As funções professor e artista indicam estados que, por suas especificidades, dialogam entre si, afastando-se ou se aproximando de acordo com os fatores envolvidos em cada contexto. A mediação de uma exposição de arte, por se situar em um tempo-espaço maleável1 (WILLIAM, 2013), certamente afetará os envolvidos de modo mais incisivo do que os reduzidos quarenta e cinco minutos dedicados a cada aula nas grades fragmentadas das escolas de ensino regular. O tempo, fator essencial para a construção do conhecimento – do mundo e de si – é peso fiel na balança que marca as intensidades desse relacionamento entre as funções professor e artista. Embora o tempo de contato do professor com os estudantes estenda-se durante um ano letivo, minha experiência mostra que os aspectos burocráticos e comunicacionais exigidos pelas escolas colocam em primeiro plano o objetivo de se ter um ensino de progressão, em que as notas sobre avaliações são mais comentadas do que práticas radicais de alteridade, tão necessárias a nossos tempos de convívio social fragmentado e de total estranhamento. Néstor Garcia Canclini (2016, p. 68), no artigo O mundo inteiro como lugar estranho, afirma que “podemos ser estrangeiros em nossa sociedade, quando diante de um compatriota, nos perguntamos: o que ele quis dizer?”. Deslocando essa afirmação para o contexto desta discussão é possível olhar para a escola (salvo poucas exceções) e perceber que grande parte das práticas de alteridade – como viver juntos, como trabalhar juntos, como conviver – são secundarizadas, aparecendo em gincanas escolares que acontecem uma vez por ano ou em trabalhos de grupos cujo formato se assemelha mais ao trabalho fragmentado fabril do que uma possibilidade de perceber o outro.

O fazer e o ensinar arte estão imbricados desde sempre: fazer e descobrir fazendo estão tão próximos quanto o mar da areia. A historiografia tradicional nos mostra alguns exemplos desta relação no Renascimento, na Bauhaus, em Beuys ou no Black Mountain College, para citar apenas alguns. As experiências artísticas e educacionais experimentadas por esses espaços são referências que permitem observar variações de intensidade das trocas entre professores e estudantes. A partir da observação dessas trocas, podemos perceber que o processo artístico e educativo2 divide-se em dois aspectos paralelos que se encontram esporadicamente, porém sem a certeza de que isso irá ocorrer em todos os momentos.

O primeiro é um processo que comunica aos estudantes a existência de um circuito artístico: seus personagens, suas regras e as técnicas e estratégias reconhecidas por ele, de modo a iniciar novos artistas e mantê-lo em funcionamento. Os cursos de arte aparecem nesse contexto, visando formar artistas – sujeitos criadores de situações. O segundo aspecto é um processo de sensibilização do sujeito, visando o ensino para uma experiência no mundo (LAROSSA, 2014). Este último aspecto é querido aos discursos pedagógicos em voga atualmente e, aliado à máxima formar cidadãos críticos, aparece nos objetivos da maioria esmagadora de planos pedagógicos. A prática destes exercícios – tanto de experiência, quanto de criticidade – na maioria dos casos restringe-se às disciplinas humanas, principalmente à disciplina de arte, deixando subentendido que esta distinção entre metodologia ou objetivo do processo educativo é um modo de abrir espaços para que outras disciplinas ensinem conhecimentos úteis e funcionais. Entretanto, mesmo tendo o privilégio de experimentar outras formas de abordagens do conhecimento, é possível que os professores de Arte, História, Filosofia e Sociologia enrijeçam suas práticas enquanto historiadores de suas disciplinas, como constata Joseph Kosuth (2006, p. 211) no texto Arte depois da Filosofia, ao dizer que “os filósofos contemporâneos, em sua grande maioria, são na realidade pouco mais do que historiadores da filosofia”.

A diferença entre esses dois aspectos acontece, entre outros motivos, através das estruturas que os tornam possíveis: o lugar de atuação de um professor da rede básica brasileira normalmente fica aquém do suporte necessário para o desenvolvimento de propostas que fujam do duplo professor-estudante; o tempo mecânico, com sinais e sons utilizados para condicionar corpos, é diametralmente oposto ao processo artístico lento e contínuo que caracteriza produções pensantes. Desse modo, a grande função desse espaço é modelar corpos e ditar mundos. Outro aspecto evidente é como o sujeito de cada função – artista e professor – identifica-se com o seu processo de trabalho. Alguns professores, ao se entenderem como transmissores de conteúdos ditados verticalmente e hierarquicamente, e tendo pouco espaço de escolha de assunto dentro da rigidez descontextualizada de assuntos preestabelecidos, tornam-se ilustradores desta informação externa, procurando as melhores maneiras de apresentar tal conteúdo, não questionando a própria diretriz em si, tampouco aproximando o conteúdo do processo vital dos participantes da aula. Práticas semelhantes surgem em todas as disciplinas, desde as chamadas exatas, quanto as biológicas e humanas – a artística dentro dessa. Muitas vezes, pelo sucateamento do sistema educacional atual, as escolas tornam-se propícias para este tipo de prática árida.

Este sistema bancário é criticado por Paulo Freire no livro Pedagogia da Autonomia, quando diz que “é nesse sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma e estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (FREIRE, 2011, p. 25). Nesse sentido, Freire aponta a necessidade de um processo onde professor e estudante se identifiquem em ambas as funções, cujo diálogo construiria um conhecimento específico à realidade de ambos. A educação, assim como o trabalho artístico, não é um exercício de transmissão.

Embora a Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire, seja citada nos PPP's (Planos Político Pedagógicos) de grande parte das escolas brasileiras, sua prática está longe de se tornar realidade. Os fatores estruturais e técnicos citados acima contribuem para que haja um deslocamento entre teoria e prática, tendo, entre suas causas, a total falta de controle, por parte dos professores, sobre os processos de construção da aula. Além dessa falta de controle, a hierarquia que teima em se evidenciar e a pesada burocratização exigida dos professores ocupa grande parte do tempo de trabalho, seja através dos sistemas de avaliações pré-definidas (provas, trabalhos, seminários) ou no serviço burocrático prestado por quem deveria preocupar-se com o desenvolvimento das atividades. Quando os docentes atuam como burocratas, passando mais tempo nos corredores e escritórios administrativos, perde-se o tempo que seria melhor utilizado para o desenvolvimento de estratégias criativas.

Neste contexto de uma prática voltada a um exercício da autonomia, aparece a figura do professor-artista, atuando em um processo entre o professor e o artista. Normalmente, esse professor é o regente da disciplina de arte, que têm uma prática artística vinculada à sua prática educacional. Esse sujeito, entendido em tal contexto como uma figura entre (ROSA, 1988), ou seja, movente e contextual, é trazido à discussão por pesquisadores como Alan Thornton (2013), Jociele Lampert (2013), Harrell Fletcher (2009) e outros pares, no intuito de utilizar desta faceta não saturada do novo personagem para apresentar novos pontos de vista a respeito do processo de ensino-aprendizagem. Alan Thornton (2013, p. 52) define a figura desse sujeito como uma possível “soma desses fatores, associada com as identidades separadas de professor e artista ou como uma sinergia nas quais novas características, atitudes, conhecimento e habilidades são desenvolvidas ou criadas”.

Dentre as duas possibilidades apresentadas por Thornton, a primeira parece-me um despropósito, pois percebo o personagem descrito – soma da habilidade de dois sujeitos distintos – como improbabilidade e tentativa de alterar o objeto de estudo a partir de um novo nome, mantendo ainda pontos fracos ou anacrônicos de cada um. A segunda possibilidade, por entender que a formação deste ser híbrido deve vir acompanhada e causada pelos questionamentos de suas estruturas e signos – bem como a destruição de características obsoletas e a implementação de outras novas – apresenta problemas atuais, soando como mais adequado ao tempo em que vivemos, tempo este que não condiz com a realidade dos modelos educacionais hegemônicos do Longo Século XX (SAVIANI, 2004) ou das escolas tradicionais, que temem em repensar a si e com isso perder as características que as definem enquanto lugares de saber.

Essa pluralidade de manifestações e informações deve-se aos acontecimentos acelerados do século passado, que levou Saviani (2004) a chamá-lo de longo século. As duas Guerras Mundiais; a Revolução Russa; a Guerra Fria; a Guerra do Golfo; as ditaduras militares nos países da América Latina, financiadas pelos Estados Unidos; e os movimentos pacifistas dos anos 1960-70 foram alguns dos acontecimentos que tornaram possível que, em um curto espaço temporal, fossem confrontadas posições contrárias sobre muitos assuntos, abalando crenças arraigadas sobre política, religião e também arte.

Esses e outros acontecimentos propiciaram inovações tecnológicas, com avanços na comunicação de massa, viagens espaciais, meios de reprodução de imagens, objetos e discursos, gerando com isso novos campos de atuação. A esses campos tecnológicos também acompanharam novos campos artísticos: performance, body art, instalação, arte conceitual, minimalismo, arte postal, bem como a aparição de funções inéditas dentro das instituições dos circuitos artísticos, como é o caso da figura institucionalizada do curador e, mais recentemente, do arte-educador.

Tais campos e funções surgem com a necessidade da profissionalização, tanto do artista como dos outros sujeitos que compõem os circuitos que geram e giram os discursos sobre arte; necessidade que é eco da proposta moderna de autonomia da arte enquanto campo epistemológico. Somado à necessidade de profissionalização, diversos artistas começam a atuar como docentes em universidades e escolas, entendendo-as enquanto espaço de produção artística e teórica. Essas práticas em espaços educativos, pensando-os como parte da constituição do trabalho e não apenas como espaço sem significados, são presentes nas propostas de diversos artistas conceituais desde os anos 1960, ao abarcarem a discussão teórica que se apresenta mesclada ao seu próprio objeto de estudo, diluindo as fronteiras que outrora definiam o produto da arte e seus produtores, complexificando identidades e lugares estabelecidos.

Discutir sobre as especificidades de campos artísticos incitam artistas a levarem seus processos poéticos para outros lugares alijados do circuito corrente. Dentro desse novo cenário, com a promessa de infinitas possibilidades, é potente o chamado performático de Allan Kaprow (2003, p. 227): “artistas do mundo, larguem o meio! vocês não tem nada a perder além de suas profissões”, conclamando que esses abandonassem os circuitos artísticos e atuassem em outras profissões, radicalizando a proposta do ready-made duchampiano, ao assinalar a possibilidade de ser artista e produzir arte em qualquer lugar. Se em Duchamp o espaço museal atesta que objetos colocados arbitrariamente em seu interior são diferentes dos mesmos encontrados no cotidiano, com Kaprow a intencionalidade do an-artista mostraria novas possibilidades de mudar trabalhos, modernizar. Kaprow (2003, p. 219) aponta que a validação de um trabalho de arte – para os não artistas – se daria pela afirmação/apontamento feito pelo não artista ao circuito, sendo que este processo comunicativo “movimentaria suas incertezas”.

O trabalho The trainee (2008), de Pilvi Takala, insere-se neste tipo de prática artística deslocada do espaço museal ou expositivo. Nesse trabalho, a artista é contratada como estagiária de uma agência de publicidade e, durante seu período de trabalho, fica sentada, olhando o vazio de sua mesa. Dessa forma, ela nega o exercício de sua função e desestabiliza o esperado daquele espaço de produção para que a estrutura fixa do ambiente de trabalho gire, tal qual o escrivão Bartleby, do conto de Herman Melville. Tal personagem recusa cumprir suas funções, até mesmo interagir com o mundo, bastando-se em dizer “eu preferiria não fazer”. A ação de Takala gera seu sentido por esvaziar ou realocar funções, por perceber em um espaço onde tempo é dinheiro, a possibilidade para “situações artísticas”. Ao recusar-se a cumprir com a norma, Takala cria uma zona deslocada de afetações.

Outro exemplo de deslocamento do campo de atuação artística é o trabalho Desertos, do Hélio Fervenza, que são cartões de visitas brancos com o nome de um deserto impresso em tipografia preta: Atacama, Gobi e Kalahari. Esses cartões são entregues juntos a outro, que contém dados profissionais do artista, estratégia que Fervenza qualifica como “autoapresentação” (FERVENZA, 2009, p. 69), pois a entrega dos cartões de visita, que acontece no encontro, já é o próprio trabalho, não sendo necessária sua apresentação em espaços expositivos para ser validado enquanto artístico. Embora os exemplos que eu citei não aconteçam no campo da educação na escola, ambos são interessantes para se entender certo tipo de prática artística, cuja afetação não se dá em contato com o objeto, pelo lugar ou pelo anúncio, mas, inseridos no cotidiano, apontam rupturas passíveis de serem repensadas e refeitas.

Outras práticas apontam diretamente para uma relação entre arte e educação, operando a partir de afetos e contatos. Cito como exemplo o trabalho Café educativo, de Jorge Menna-Barreto, que “consiste na instalação do ambiente de um café em um espaço expositivo. Além de servir café ou comida, ele funciona como uma ilha de mediação não diretiva entre a instituição, seu departamento educativo, profissionais do campo da arte e o público”3. O trabalho, entendido como um meio de contato entre o público e a instituição, insere-se no museu como uma fissura, como parte de sua estrutura funcional, porém tornando este espaço de consumo um espaço de trocas.

Também em alguns trabalhos de Ricardo Basbaum, como o Eu-você, NBP (Novas Bases para a Personalidade) ou Você Gostaria de Participar de uma Experiência Artística? o pressuposto é que o elemento artístico do trabalho é decorrente da troca estabelecida entre artista-participante ou objeto-participante. Menna-Barreto e Basbaum – ambos artistas e professores – operam próximos a uma prática entendida enquanto feproista-artssor, com cruzamentos de práticas entre suas pesquisas enquanto professores e artistas, comunicando tais práticas a um sistema artístico.

Partindo do pressuposto de que “ao cabo dos séculos, os homens perceberam que entre as coisas e seus nomes abria-se um abismo” (PAZ, 1982, p. 35), questiono: a ordem dos fatores altera o produto? Ao ser nominado como istapro-fessorart, nosso sujeito tem mais características de uma função do que de outra? É possível um artista-professor na escola? Pensar as possibilidades de combinações entre professor e artista, trouxe a esta pesquisa uma fatura de minha produção artística, que é uma pesquisa sobre linguagem, operando com os sentidos possíveis de palavras recombinadas. Interessado em repensar a nominação das coisas que nos rodeiam e entendendo que estes nomes são vãs tentativas de abarcar o mundo, debrucei minha atenção sobre as combinações entre as palavras professor e artista, não só recombinando as duas, mas fragmentando e formando outras – algumas impronunciáveis. Essas novas formações não surgem apenas como problematizações terminológicas (LAROSSA, 2015 p.17), não encerram seus esforços num exercício poético, mas, na esquizofrenia do processo de nominação, apontam a necessidade de um sujeito que se perceba proartife-ssorsta. Os nomes, que aqui aparecem embaralhados, apontam para sujeitos impossíveis neste texto, pois só surgirão em contextos e processos distintos; o que apresento aqui é a discussão de apenas duas possibilidades desta formação, professor-artista/artista-professor, bem como suas possíveis implicações.

Acredito que não se é ssorart-istapro quando a prática artística toma conta da prática docente, utilizando o espaço escolar – também de criação – como celeiro de participantes-observadores, não havendo preocupação em percebê-los como sujeitos artísticos, o -staprofartissore necessita estar disponível para se perceber tanto como propositor quanto participante das práticas educativas e artísticas. Em certa ocasião, durante o processo de desenvolvimento de um trabalho com um grupo de estudantes, propus que cada um me apresentasse algo que lhes fosse significativo. Poderia ser um objeto, um desenho, um diagrama ou o que o estudante achasse adequado. Propus-me a olhar cada pertence que me fora entregue e escrever um texto indicando um artista que pudesse dialogar com cada proposta. Neste momento, estava sendo o propositor da ação (ainda uma proposta de ensino/aprendizagem), até que um dos trabalhos recebidos me colocou como participante. Em uma caixa pequena, havia peças de um quebra-cabeça e uma orientação para que eu o montasse durante o meu dia, sem interromper os afazeres cotidianos, de modo que o tempo demorado indicaria o espaço que eu dedicaria a meu lazer. A proposta, embora simples, me pegou desprevenido, pois pela primeira vez como professor da rede básica eu havia recebido uma proposição de uma estudante. Ao perceber-me naquele jogo de poderes, deu-se início, dentro do cotidiano escolar, a uma proposta de ação artística.

Os exemplos de proistasfe-artssores que eu conheço atuam, como já assinalei, quase que exclusivamente na disciplina de Arte, de modo que a possibilidade de aparição deste sujeito dá-se nas teias que delimitam um campo chamado de artístico. Trabalhando nos lugares que legitimam o artista e o professor de arte, minhas práticas voltam-se esporadicamente a uma historiografia da arte e a práticas de sujeitos reconhecidos como artistas. Desse modo, minha atuação tanto como professor quanto como artista parece misturar-se, visto que tal prática é movente e esfumaça-se frente a tentativas de limitação. As questões que levanto sobre um aristatfssoer-pro, no contexto escolar, surgem na tentativa de contemplar professores que não sejam apenas os da disciplina de Arte. Sendo o professor-artista reconhecido como o professor da disciplina de Arte, que desenvolve uma prática artística e docente, desenvolvendo as atividades em sala de aula contaminado por este “saber da experiência” (LARROSA, 2015), questiono-me sobre a possível diferença entre este sujeito e um artistprofessor-a.

Harrell Fletcher, no texto Algumas ideias sobre arte e educação, apresenta exemplos sobre suas práticas nos últimos anos, tanto como professor de Arte na Portland State University, no Oregon, quanto como artista convidado para desenvolver trabalhos em alguns países. Limitar qual é o sujeito (artista e professor) presente nas narrativas de Fletcher é uma tarefa que pode apresentar armadilhas, caso partamos do princípio que o lugar determinaria a função. Tal posição pressuporia que atividades que aconteçam em espaços escolares seriam automaticamente relacionadas ao ofício do professor e que atividades que aconteçam em espaços historicamente definidos como artísticos seriam relacionadas ao ofício do artista. Mas o que pensar sobre quando Fletcher descreve as aulas de agricultura que teve durante seu mestrado, afirmando que conviver junto a outros quarenta alunos em barracas numa fazenda de oito hectares teria sido a melhor experiência educacional que tivera? Ou o relato sobre as três aulas, quase todas acontecendo em saídas de campo? Ou o projeto Crow de biodiesel? (FLETCHER, 2009, p. 61). Tais relatos revelam um exercício criativo que ultrapassa as barreiras da escola e das galerias e atinge o convívio social, potencializando relações de afeto e aprendizagem.

O processo criativo deveria ser pautado sobre a incerteza e o professor deveria duvidar de si ao entrar na sala de aula e duvidar de si quando sair dela. Os exemplos que cito acima aparecem no relato de um sujeito que transita livremente nas categorias ocupadas, e essa identidade movente, como o velho que flutuava livremente pelo rio, sem nunca aportar em alguma das margens, é necessária para que a rigidez da certeza não prejudique processos alheios. Os exemplos de Fletcher, mesmo sendo narrados por um sujeito legitimado enquanto artista, apresentam poucos elementos do que ainda são consideradas como únicas características da arte. A principal preocupação que aparece nos relatos é uma sensibilização para o sútil a partir de exercícios que acontecem de diversas maneiras, seja a aula feita inteiramente de saídas de campo, ou a aula onde os estudantes encontraram-se com o professor no primeiro e no último dia do semestre, e neste intervalo, durante todo os dias no horário da aula, deveriam realizar uma atividade ao ar livre. Essas atividades inserem-se em uma estrutura existente (a Universidade), no entanto subvertem o que é esperado de tal lugar, utilizando-o para a prática do viver, o exercício mais radical proposto pelos situacionistas: a construção da própria vida.

Por não se pautarem nas linguagens tradicionais como único meio de um olhar atento ao mundo e como exercício de sensibilidade, essas práticas tornam possíveis a atuação de um tistara-ssrofrepo em outras disciplinas, como matemática, geografia ou química, não comunicando sobre a existência de/para um externo, que é o circuito de arte tradicional e suas regras/personagens.

Tal serviço de comunicação sobre este externo, que é o sistema das artes, seria prestado por um sujeito que se nomina primeiramente como professor, alguém que professa4 sua fé sobre algo. A arte por sua vez, com exceção do alto modernismo, observa o que é externo a si e não apenas suas especificidades, pois tal prática de autorreferência se assemelharia ao processo de digestão de um ruminante. Dessa maneira, o ristaat-frosesorp transitaria entre essas duas posturas, observando práticas artísticas semelhantes ou referentes, mas principalmente colocando-se disponível para educar a fim de que se possa “parar para pensar, parar para olhar, para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e ouvir mais devagar” (LARROSA, 2015, p. 25), em um processo que culminaria em práticas singulares, no coletivo (espaços educacionais) e também no sujeito do processo educacional.

O processo do “saber da experiência”5 abarcaria, neste contexto escolar, os sujeitos de sua ação, incluindo professores e estudantes. Nesse espaço, apontando para a especificidade de cada situação, atitudes poéticas potentes se desenvolveriam sem necessariamente serem referenciadas à arte, dado a necessidade de um atestado de artisticidade para que a escola volte sua atenção aos processos de subjetividades dentro de seus espaços.

Artistas, ao longo dos últimos 50 anos, têm investigado outras possibilidades e lugares de criação, entendendo que o que define um trabalho de arte pode ser uma estratégia ainda não percebida como pertencente ao artístico. Assim, separo o professor-artista do artista-professor não somente enquanto estratégia discursiva e metodológica, mas também enquanto percepção de seu próprio lugar. O ar-istatprofessor seria aquele que voltaria seus esforços para que esta atenção, este cuidado da vida e de si tornem-se o objetivo do processo educativo e artístico, de modo que os conteúdos apareçam como transversalidades para que tal atenção ao mundo seja possível.

Essas reflexões surgem a partir de experiências distintas em sala de aula, lecionando para estudantes de 11 até 63 anos, sempre em escolas públicas e também a partir de experiências de montagens de exposições, feiras de arte, oficinas com artistas e todas as instâncias que artistas utilizam para fazer circular seus trabalhos. Ao longo dos últimos três anos, percebi que as inquietações e dúvidas que movem meu processo artístico, ou seu aspecto mais visível enquanto tal, são semelhantes a dúvidas que movem meus processos educativos. A construção de uma aula, quando pensada a partir dessas semelhanças e considerando tais dúvidas, é semelhante a construção de uma proposição artística.

Durante a apresentação de um seminário no mestrado, compartilhei as dúvidas que movem meus processos, dizendo que elas são motores de minhas práticas e que inúmeras vezes saio da sala de aula com mais dúvidas do que quando entrei: se a metodologia utilizada foi a mais adequada, como fazer diferente, se o assunto está gerando sentidos aos estudantes, como apresentar diferente. Como diz Vila-Matas: “sou todo dúvidas” (VILA-MATAS, 2004, p. 54). Após esse seminário, uma colega de mestrado argumentou dizendo haver uma contradição em minha fala, pois se eu estava propondo um exercício de autonomia em sala de aula, as dúvidas deveriam ser as menores possíveis. Tal posição difere-se radicalmente de minha atuação. Como ter certezas, dogmas e paradigmas em uma sociedade em transformação desenfreada? Este entre apresentado, algumas vezes, neste texto a partir do velho barqueiro de Guimarães Rosa é um processo de latência, assim como tal barqueiro que se aproxima das margens, porém nunca se fixando em nenhuma delas. O que proponho, a partir do empirismo e estudos, é que professores se percebam como propositores e não como comunicadores. Que a prática seja de diálogo, não de imposição e que não se enrijeçam arrogantemente, acreditando saber.

1  Discuto sobre a mediação como espaço propício para a criação coletiva do conhecimento no artigo Crítica de arte e mediação: teorizar a partir da experiência coletiva (Revista Ciclos, 1º edição, 2013).

2  Ciente de que o lugar de onde falamos altera significativamente o objeto de nosso discurso, não distingo, em meu trabalho, quando estou artista e quando estou professor. É sabido que o lugar afirma a função, sendo que as distinções de nomenclaturas se dá, muitas vezes, a partir do lugar de onde falo. Se estou em uma galeria ou na linha de processos artísticos de um programa de pós-graduação, sou visto como artista. Caso o meu discurso ou ação parta de uma escola ou ambiente educacional, sou visto como professor. Muitas práticas docentes validam-se enquanto artísticas apenas no momento em que são apresentadas nos espaços definidos pelo circuito artístico. No texto, apresento a distinção entre prática docente e prática artística para que ele seja o mais didático possível.

3  Texto informado no site do artista. Disponível em: http://cargocollective.com/jorgemennabarreto/Cafe-Educativo Acesso em: 10 mar. 2016.

Professar. verbo transitivo: 1. seguir, fazer uso público de. 2. exercer, praticar. 3. ensinar. 4. dedicar. Verbo intransitivo: 5. Ensinar, ser professor. 6. Fazer votos religiosos, tomar o hábito, tomar o véu. Disponível em: www.priberam.pt/DLPO/professar Acesso em: 5 jan. 2016.

5  Idem.

BARREIRO, Gabriel. Educação para arte- Arte para educação. Porto Alegre: Editora Fundação Bienal do Mercosul, 2009.

FLETCHER, Harrell. Algumas ideias sobre arte e educação. In: CAMNITZER, Luis. PÉREZ-, Gabriel. Educação para arte - Arte para educação. Porto Alegre: Editora Fundação Bienal do Mercosul, 2009.

CANCLINI, Nestor García. O mundo inteiro como lugar estranho. São Paulo: EDUSP, 2016.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.

KAPROW, Allan. A educação do Não-artista parte I. Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 216-227, mar. 2003.

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SAVIANI, Demerval. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores associados, 2004.

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Capa  - Leto William, Projeto Nomia, 2015, intervenção em parede com fita vinílica, dimensões variáveis. Foto: arquivo pessoal.