É recorrente o debate em torno da intensidade com que a internet tem ressignificado diversos âmbitos sociais, do trabalho ao lazer, da organização pessoal à interação social. A concepção clássica de indústria cultural, tal como apresentada por Max Horkheimer e Theodor Adorno na Dialética do Esclarecimento (1940), remete, hoje, para um envolvimento intenso com um sistema conectado que parece resultar de uma atualização mais intensa e radical da caracterização da indústria cultural. Mais recentemente, Rodrigo Duarte (2011) empregou o termo “indústria cultural 2.0” ou “indústria cultural global”, em uma atualização de sua “versão clássica”, sugerindo como os cinco operadores encontrados na tematização originária de Adorno e Horkheimer permanecem produtivos para analisar os aspectos atuais da indústria cultural. A partir dessa proposta interpretativa, propomos discutir, no presente artigo, como modelos de subjetividade emergidos na internet também podem ser encontrados de maneira emblemática em trabalhos que integram um corpus criativo chamado de net art. Estas criações mais recentes buscam refletir, direta ou indiretamente, sobre as transformações da subjetividade causadas pela rede. Trata-se de discutir, tendo em vista o exemplo emblemático da net art, em que medida as características da indústria cultural clássica, concebida por Adorno e Horkheimer, ainda guardam uma potencial atualidade. Para isso, dividiremos nossa exposição em dois momentos. Primeiramente, seguindo a proposta interpretativa de Rodrigo Duarte (2010; 2011), apresentamos esquematicamente os cinco operadores da indústria cultural encontrados na proposta clássica de Adorno e Horkheimer (I). A partir dessa breve reconstrução, traremos exemplos de criações de net artistas que refletem sobre questões concernentes ao modus operandi da internet e o seu impacto sobre os indivíduos, de maneiras mais enfáticas ou sutis. Nesse sentido, partiremos concomitantemente de reflexões filosóficas e de exemplos da arte para tentarmos compreender um sensorium comum contemporâneo que parece residir nas entrelinhas ou no pano de fundo de um contexto de conexão que perpassa âmbitos sutis da experiência subjetiva (II). Concluímos com a sugestão de que o exemplo da net art, sem negligenciar as recorrentes críticas à abordagem adorniana, pode ser compreendido, sobretudo, a partir do vínculo entre arte e diagnóstico contemporâneo.
I – Os cinco operadores da indústria cultural clássica
É amplamente discutida a caracterização que Max Horkheimer e Theodor Adorno, ao analisarem as funções econômicas e ideológicas do seu tempo, na Dialética do Esclarecimento, reúnem sob o título de indústria cultural. O próprio uso da expressão já deixa entrever o sentido deste conceito: aquilo que já se encontrava na análise de Marx na mesmo lógica do capitalismo (como reprodução em massa, padronização de consumo, e substituição do valor de uso pelo valor de troca) passa a valer também na esfera da arte – justamente aquele âmbito que, à primeira vista, deveria se excetuar da lógica econômica. A aparente contradição entre a lógica da indústria e a da cultura daria, na visão de Adorno e Horkheimer, lugar à perda da arte do seu estatuto como lugar de resistência, passando a ser regida também como mercadoria.
Mas uma outra característica é central na concepção original dos frankfurtianos. Trata-se da promessa no âmbito da indústria cultural de uma aparente expressão subjetiva ou autêntica, mas que apenas revelaria o cinismo de uma “pseudoindivualidade”. Em outras palavras, a lógica da indústria cultural revelaria a astúcia em não assumir uma recusa explícita do sujeito, mas, pelo contrário, em forjar uma afirmação irônica e fictícia do indivíduo, que nada mais é do que o oferecimento de uma padronização da expressão subjetiva. Ao invés da arte resguardar um último reduto emancipatório, numa promessa salvífica de afirmação do sujeito, vê-se nada mais do que a perpetuação da lógica de padronização e do consumo.
Para compreendermos de maneira panorâmica o sentido original proposto por Adorno e Horkheimer, recorremos, no que se segue, ao que Rodrigo Duarte (2010; 2011) identifica esquematicamente como “cinco operadores” da indústria cultural, a saber, manipulação retroativa, usurpação do esquematismo, domesticação do estilo, despotencialização do trágico e fetichismo da mercadoria cultural. Vejamos mais de perto o significado desses operadores, identificando passagens da Dialética do Esclarecimento que expressam os seus respectivos sentidos.
O primeiro operador, que pode ser denominado de manipulação retroativa, procura dar conta do fato de que os produtos culturais são criados para atender às demandas de lazer das massas. A ideia aqui é a de que, assim como pesquisas de opinião, a indústria cultural passa a diagnosticar demandas, criando produtos culturais que lhes correspondem. Por outro lado, percebe-se um movimento inverso de forjar demandas, análogo ao mercado: não só é oferecido o que o consumidor pretende consumir, como esse desejo seria, num certo sentido, impulsionado pelo próprio mercado. É nesse sentido que o recurso a um modelo padronizado de produto cultural e de clichês, patente na música ou no cinema, é a maneira mais eficaz de atingir um maior número de consumidores a partir de um padrão simples e repetitivo. À semelhança da lógica de mercado de redução de custos e aumento de produtividade e de lucro, produz-se em larga escala modelos idênticos e de fácil consumo, mitigando a necessidade de processos criativos e dispendiosos. Tal interpretação é sugerida na seguinte passagem:
O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. De facto, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. (DdE, p. 100).
Já o segundo operador remete ao que Kant desenvolve na sua Crítica da Razão Pura sob o conceito de esquematismo. Tratava-se de entender como as intuições empíricas referentes à sensibilidade poderiam ser ligadas aos conceitos do entendimento, ou seja, como manter ao mesmo tempo uma distinção e uma conexão entre sensibilidade e entendimento. Kant denominou tal mediação de “esquema transcendental”: uma representação pura (sem nada de empírico), mas que é composta tanto por uma parte intelectual como por outra sensível. Ora, essa atividade pertencia ao próprio sujeito reflexionante, que possuiria a capacidade de formar conceitos a partir dos dados sensíveis. É justamente essa espécie de “mecanismo secreto” que é usurpado pela indústria cultural, de modo que, agora, “o enigma está revelado” – no sentido irônico que Adorno e Horkheimer utilizam ao longo de todo o texto. Nessa lógica, traduz-se aqueles mecanismos pelos quais a televisão e o rádio usurpavam a capacidade do sujeito de interpretar os dados identificados pelos sentidos.
O trabalhador, durante seu tempo livre, deve se orientar pela unidade da produção. A tarefa que o esquematismo kantiano ainda atribuía aos sujeitos, a de, antecipadamente, referir a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomado do sujeito pela indústria. Esta realiza o esquematismo como um primeiro serviço ao cliente. Na alma agia, segundo Kant, um mecanismo secreto que já preparava os dados imediatos de modo que se adaptassem ao sistema da pura razão. Hoje, o enigma está revelado. Mesmo se a planificação do mecanismo por parte daqueles que manipulam os dados da indústria cultural seja imposta em virtude da própria força de uma sociedade que, não obstante toda racionalização, se mantém irracional, essa tendência fatal, passando pelas agências da indústria, transforma-se na intencionalidade astuta da própria indústria. Para o consumidor, não há mais nada a classificar que o esquematismo da produção já não tenha antecipadamente classificado. (DdE, p. 103).
A domesticação do estilo, terceiro operador, tratava dos conteúdos que eram resultado de uma tradução estereotipada. Para os autores, ainda que houvesse uma caracterização de estilos ao longo da história da arte, a predominância do detalhe sempre foi característica da valorização de uma obra da arte. Nesta dialética entre o todo e detalhe, presente já em Hegel, a particularidade buscava uma afirmação diante de um todo uniforme. Com efeito,
o detalhe, ao emancipar-se, tornara-se rebelde, e afirmara-se, desde o Romantismo até o Expressionismo, como expressão autônoma, como revolta contra a organização. [...] A tudo isso deu fim a indústria cultural mediante a totalidade. (DdE, p. 104).
Já o quarto operador, a despotencialização do trágico, consistia na transformação de uma catarse genuína em simples entretenimento. A catarse não seria mais encontrada na tragédia, como em Aristóteles, mas na diversão, cuja ressignificação simplificada e sem atividade subjetiva é oferecida pela indústria cultural. É nesse sentido que os autores escrevem, novamente em tom irônico, que a “indústria cultural desvenda a verdade sobre a catarse”:
a fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como depravação da cultura, mas igualmente como espiritualização forçada da diversão. [...] Neste sentido, a diversão realiza a purificação das paixões que Aristóteles já atribuía à tragédia [...]. Assim como ocorreu no estilo, a indústria cultural desvenda a verdade sobre a catarse. (DdE, p. 118-119).
A radicalização desse sentido de diversão orienta-se por uma pseudoindividualidade – ideia que, como vimos, guia a reflexão dos frankfurtianos. É nesse sentido que “divertir-se é estar de acordo” (DdE, p. 119), ou, ainda, “divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado” (DdE, p. 119).
Por fim, o quinto operador, o fetichismo da mercadoria cultural, refere-se propriamente à substituição de um valor de uso pelo valor de troca. Análogo ao que Marx havia interpretado em relação à lógica capitalista, o produto cultural se apropria desse mesmo padrão, desapropriando-se de algum sentido de usufruto da obra de arte. O fetiche, aqui, que poderia ainda apresentar o resquício de um deleite estético, refere-se, antes de tudo, a um tomar parte na sociedade, como meio de distinção e de status – não muito diferente da aquisição de bens de luxo.
O que se poderia chamar o valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor. O consumidor torna-se a ideologia da indústria da diversão, de cujas instituições não consegue escapar. [...] Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, o seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam. (DdE, p. 131).
Não cabe, aqui, entrar numa apreciação crítica em torno da interpretação de Adorno e Horkheimer. Certamente, não se deve negligenciar as conhecidas críticas aos autores frankfurtianos, notadamente em relação a um certo elitismo ou purismo no tratamento da arte, que conduziria a uma rigidez excessiva na distinção entre arte e produto cultural – o que, de resto, é bastante ambíguo. O que nos interessa particularmente é sobre a atualidade da proposta interpretativa – desprendida justamente de um contexto específico e de possíveis enrijecimentos e purismos teóricos. Com efeito, uma das questões que se tornou controversas em torno da interpretação original dos frankfurtianos é em que medida ela seria datada ou se poderia ainda permanecer relevante para um diagnóstico contemporâneo. Com efeito, os cinco operadores supracitados voltavam-se para uma elucidação da indústria cultural nos anos 1940, em um contexto marcadamente voltado para a influência da televisão e do rádio. Além da possibilidade de avaliação crítica, parece promissor tentar entender se em um âmbito significativamente diverso da proposta clássica – marcado, agora, pela internet e, a partir dela, pelas diversas mídias sociais e novas expressões artísticas, a interpretação original sobre a indústria cultural pode oferecer ainda alguma contribuição teórica.
II – Indústria cultural 2.0 e net art
No já mencionado artigo Indústria cultural 2.0, Rodrigo Duarte dá indicações de como os operadores da versão clássica se transformaram no contexto da internet, sem deixar de seguirem desempenhando as mesmas funções econômicas e ideológicas da abordagem original por Adorno e Horkheimer. É nesse sentido que o primeiro operador que vimos acima, a manipulação retroativa, se manteria no sistema das redes conectadas. Na internet, ainda se atende à demanda de lazer das massas e se impõem determinados padrões de consumo e de comportamento moral e político. Segundo esta interpretação, surge, no entanto, um ponto de renovação da função de manipulação retroativa da indústria cultural: a coerção à emissão, um conceito trazido por Christoph Türcke em Filosofia da sensação (2002). Para Türcke, na internet a pessoa se vê obrigada a emitir dados continuamente, sob a pena de se ver incluída em um estado depressivo.
Postar, emitir e receber dados se torna a atividade geral. A coerção à ocupação se especifica na coerção à emissão (Sendezwang). Esta se torna, no entanto, uma manifestação existencial da vida. Emitir significa ser percebido: ser. Não emitir significa não ser – não somente pressentir o horror vacui por estar ocioso, mas ser tomado por um sentimento: de fato, não há eu de modo algum” (TÜRCKE, 2002, p. 43).
O principal motor da coerção à emissão na internet seria, segundo Rodrigo Duarte, a manutenção de duas características principais da indústria cultural adorniana: a geração de lucro, já que as emissões rendem milhões aos provedores de serviços de comunicação e aos produtores de conteúdos da cultura de massa; e a cooptação ideológica, uma vez que a emissão que vem da coerção já significa uma adesão ao sistema como um todo.
A mudança de posição do indivíduo de mero receptor de mensagens coagido a adotar a posição ideológica característica do capitalismo, na indústria cultural clássica, para também emissor dos conteúdos, na indústria cultural 2.0, é resultado da própria estrutura da internet, que coaduna recepção e emissão em ferramentas multidirecionais, como no caso das redes sociais: “a capacidade de resposta imediata aos estímulos utilizando-se o mesmo veículo de recepção da mensagem, à qual se dá também o nome mágico de ‘interatividade’” (DUARTE, 2011, p. 108-109). No contexto da televisão e do rádio, a interatividade era fundamentalmente diferente, porque partia de telefones, emissores secundários em comparação a um emissor principal, que poderia ser uma estação de rádio ou de televisão. Na internet, por sua vez, o processo de manipulação retroativa aprofundou-se ainda mais a partir do caráter multidirecional dos novos meios digitais. “Na indústria cultural digitalizada [...], a coerção não se limita à recepção, mas se estende obrigatoriamente à emissão” (DUARTE, 2011, p. 110).
Diversos trabalhos de net art abordam a questão da coerção à emissão, sem se referirem ao termo alcunhado por Türcke ou terem a intenção de tratarem diretamente dos operadores da indústria cultural. Na videoinstalação Hello world! Or: how I learned to stop listening and love the noise1 (2008), do artista norte-americano Christopher Baker, por exemplo, cinco mil pessoas falam sobre as próprias vidas ao mesmo tempo a partir de espaços privados como cozinha, sala de estar e quarto, em cinco mil vídeos comprimidos em uma única instalação. Essas pessoas contam o que fizeram durante o dia, o que pretendem fazer, como se sentem, quais são os próprios sonhos, o que pensam sobre assuntos políticos e sociais. É fácil imaginar o que dizem as pessoas na internet, mas, na obra de Baker, é impossível escutar o que cada uma delas diz individualmente. O que se escuta, no enorme painel de vídeos, é um conjunto de narrativas incompreensíveis. O visitante fica imerso em uma cacofonia que metaforiza os excessos de intimidade e informações exteriorizados na rede conectada. O excesso do falar, que surge com uma crescente limitação do ato de escutar, é uma das consequências de um sistema que estimula a produção de conteúdo pessoal intensamente para que haja matéria-prima a ser explorada. Hello world!, bem como vários outros trabalhos de net art que surgiram na crista da onda da web 2.02, situa o sujeito dentro de um contexto capitalista que se apropria da afetividade e da intimidade com a finalidade de obter lucro.
Trata-se do que a socióloga Eva Illouz entende por “capitalismo emocional”: “Na cultura do capitalismo emocional, as emoções se converteram em entidades a serem avaliadas, examinadas, discutidas, negociadas, quantificadas e mercantilizadas” (ILLOUZ, 2007, p. 227). Illouz desenvolve um estudo minucioso sobre a internet para entender como a lógica das redes tem tornado os relacionamentos afetivos mais uniformes, racionalizados, instrumentalizados e fetichizados. O “capitalismo emocional” de Eva Illouz é chamado, por sua vez, de “capitalismo afetivo” pelo crítico de arte Juan Martín Prada. Segundo ele, trata-se de um capitalismo pós-industrial, porque situa o lucro não na escassez dos produtos, mas no excesso de informações.
O sistema da informação é paradoxalmente contrário ao próprio sistema do capitalismo tradicional, no qual o valor se baseava na escassez, enquanto que o valor dos produtos informacionais e de inter-relação humana aumenta com a sua difusão (PRADA, 2012, p. 166).
Também parece permanecer, em tal contexto de conexão e mercantilização dos afetos, outro operador da indústria cultural adorniana, a saber, a usurpação do esquematismo. Sem precisar refletir e interpretar conteúdos, que, na internet, já internalizam procedimentos cognitivos pertencentes ao indivíduo, o sujeito percebe a realidade no âmbito virtual de maneira tão nítida que passa a acreditar que a realidade é, na verdade, o que está na rede. O realismo dos produtos que se encontrariam na internet, caso de conteúdos audiovisuais de alta definição e da tecnologia 3D, seria responsável por fazer com que o indivíduo os visse como objetos do mundo, mas sem estar exposto aos acontecimentos imprevistos dos objetos do mundo capazes de estimular a imaginação e a criatividade do sujeito. É nesse sentido que, “se tomamos em consideração a já mencionada fragilidade psíquico-afetiva de muitos consumidores típicos da indústria cultural, falta pouco para que acreditem que a verdadeira realidade é a construída artificialmente pelos meios” (DUARTE, 2011, p. 112).
A performance Excellences & Performances (2014), da artista argentina Amalia Ulman, trata justamente da transferência das noções de realidade e virtualidade. Ulman criou uma personagem no Instagram e no Facebook que encarna o espírito de uma “it-girl” americana, preocupada com a beleza e com o valor das coisas materiais. O que é interessante notar, no trabalho de Ulman, é que ela brinca com as fronteiras esfumaçadas entre real e virtual, ao interpretar, nas redes sociais, uma pessoa cujos valores, na realidade, a artista diz não possuir. A situação torna-se problemática com o tempo, porque nem os próprios amigos da artista conseguem mais saber com quais valores, de fato, a “Amalia verdadeira” se identifica. A confusão parece resultar do fato de que as redes sociais parecem ter alcançado, para a maior parte das pessoas, um grau de veracidade até superior ao que está fora da internet.
Tudo começou no dia 19 de abril de 2014, quando Ulman lançou a série Excellences & perfections3 no Instagram e resolveu divulgar um estilo de vida consumista e fantasioso. Criou um mundo limpo, translúcido e minimalista, no qual flores organizadas cuidadosamente e lanches da tarde perfeitamente dispostos em pratos de porcelana foram fotografados. Durante os meses em que a série foi alimentada, Amalia inventou e encenou diversas vivências, sendo uma delas uma cirurgia de aumento de seios. Exatamente como uma performance apresentada no Instagram, Amalia Ulman fez com que os seus seguidores acompanhassem todo o processo cirúrgico fictício: desde quando decidiu que iria supostamente realizar o procedimento até o fim dele, quando postou uma fotografia dos próprios seios enfaixados. No dia 10 de julho, ela publicou uma foto diante do espelho, vestida com um avental cirúrgico, horas antes da suposta cirurgia. Disse que estava nervosa e excitada, mas feliz com a decisão de colocar silicone nos seios. No dia seguinte, postou uma foto dos próprios seios enfaixados e disse estar segura e feliz. No dia 12 de julho, colocou uma fotografia dos próprios seios com uma cinta protetora e agradeceu a todos pelo apoio na “jornada”. Em cada uma das publicações, recebeu uma média de 140 curtidas e vários comentários. A maior parte deles denotam reações sinceras às postagens de Amalia Ulman – só alguns demonstram alguma consciência de que tudo aquilo se trata de uma “net performance” e que aquilo mostrado pela artista não correspondia ao que de fato ela estava vivendo.
Não por acaso, amigos próximos da artista se mostraram confusos, sem capacidade de demarcar quem seria a Ulman da rede social e quem seria a Ulman da “vida real”, embora ela dissesse a eles que o projeto se restringia ao ambiente virtual. Como escreve o editor e curador do site Rhizome, Michael Connor (2014), “repetindo uma mentira por três meses, Amalia criou uma verdade que ela própria se tornou incapaz de destruir”. O desconforto gerado pelo perfil ficcionalizado da artista no Instagram e no Facebook, previsto por ela ao criá-lo, está relacionado à crescente fusão do que antes era definido em esferas separadas: virtual e real. Realidade e mundo virtual, que eram completamente distintos quando os computadores ainda não tinham seu uso disseminado nas várias geografias e classes sociais, parecem ser praticamente um só. É que “realidade virtual favorece as sinestesias sensoriais, os deslocamentos de fronteiras entre o real e o virtual, entre o racional e o sensível, mas também entre o individual e o coletivo” (POISSANT, 1997, p. 92).
Para Rodrigo Duarte, não só as tecnologias HD-3D seriam responsáveis por aproximar os conteúdos das mercadorias culturais da internet do nosso aparato cognitivo, mas também a própria estrutura de interatividade da internet teria sido responsável por isso. “A possibilidade de maior agilidade nas respostas do receptor das mensagens, que, como se viu, otimizou a manipulação retroativa, também tornou a estrutura de percepção das mercadorias culturais potencialmente muito mais próxima do nosso aparato cognitivo em geral” (DUARTE, 2011, p. 112). Assim, a usurpação do esquematismo se tornou hoje muito menos metafórica e mais literal do que era na indústria cultural clássica.
Também em relação ao terceiro operador da indústria cultural, a domesticação do estilo, Rodrigo Duarte (2011) entende que ele se mantém no contexto contemporâneo. Nessa interpretação, os conteúdos textuais e audiovisuais que integram a internet continuariam a ter o mesmo idioma estandardizado e kitsch de antes, com a diferença de que eles hoje seriam emitidos pelos sujeitos, em um sintoma de colonização dos intelectos das massas pela indústria cultural. Contraditoriamente, os sujeitos se comunicam de maneira padronizada enquanto buscam mostrar uma singularidade, especialidade e unicidade de si mesmos para um público invisível. “A precariedade dos conteúdos (textuais e/ou audiovisuais) emitidos pela maioria das pessoas [...] deveria ser vista como uma consequência direta da interrompida colonização dos intelectos das massas pela indústria cultural” (DUARTE, 2011, p. 113). Todas as obras de net art mencionadas anteriormente exibem a precariedade dos conteúdos que povoam a internet, em uma espécie de aliança entre a coerção à emissão e a domesticação do estilo. Com o intento de se aproximar ainda mais dos indivíduos, a indústria cultural digital se apropria da linguagem das pessoas comuns com seus smartphones para possibilitar formas de comunicação cujos conteúdos traduzem a precariedade das ferramentas amadoras que hoje estão nas mãos das massas.
Já a condição de despotencialização do trágico, o quarto operador da indústria cultural, parece permanecer no contexto atual, porém sob a forma de um culto à espetacularização do eu. “O que se observa é que a matriz digital de produção e difusão de conteúdos audiovisuais permite uma flexibilidade inusitada na produção de espetacularização” (DUARTE, 2011, p. 114). A função social da indústria cultural de oferecer relaxamento às massas submetidas à exploração de sua força de trabalho durante todo o dia ocorre, na indústria cultural global, através da espetacularização do eu. É através dela, por conseguinte, que a experiência de interação social se torna possível – uma vez que o sistema como um todo já funciona dessa forma – e que a higiene mental das massas pode acontecer, longe dos sentimentos de temor e de compaixão que caracterizavam a catarse da tragédia grega.
Intimidades compartilhadas como se fossem públicas se tornaram comuns após o advento das câmeras digitais leves que, por sua vez, foram responsáveis pela disseminação dos autorretratos digitais. Mas, só com o surgimento dos smartphones em 2010, que uniam internet com câmera fotográfica, os autorretratos passaram a ser hábito corrente, ato afetivo, chamados então de “selfies”. No entanto, os selfies só passaram a ser chamados globalmente como tal a partir de 2013, levando o dicionário inglês Oxford a eleger “selfie” como a palavra internacional daquele ano. Naturalizado, no entanto, por todos os que usam redes sociais através de smartphones, o selfie parece ter se tornado uma das materializações mais evidentes de que a despotencialização do trágico, na internet, ocorre através da espetacularização do eu. Enquanto mensagens e postagens confessionais sinalizam uma externalização de sentimentos e afetos, corpos compartilhados (a serem avaliados, curtidos e comentados) evidenciam ainda mais como a matéria humana circula hoje no mundo de forma pública para o entretenimento e a higiene mental dos indivíduos.
O vídeo Flashings in the mirror4, do artista holandês Jasper Elings, reúne uma série de selfies tirados diante do espelho com flashes que escondem os rostos dos autores dessas fotografias. Todas as imagens foram encontradas na rede e incorporadas ao trabalho sem a licença de seus autores. O trabalho problematiza a que ponto o indivíduo conectado chegou ao querer provocar incessantemente reações no outro: vale postar fotos dos seios, dos órgãos genitais, de uma cena pós-sexo, com amigos e parentes, com animais e bichos de pelúcia. O egoboo,5 assim, mostra-se como um dos principais catalisadores desse processo. Os flashes, no vídeo, formam o desenho de um círculo luminoso de desejo onde, no centro, está o ser humano, em um processo egoico que parece nutrir o próprio funcionamento da internet. A despotencialização do trágico também se traduz, na internet, no surgimento de uma pseudoindividualidade na qual os sujeitos deixam de ser indivíduos plenos e únicos, “tementes e compassivos”, para se tornarem padronizados em perfis de redes sociais.
Por último, o fetichismo das mercadorias culturais, o quinto operador, aparece na internet sob a forma de gadgets que imantam significados sociais. São eles que objetificam simbolicamente todas as relações e ressignificações de subjetividade já mencionadas acima. No contexto da indústria cultural 2.0, o conteúdo e a técnica são amalgamados, a ponto de que a mensagem não passa pelo meio, mas é o próprio meio. Diferentemente do que acontece na televisão ou na rádio, em que programas de TV ou músicas são apresentados, na internet não se apresenta conteúdo, mas se produz conteúdo, em uma lógica de interface que reúne conteúdo e tecnologia simultaneamente. “A indústria cultural de hoje pode ser definida também como o império dos gadgets, que, em última análise, são o bastião da materialidade em um cenário tendencialmente dominado pela presumida imaterialidade dos conteúdos” (DUARTE, 2011, p. 116). As obras de arte mencionadas, por si sós, revelam como os gadgets ganharam protagonismo em um pretenso contexto de exposição de intimidades que apenas escondem o verdadeiro cenário de compra e venda da vida íntima.
Como foi possível entrever, o exemplo da net art apenas pretende mostrar em que medida a própria arte revela uma possível atualidade dos operadores da indústria cultural clássica. Fica patente que, na nossa proposta de referência à net art, não se trata de entrar no mérito da distinção entre arte e produto cultural, senão de propor em que medida ela é um lócus de expressão do vínculo entre subjetividade e contexto social. Se, também esse exemplo, como outros, pode colocar em questão o significado de uma pretensa “genuinidade” da arte, cabe a uma discussão posterior. Pelo momento, parece promissor que a arte exprima, antes de tudo, o seu tempo. Nisso, não se trata da distinção entre boa ou má arte, entre arte e produto cultural, mas de interpretar como a arte mostra-se como lugar privilegiado para um diagnóstico de época. A net art, independente de enquadrar-se ou não no crivo crítico de submissão à indústria cultural, deixa revelar, sobretudo, formas de vida como sintomas de seu tempo. Esse parece ser um dos sentidos mais promissores que a interpretação clássica de Adorno e Horkheimer, ainda hoje, continua a oferecer.