias construtivas na América Latina esteve ligada aos projetos desenvolvimentistas do continente. De acordo com Ronaldo Brito, “encaixavam-se com perfeição os projetos reformistas e aceleradores dos países [...] e serviram, até certo ponto, como agentes de libertação nacional frente ao domínio da cultura europeia, ao mesmo tempo em que significavam uma inevitável dependência a ela” (1977, p. 303). O “sonho suíço” de transformação social integrava-se ao esforço de superação do subdesenvolvimento e do atraso econômico e cultural típicos de nossos países, por meio de uma arte disposta à ordem racional, capaz de estabelecer uma dinâmica progressista no campo cultural (1977, p. 304).
O certo é que nas décadas de 40-50 há uma coincidência de objetivos entre as ideologias construtivas no plano cultural, o desenvolvimentismo no plano econômico e as alianças culturais no plano político. No Brasil, por exemplo, a década construtiva por excelência é a do desenvolvimentismo [...] e do processo econômico denominado ‘substituição de importações’. Ao rápido crescimento e modernização das grandes cidades corresponde também a ambição de nossa burguesia superar a condição, como país, de mero exportador de matérias-primas minerais, de país agroexportador. Este esforço modernizador e o crescimento demográfico das cidades vão gerar novas formas culturais (MORAIS, 1979, p. 88).
É incontestável que a Bienal tenha se constituído como vitrine de diversas tendências da arte argentina a partir da década de 1950. O internacionalismo aberto pelas tendências abstratas, que dominou as primeiras Bienais, e a consolidação de São Paulo como novo centro artístico de grande visibilidade internacional substituíam a antiga supremacia cultural argentina. A Bienal pôs em funcionamento uma complexa maquinaria de gestão cultural, redesenhando uma nova geografia para o mundo das artes (GARCÍA, 2004, p.17). As Bienais de São Paulo tinham como missão divulgar a arte brasileira em momento de privilegiada atenção internacional; apresentar a arte estrangeira para o público local; representar simbolicamente a cidade de São Paulo e o mecenato de seu empresariado; e servir como articulação internacional de críticos envolvidos na formulação das representações nacionais (HERKENHOFF, 2001, p. 118-119).
Buscando sair do isolamento cultural da primeira fase do peronismo (1946-1952), que se encontrava à margem dos novos códigos estéticos que haviam sido patrocinados pela nova burguesia econômica e cultural paulistana, diversos atores culturais argentinos procuraram renovar a programação de seus aparatos institucionais. A atualização das instituições argentinas, que seguirá ao longo da década de 1960, terá como ápice a abertura do Centro de Artes Visuais (CAV), do Instituto Torcuato Di Tella,13 conduzida por Romero Brest, em 1963. Esse grande empreendimento cultural tinha o perfil mais próximo das iniciativas paulistanas de Ciccillo e Chateaubriand e deu impulso à internacionalização da arte argentina. Desse modo, podemos concluir que é possível que o país vizinho tenha se esforçado para recuperar a visibilidade no circuito latino-americano, tendo como pano de fundo a atualização das linguagens artísticas promovidas pelas primeiras instituições modernas brasileiras.