Que se eleva
No campo das artes, determinados objetos, experiências ou eventos costumam ser designados pelo adjetivo belo. Ao designar beleza a este objeto, indicamos que temos prazer, um sentimento cordial e positivo com a visão do objeto – e, segundo alguns estudos neurofisiológicos, até mesmo uma “injeção de serotonina” (GARDNER, 2012, p. 50). Definido o objeto como belo, estaríamos satisfeitos a isto, podendo apreciá-lo, mantendo uma distância do mesmo, sem precisar ou desejar adquiri-lo, levá-lo para casa, possuí-lo. Não tentamos abraçá-lo, nem o comer, tampouco ter grandes reações emocionais. O objeto projeta e detém um poder definido, e somos inclinados a revisitá-lo periodicamente para recriar ou amplificar o sentimento agradável.
No entanto, a um grau mais acima, o sublime nos comunicaria sobre sua capacidade de expressar emoções através de beleza “elevada” ou do horror. A ideia de que uma representação poderia servir de meio para gerar determinados sentimentos no espectador abriu novas portas para a arte. Caspar David Friedrich passou a usar a paisagem como veículo para transmissão de seus sentimentos, deixando de ver a arte como uma simples imitação da natureza para fazer dela veículo de transmissão de um sentimento interior. Da mesma forma, muitas obras de William Turner são marcadas pela evocação de sentimentos sublimes, à maneira descrita pelo inglês Edmond Burke. É importante notar aqui o papel ativo que o espectador adquire no processo de construção da imagem, para essas novas teorias estéticas. De acordo com Burke,1 o efeito do sublime dependeria em grande parte da imaginação do espectador, imaginação essa que esteve no centro das investigações e teorias estéticas ao longo de toda segunda metade do século XVIII.
O termo “sublime” – do latim sublimis, “que se eleva” ou “que se sustenta no ar” – entrou em uso a partir do setecentos iluminista, a fim de indicar uma nova categoria estética, que se distinguia do belo e do pitoresco, e segue esse conceito, mais ou menos da mesma forma, desde então. Assim como no antigo texto Sobre o Sublime, atribuído ao filósofo Longino, tal conceito diz respeito a uma força que faz com que a alma se eleve; é o maravilhamento diante de desastres naturais; insere-se no contexto da sensação de impotência humana diante da grandiosidade da natureza; e denota em nós alguma dose de existencialismo. Os aspectos mais significativos da categoria do Sublime na teoria estética podem ser apreendidos através de leituras clássicas de Kant, Burke, Nietzsche, Adorno e Schopenhauer, por exemplo, mas muitos pensadores atuais referem-se a tal categoria em novos artigos e livros contemporâneos, em termos poéticos, filosóficos e também a partir de suportes científicos, com o advento da neuroestética,2 por exemplo.
Visibilidade do sensível
No sentimento do sublime kantiano, a imaginação concorre com a razão, provocando uma espécie de cacofonia. Se o sentimento do belo, pela concordância harmônica de duas faculdades, cria familiaridade e prazer, o sublime é o estranho, o incontrolável, uma grandeza absoluta que abisma a imaginação em uma inação, uma impotência. Mas ainda assim, mesmo que imaginação e razão não estejam em acordo, “as antinomias coagem a contragosto o olhar para além do sensível e a procurar no suprassensível o ponto de convergência de todas as faculdades a priori; pois não resta outra saída para fazer a razão concordar consigo mesma”. (KANT, 1995, p. 249).
Não cabe aqui o debate das questões do juízo de gosto nem as constatações por vezes cínicas e desgastadas do esgotamento da arte e da sua materialidade, mas talvez o resgate de uma definição simples de Hegel: arte como apresentação sensível de uma ideia. Para apreender a homogeneidade dessas fórmulas basta compreender que a Ideia hegeliana não é em nada o mesmo que a ideia intelectual. Desse modo, podemos dizer que arte é a visibilidade sensível dessa visibilidade inteligível, isto é, invisível. Como não lembrar aqui da gravação do túmulo de Klee, citado no tão conhecido texto de Merleau-Ponty:3 “Eu sou invisível na imanência”.
O pensador e filósofo Jean-Luc Nancy (2009, p. 16) escreveu sobre querer significar a ausência e afirma que a arte é a visibilidade desse sensível. O sublime despertaria em nós um desejo que ultrapassa a significação do prazer: trata-se de um desejo que não se satisfaz com o objeto, nem mesmo em tê-lo, possuí-lo. Também não é da mesma ordem de ter que buscar uma funcionalidade, nos suprir de alguma forma, resolver um problema. O que quero dizer é que essa atração estética que nos presenteia com algo mais não deriva de conceitos, isto é, “não pode ser demonstrado nem falsificado mediante raciocínio lógico” (MAMMÌ, 2012, p. 32). Esses conceitos são possíveis pontos de partidas e inspiração para uma nova geração de artistas contemporâneos, numa tentativa de buscar o mesmo efeito: a evocação de uma profunda emoção, ou talvez seja algo semelhante ao que Canclini definiria hoje como Iminência (2012) ao se referir a obras de arte. Nancy (apud HUCHET, 2012, p. 297) segue pressupondo que:
O que conta é, portanto, uma visibilidade do invisível como tal, ou a idealidade tornada presente, ainda que fosse à presença paradoxal de seu abismo, de sua noite ou de sua ausência. É isso mesmo que faz o belo, desde Platão, e mais ainda talvez desde Plotino, para quem se trata, no acesso à beleza, de tornar-se si mesmo, em sua intimidade, luz e visão pura, e assim, “o único olho capaz de ver a suprema beleza”.4 A suprema beleza, ou o brilho da verdade, ou o sentido do ser. A arte, ou o sentido sensível absoluto. E é ainda isso que faz o belo indo além de si no “sublime”, depois do terrível” e igualmente no grotesco, na implosão da ironia, numa entropia geral das formas.
Contudo, não nos precipitemos a concluir que a poética de artistas contemporâneos deve conter pretensões de elevações morais hegelianas. Esperar que artistas reencontrem antigos conceitos estéticos e busquem o sublime, o “verdadeiro” ou o “bom”, é de fato um discurso que estaria em total desacordo com o conceito de liberdade ou pluralidade, e conteria em si exortações morais de natureza bastante cínica. Como podemos entender das palavras de Lyotard (1993): o sublime deve deixar de ser uma questão de elevação para se tornar questão de intensificação.5
Jia Aili, geração pós-revolução cultural chinesa
Partindo de entendimento dos conceitos do sublime estético, proponho neste artigo uma breve investigação a respeito de Jia Aili, jovem artista contemporâneo que faz parte de uma pequena elite de promissores artistas emergentes chineses, carregando já conceituada projeção.6
Nascido em 1979, Jia Aili sustenta a ideia de uma personalidade um tanto introvertida, silenciosa e enigmática, apesar da pouca idade. Frequentemente apresenta-se usando uma máscara de gás, objeto recorrente em algumas de suas obras. Filho único e fruto de uma política assim instaurada em seu país naquele mesmo ano, nasceu em Dandong, nordeste da China e fronteira com a Coreia do Norte, marcado pelo gelado rio Yalu, local de horizontes planos, frios e de grandes extensões, região onde o inverno se arrasta por meses. De família humilde, também viveu e estudou em Shenyang, uma cidade distrito industrial que há anos sofreu colapsos econômicos e entrou em declínio. Frequentou a Academia de Belas Artes Luxun, rica em tradições artísticas do Realismo Soviético, local onde foi exposto ao que um regime socialista permitia artisticamente. Sua produção permeia algumas dualidades entre tradição e saudosismo dessa época, por um lado, e um sentimento confuso a partir do rápido desenvolvimento econômico do país, com suas mudanças de valores e avanços capitalistas, por outro. Há quem remeta essas experiências como força motriz em suas temáticas artísticas.
Trabalhando basicamente com técnica de pintura clássica e realista, acrescenta elementos às obras conforme os locais expositivos, participando ativamente da produção e curadoria de suas mostras, muitas vezes gravando e transformando todo o material expositivo ou registrado durante processo de criação, em novo material que por ventura acompanha suas grandes telas. Não raro, utiliza-se de materiais que a temática da obra em produção possa lhe solicitar, como areia, petróleo, musgo, fungos, metais e outros resíduos que possa aplicar na composição, trazidos de locais ermos, zonas urbanas decadentes e áreas rurais inóspitas, mas que, de alguma forma, sempre lhe soam familiar e servem de inspiração.
Além do caráter onírico de algumas obras, nota-se uma constante referência a situações catastróficas, espaços industriais abandonados e repletos de resíduos inorgânicos, paisagens áridas e lacônicas, solidão humana e realidades criadas a partir de um mundo apocalíptico, desolador, além da redenção. Jogos de claro e escuro e situações de fluidez atmosférica refletem algo do caráter do sensível, da dualidade nascimento-destruição, esperança-desespero, confrontando o espectador com a sensação de mal-estar e pequenez.
Uma entre tantas obras sem título do artista reflete uma espécie de deserto moderno, inspirado no distrito Tiexi, um parque industrial abandonado que remonta aos anos de 1930, quando o Japão manteve no local fábricas de pesadas armações de construção civil, hoje completamente obsoletas, que após falências e demissões em massa, desembocou no surgimento de uma espécie de cidade fantasma. O espelho no chão dá o aspecto tridimensional à obra, e as pinceladas e grafites que ultrapassam a tela nos mostram um campo extremamente amplo de recursos sensíveis onde o artista parece circular com liberdade excepcional.
Good morning, world! é outra pintura a óleo de grandes dimensões. Seu título, que aparece desenhado em linhas brancas sobre a obra de forma peculiar, coincide ao de um seriado americano transmitido durante a década de 1960, que girava em torno da vida de um grupo de radialistas matinais. Também é uma saudação semelhante às utilizadas nos meios de comunicação de massa, numa alusão ou possível referência aos órgãos de comunicação governamentais controlados, que funcionam principalmente como porta-vozes do Partido Comunista Chinês. Essa pintura retrata uma estátua de Lênin, figura de grande relevância para os laços que uniam a China com a União Soviética. A estátua repousa em uma floresta verdejante, com o braço direito estendido, num gesto típico comunista. Em certo sentido, parece conter algo simbólico a partir da transição do país do comunismo para o seu hibridismo pós-moderno. Não há como deixar de pensar historicamente nas mudanças e nas novas gerações, tratando-se de um artista que precisa lidar constantemente com o fato de viver em um país com quase 5.000 anos de história. A obra parece sofrer uma intervenção com linhas desenhadas por sobre a pintura, onde uma rede vazia para caça de libélulas aparece desenhada por sobre a tela.
Sobre a universalidade
Para Nancy, a beleza sublime é algo tão mais sério que procura ser universal. É essa sensação, comum a todos, que evidencia o conhecimento de algo que não pode ser relativo ao capricho dos gostos, dos temperamentos, dos momentos ou dos prazeres vulgares:
Muitas obras de arte hoje, muitas demais, talvez, para concluir, são apenas sua própria teoria, ou pelo menos, parecem ser apenas isso. Se quisermos realmente ser atentos, e pesarmos com precisão as palavras e sua história, conviremos que há uma definição da arte que engloba todas as outras (para o Ocidente, pelo menos, sendo “arte” um conceito do Ocidente). É, sem nenhum acaso, a definição de Hegel: a arte é a apresentação sensível da Ideia. Nenhuma outra lhe escapa suficientemente para se lhe opor de maneira fundamental. Ela encerra, até nós, o ser ou a essência da arte. Mediante várias versões ou nuances, ela vale de Platão até o Próprio Heidegger (pelo menos, até o texto conhecido da origem da Obra de Arte; o mesmo não acontece com a primeira versão desse texto, como E. Martineau a publicou em 1987; mas não posso entrar aqui na análise necessária). (NANCY, apud HUCHET, 2012, p. 296).
O conceito de sublime estaria perceptível em íntima vinculação ao caráter histórico/processual de obras como as de Jia Aili, momento em que a dimensão de alteridade/transcendência se liga às tensões da configuração das telas. Quero dizer que, salvo a se ater a informações de caráter histórico, se estabelecida uma análise de seu aspecto poético ou mesmo formal, nós não restringimos nenhuma destas grandes telas ao seu contexto cultural original. Tomamos tais obras como sendo relevantes para nossa orientação e como sendo transculturalmente eficazes. Por mais distante que a origem dessas obras possa estar, no espaço e no tempo, temos a sensação de que o que está em jogo somos nós. Como se tais imagens contivessem em si uma promessa ou um desafio (e um potencial) de expandir e melhorar nossa sensibilidade, nosso entendimento e talvez também nossa vida.7
Na era moderna, nos acostumamos a pensar que tudo está estritamente atrelado a seu contexto cultural. Passamos a acreditar que toda experiência, criação e cognição são determinadas por sua estrutura cultural e, portanto, também restritas a ela. Esse é o axioma moderno por excelência. Ele reside na raiz de todas as variedades de relativismo, contextualismo e culturalismo que dominam a cena contemporânea nos estudos culturais.
Lorenzo Mammì, no seu ensaio “Isto, aquilo e o valor disto”, nos diz, remetendo à Kant, que o conteúdo extra-artístico deva ser uma essência de ordem completamente contrária a uma função (ou no caso, valor), porém, percebo que esse conceito é amplamente confundido. É um erro a suposta obrigatoriedade de crer de antemão no caráter estético do que possamos encontrar dentro do sistema atual das artes. Muitos dos objetos hoje propostos como obras podem não resolver nem responder ao nosso envolvimento, “regredindo seu status a meras coisas”. Isso pode ou não diminuir seu valor no jogo, mas a questão aqui não são obras que desinteressam, mas as que interessam além.
Nasce daí, também, um novo tipo de produção artística, em que cada obra se põe, conscientemente, como fundadora de um mundo de relações. [...] Por ser coisa mental, coloca-se num ponto originário de que brota tanto a sensação quanto o pensamento. (MAMMÌ, 2012, p. 38).
Segundo o filósofo e esteta alemão contemporâneo Wolfgang Welsch, é como se uma fibra até então desconhecida de nossa existência tivesse sido sensibilizada. Um lado de nós sobre o qual até então não sabíamos nada e que agora repentinamente começa a ressonar. Assim se explicaria o fenômeno do belo sublime. A isso estaria associado um fato inegável e digno de reflexão: o fascínio que a arte é capaz de inspirar em seres humanos de todas as formações e culturas. Esse fascínio não é condicionado pelo pertencimento a uma cultura específica e tampouco é restrito a qualquer cultura em particular. Indubitavelmente, grande parte daquilo que consideramos belo é culturalmente condicionado. A beleza sublime e arrebatadora, no entanto, não é. (WELSCH, 1997, p. 61).
Existe no discurso de Welsch uma característica que engloba algo sobre o conceito do fascínio e que nos diria que, independente do pertencimento a qualquer cultura em particular, independente de sermos um sujeito contemporâneo histórico ou pertencer a uma “história efetiva”, deva haver algo na constituição humana como tal que nos torna receptivos à atração de algo mais profundo que nossa formação cultural específica nos fornece, algo transcultural que está atrelado ao potencial humano como tal. É essa a visão – um tanto positiva, por mais que subjetiva – que ele chama de “Dimensão Transcultural Subjacente”:
Ainda que fosse verdade que nós inevitavelmente abordamos aquilo que não nos é familiar através do filtro de uma perspectiva culturalmente condicionada (como os hermeneutas defendem), isso ainda assim não mudaria o fato de que só podemos experimentar a força transcultural de obras como o templo de Ginkakuji porque existe uma dimensão imanente dentro de nossa formação cultural que transcende a estrutura cultural. Em meio aos nossos moldes culturais se abrem caminhos até mesmo para as obras de arte mais "exóticas".8 Nossa formação cultural obviamente contém algo que abre caminho para outras culturas – e eu não estou apenas falando do beco-sem-saída da alteridade auto-modelada, que nos deixa presos dentro de nós mesmos, mas sim de caminhos que realmente levam ao outro. (WELSCH, 1997, p. 61).
POTÊNCIA VERSUS EMERGÊNCIA
Jia Aili não procura chamar uma teoria, ou desconstruir um aspecto do clima sociopolítico, como muitos pintores chineses contemporâneos têm feito, e que foi tendência em particular no final dos anos 1980. Os tempos mudaram. Ele também é classificado como um membro da geração pós-Mao da China, nascido em um mundo de modernização, que viria a ter pouca relação com a sociedade e as condições sociais das épocas anteriores, porém o artista parece recriar circunstâncias que postulam um cenário a partir do qual épicos literários trágicos são tecidos. Ele parece querer que os espectadores passem a sentir a angústia e o isolamento do mundo pintado: para sair de seus mundos e experimentar o seu. Isso explica o desejo pela enorme escala, considerada necessária para as pinturas, o que atrai os espectadores finalmente para perto da alma solitária que constantemente insere nas vastas massas de terra nas quais preparou o palco para seus dramas psicológicos sinópticos. Sua arte é, então, sobre a condição humana, razão pela qual as imagens ou cenas retratadas não são específicas para a China, nem especialmente para a época, mas talvez para uma experiência individual dessa sociedade em rápida modernização que atua como pano de fundo para a consciência da fragilidade humana e sua vulnerabilidade.
Crer que a arte estaria sempre e essencialmente vinculada à beleza foi um erro fatal de antigos estetas. Contudo hoje, com todas as defesas do pluralismo, característica tão forte da arte contemporânea, estar em desconforto e resistência ante as genealogias de outros tempos parece esboçar certo filistinismo estético. Talvez a opção de alguns novos artistas seja acertada: experienciar, reelaborar antigos conceitos e permitir tal liberdade – como opção, não como exclusão.