Ao se considerar o fenômeno da criação literária a partir de uma criação literária, no caso do metapoema “O poema”, de Ivan Junqueira, diferente dos casos de depoimentos de escritores sobre o assunto, quem se manifesta não é o poeta, ser histórico, mas o eu lírico:1 é a arte que explica a si mesma. O eu lírico, por maior relação direta que tenha com o eu biográfico, dele se distancia, o que já foi contemplado no romantismo, mas levado à desconstrução radical pelo modernismo. Tal fragmentação do sujeito reflete a autonomia da arte e o distanciamento do eu lírico do eu empírico, o qual sofre uma radicalização com Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, influenciando as posteriores gerações, como em “Tradição e talento individual”, ensaio de T. S. Elliot (1989, p. 48): “A emoção da arte é impessoal. E o poeta não pode alcançar essa impessoalidade sem entregar-se ele próprio inteiramente à obra que será concebida”.
Ao estudar o processo criativo por meio do próprio resultado do poeta em seu ofício, analisa-se a arte a partir da própria arte, a qual não pode ser lida se não num sentido artístico, simbólico. Desse modo, estudar a metapoesia em "O poema", de Ivan Junqueira, problematiza a relação do eu lírico e seu objeto, o próprio poema e sua criação, além de sugerir, a partir desse eixo, outras questões próprias do tema. O metapoema em questão abre Essa música, último livro de poemas de Ivan Junqueira – escrito entre 2009 e 2013, publicado em 2014, logo após o falecimento do acadêmico –, em que o tema da metapoesia é recorrente, como no caso do poema intitulado "Outra vez, o poema", o qual retoma a mesma temática de "O poema" e, em termos de estrutura, curiosamente também apresenta todos os versos com as rimas finais em consonância: no poema de abertura, a vogal "e" e, no que o retoma, a vogal "o". Segue sua transcrição.
O POEMA
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo,
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
A ele é que cabe todo o engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
Nos dois primeiros versos, apresenta-se o tópico a ser desenvolvido em suas cinco estrofes: “Não sou eu que escrevo o meu poema: / ele é que se escreve e que se pensa”. “O poema” desenvolve um estudo sobre a autonomia da arte e o modo como se relaciona com o eu lírico, sem o qual não poderia se materializar, no entanto trava com ele uma relação até mesmo autoritária. A relação paradoxal entre o objeto e o eu lírico é reforçada pelo pronome possessivo “meu”, no primeiro verso, que se opõe ao caráter independente do poema, que escreve a si mesmo, demonstrando autonomia no nível da materialidade, e que pensa a si mesmo, sugerindo que tal independência se prolonga também no nível não material, no arranjo de ideias de sua composição, assim como em sua interpretação.
Na autonomia do poema perante o poeta, “o criador é desprovido de poder sobre sua obra, é por ela desapossado, tal como é, nela, desapossado de si; que não detém o sentido da obra” (BLANCHOT, 2011, p. 247). É um sintoma moderno que bebe na fonte da estética simbolista, quando o eu lírico se distancia do sujeito biográfico, num processo, como aponta Friedrich (1978), de “despersonalização”, o qual se estabeleceu de modo um tanto inaugural em Baudelaire, desenvolvendo-se significativamente com seus sucessores, como o caso da radical concepção de Rimbaud: “eu assisto ao desabrochar do meu pensamento: eu o contemplo, eu o escuto”, motivo pelo qual “é falso dizer: Eu penso, dever-se-ia dizer: Pensam-me”. A cisão entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado problematiza a associação do eu lírico ao sujeito biográfico, por mais intricada que seja a relação de ambos, como desenvolve Mallarmé em carta a Cazalis, em 1867: “sou agora impessoal, não sou o Stéphane que conhecestes, mas sim uma capacidade do universo espiritual, de ver-se e de desenvolver-se a si mesmo e, precisamente, através do que foi meu eu” (apud, FRIEDRICH, 1978, p. 126).
O eu lírico é colocado como um ser paralelo ao poema, sentido que pode ser associado aos diálogos platônicos ao se considerar o poeta um ser “possuído” por uma força divina. Para Platão, os poetas não criam por sabedoria, “mas por um dom da natureza ou por inspiração divina, como os adivinhos que sabem de oráculos também falam de muitas e belas coisas, mas nada sabem do que dizem” (Apologia de Sócrates, 22 C). Ao associar o poeta aos adivinhos, desenvolve-se um questionamento sobre a identidade do eu lírico, o qual se manifesta no ato da criação, quando o eu biográfico se altera num processo semelhante – num sentido simbólico – a uma possessão. Tal noção dialoga com a concepção de Rimbaud, para quem “o poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos”, torna-se outro, processo em que se distancia do ser que assina a composição e transcende, por sua vez, a sabedoria própria de seu autor.
No poema meticuloso e ponderado de Ivan Junqueira, os primeiros dois versos orientam para a problemática do eu lírico e sua relação com o objeto. A poesia é esse outro que, por sua autonomia, se apresenta em paralelo ao sujeito. A subjetividade é questionada, abrindo-se uma relação entre sujeito e objeto, eu biográfico e eu lírico, a qual bebe na fonte baudelairiana. Mas qual será realmente o nível de autonomia do poema em relação ao poeta? “Essa impessoalização não é um puro e simples desaparecimento do sujeito; ela é também para ele a ocasião de descobrir seu pensamento mais íntimo” (COLLOT, 2013, p. 231). Completando a primeira estrofe, segue uma imagem que ilustra o poema que se escreve e que se pensa, a qual simbolicamente deixa transparecer aspectos reveladores dos elementos que articulam o processo de criação: “como um polvo a distender-se, lento, / no fundo das águas, entre anêmonas / que nos abismos do mar despencam”.
Para Octavio Paz, “o sentido da imagem é a própria imagem”, algo indizível e inexplicável senão por si mesma (1976, p. 49). No entanto, o estudo da composição e interação de seus elementos possibilita ponderar, também de modo aberto, a composição da imagem e sua natural oposição de sentidos. O polvo (poema) se move no fundo do mar, nas profundezas psíquicas, símbolo também da criação, do sal da vida. O movimento no fundo do mar é lento – ao contrário de suas camadas mais superficiais –, em abismos nos quais a luz solar não chega e apenas criaturas exóticas habitam. O polvo, animal disforme dotado de múltiplos braços, vive no fundo do mar, com defesas curiosas, como camuflagem, glândulas de tinta e autonomia de seus membros (pode deles se desfazer quando pressente perigo), propriedades sugestivas quando associadas à construção do poema e à sua relação com a empiria do autor biográfico.
As anêmonas-do-mar são uma espécie de animais muito parecida com flores, dotada de cores vivas e numerosos tentáculos, porém fixa no fundo do oceano, problematizando a composição da imagem quando relaciona o verbo “despencar”, do último verso da primeira estrofe, às anêmonas (ou aos abismos, que seja, obscuridade que pode ser ampliada se as anêmonas forem consideradas tipos de flores, uma espécie terrestre de fato existente). Os tentáculos do polvo – animal geralmente associado aos espíritos infernais (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009) – se opõem aos tentáculos radiantes das anêmonas-do-mar, sugerindo pontos de conexão de uma complexa rede com polos superior e inferior, envolvidos na ideia do movimento de queda e de imersão próprio do termo “despencam”. Nessa rede, seus polos podem ser associados à atividade psíquica do poeta em ofício, o que, num processo de imersão em si mesmo, relaciona-se com o outro quando se faz outro, quando é em si mesmo o poema.
Na segunda estrofe, é compreendida a relação do poema com a bagagem empírica do escritor: o poema – ou a poesia, substância abstrata – escreve a si mesmo com a “pena da memória, do amor, do tormento” do eu biográfico, “de tudo o que aos poucos se relembra: / um rosto, uma paisagem, a intensa / pulsação da luz manhã adentro”, versos em que o eu lírico compartilha com o sujeito empírico aquilo que Käte Hamburger (1986, p. 198) chamava de “campo de vivência”. Na estrofe, os dois últimos versos se destacam: culmina neles a síntese dos materiais de que se serve o poema, os quais são antecedidos pelos dois-pontos. Os três itens se relacionam como se fossem elementos em paralelo, ao mesmo tempo que sugerem o movimento de construção do poema a partir do mundo objetivo, etapas que levam a uma desconstrução do objeto na subjetividade do eu lírico, central no estudo do gênero lírico.
Em uma perspectiva interpretativa a nível simbólico, uma possibilidade de leitura é considerar que “um rosto” tenha a ideia de identidade, unidade, algo mais objetivo (não que o rosto não possa ser lido pela heterogeneidade que compõe sua unidade – é apenas uma perspectiva). Já “uma paisagem” requer uma abertura do foco, a possibilidade de conceber elementos diversos em composição, espaço em que a identidade é construída a partir do conjunto em suas relações, algo mais abstrato. Por fim, “a intensa / pulsação da luz manhã adentro” despersonaliza a realidade objetiva, sugere uma sensação, a luz (que é um paradoxo em si mesmo: é matéria e onda ao mesmo tempo) pulsa em intensidade no começo do dia, uma “manhã adentro” que pode ser a imagem sempre em nascimento, nunca estagnada, uma potência que não morre, pois não pode ser fixada ou possuída.
Nos primeiros versos da terceira estrofe, há uma chave para a interpretação da linguagem poética e a expressão do imaginário: “Ele se escreve vindo do centro / de si mesmo, sempre se contendo”. O poema tem sua autonomia e autossuficiência, exceto pelo fato de ter de se conter, delimitar sua manifestação abstrata em meio ao aparato presente na empiria do escritor. Entretanto, a linguagem do poema é uma linguagem outra: nega a qualidade prática e utilitária da linguagem ordinária, a qual tem como fim comunicar algo, com o objetivo de se voltar a si mesma – a qualidade autotélica da função poética proposta por Jakobson em Linguística e comunicação (1971) –, conferindo um potencial simbólico próprio da poesia.
O terceiro verso da terceira estrofe desenvolve a ideia de o poema se conter, colocada no verso anterior: “É medido, estrito, minudente”, uma necessidade do poema para sua precisão, qualidades que encontramos nos trabalhos de Ivan Junqueira, tanto na criação como na tradução poética, a qual não deixa de ser um tipo de criação. O poeta pode ser um intérprete dos deuses ou o vidente de Rimbaud, no entanto é inegável que o processo de materialização do poema é ponderado em seus pormenores, mesmo que em diferentes níveis de intensidade e de consciência, pois existe a necessidade de tal linguagem se organizar dentro de uma lógica coerente em sua construção, por mais que seja numa associação de sentidos obscura, própria da linguagem dos sonhos.
A lógica da estrutura composicional do poema tem sua razão própria, no entanto é uma linguagem diferente, mais próxima da linguagem musical pelo fato de expressar mais do que comunicar algo e de valorizar sobre o processo arbitrário dos signos suas potências simbólicas: “música sem clave ou instrumentos / que se escuta entre o som e o silêncio”. Observa-se que os três últimos versos da terceira estrofe apresentam, pela primeira e única vez, a caracterização do próprio poema em si mesmo, ao invés de apresentar características do processo de sua escritura em relação ao eu lírico. Se a associação da linguagem da poesia com a linguagem musical já confere uma lógica obscura para a interpretação poética, a imagem elaborada extrapola os limites da compreensão ordinária, eleva o poema a uma esfera transcendental, até mesmo mística.
É importante observar que a imagem do poema proposta pelo eu lírico é uma construção simbólica composta de polaridades que se contrapõe uma à outra, o yin e o yang, em que o significado transcende a linguagem, repousa no movimento incessante que o produz constantemente, remetendo a algo sempre além do que ordinariamente pode representar, remetendo ao absoluto dos místicos, ao ideal de Baudelaire, ao desconhecido ou ao outro de Rimbaud, ao nada de Mallarmé. “A nossa noção do simbólico radicaliza-se apenas em um universo já então laico, no qual o símbolo não deve mais revelar e esconder o absoluto das religiões, mas o absoluto da poesia” (ECO, 2003, p. 142). A linguagem religiosa usa de construções simbólicas constantemente, uma vez que o divino, ou o absoluto, tem qualidades inefáveis por natureza, seja no cristianismo, “porque, vendo, não enxergam; e escutando, não ouvem” (Matheus, 13:13), ou na filosofia védica, de um modo mais elaborado, como no Kena Upanishad (1999, p. 29), “o olho não o vê, nem a língua o exprime, nem a mente o alcança. Não o conhecemos nem podemos ensiná-lo. Ele é diferente do conhecido, e diferente do desconhecido”. A música que se ouve entre o som e o silêncio não seria a “linguagem das flores e das coisas sem voz” do poema “Elevação”, de Baudelaire (1985, p. 113)?
A poesia lírica depende – segundo a fenomenologia de Staiger – do Stimmung, a “disposição anímica” em que o ser vive a experiência artística numa fusão entre o sujeito e o objeto em expressão (1997, p. 59), uma identificação em que o sujeito biográfico se transforma com o ambiente, ocorrendo uma fusão que forma um terceiro. Em outra perspectiva, o gênero lírico, segundo a abordagem de Käte Hamburger, focada no enunciado e no discurso, trata-se de uma enunciação que tem seu pendor ao polo subjetivo em relação ao polo objetivo, é a transformação do polo objetivo pelo polo subjetivo, por vezes numa obscuridade semântica a qual é sustentada apenas por associações de sentido (HAMBURGER, 1986, p. 179), como o caso da imagem do polvo entre anêmonas no começo do poema. É possível cruzar as duas abordagens distintas, dimensões que não se contrapõem: o sujeito do enunciado não se trata do sujeito biográfico propriamente dito, mas do eu lírico, o qual se inscreve no poema numa espécie de transe, num sentido mais literal, união entre o exterior e o interior do poeta; é o Stimmung, a própria motivação do poema e que também está presente na leitura de terceiros, um estado lírico, sempre além da materialidade do poema e da subjetividade do poeta.
Nesse paradoxo, pode ser lido o primeiro período da quarta estrofe: “As palavras com que em vão o invento / não são mais que ociosos ornamentos, / e nenhuma gala lhe acrescentam”. O significado do poema transcende a própria linguagem ordinária, situa-se num plano em que a linguagem vive em contínuo movimento, nos “traços flutuantes da significação”, “vazios semânticos, que podem ser preenchidos por palavras indiferentes no plano semântico” (TINIANOV, 1982, p. 19), é “produzir o vazio para que o ser aflore” (PAZ, 1976, p. 42), espaço aberto que possibilita ao leitor acessar seu mais íntimo – o self junguiano – por meio dos sutis mecanismos da linguagem poética e da sua composição simbólica, sempre polissêmica e altamente subjetiva.
O último enunciado do poema, um período de sete versos, inicia questionando o conceito de belo na arte e a vontade imperativa do poema sobre sua própria elaboração e expressividade: “Seja belo ou, ao invés, horrendo, / a ele é que cabe todo o engenho”. O poema leva o poeta a escrever não o que ele simplesmente quer, mas o que o próprio poema exige em seu dinamismo para se transformar numa construção linguística, de modo que tem poder sobre a qualidade de seu discurso, ainda mais quando o conceito de belo já foi transfigurado no percurso da arte ao longo da história. Mas, se ao poema cabe todo o engenho, o poema o faz a partir do “campo de vivência” que o eu lírico compartilha com o eu biográfico, o que possibilita se objetivar em linguagem, independentemente se o fato tem como base direta a imaginação.
A última estrofe aprofunda a problemática relação do poema com o eu lírico no processo de escritura: “não a mim, que apenas o contemplo / como um sonho que se sustenta / sobre o nada, quando o mito e a lenda / eram as vísceras de que o poema / se servia para ir-se escrevendo”. Ao sujeito resta um estado contemplativo em relação à atividade que o poema exerce, assim como o homem que, ao buscar silenciar sua mente em estado meditativo, bem como quem sonha, assiste a erupções do seu mais íntimo, que brotam na superfície da consciência numa linguagem simbólica. Nesse caso, o “nada” sobre o qual o sonho se sustenta pode ser associado ao absoluto, uma dimensão sagrada com outra noção de espaço e de tempo, “quando o mito e a lenda” – alicerces das tradições primitivas e elo entre o ser individual e o sagrado – eram as vísceras da arte, potencialidade evocatória de uma realidade extraordinária.
Buscando fazer uma leitura ampla do processo de criação poética, segundo “O poema” de Ivan Junqueira, é possível expandir as considerações de Käte Hamburger sobre a relação sujeito-objeto, englobando conceitos da fenomenologia, especialmente os de Emil Staiger. Vale ressaltar que no poema se encontra a voz do eu lírico, o qual, por mais íntima relação que tenha com o ser biográfico, dele se distancia. Propõe-se construir uma espécie de esquema do processo de criação poética a partir da leitura do poema em pauta, esquema que pode ser desenvolvido e aplicado a outros poemas a fim de averiguar sua precisão.
Primeiramente, concebe-se a existência de uma relação entre sujeito biográfico e realidade objetiva, uma relação dialética entre os dois polos; nessa relação, por exemplo, está fundada a realidade empírica. Em determinados casos, nesse movimento, ocorre a fusão de realidade subjetiva e objetiva, de modo a criar uma experiência lírica, algo que possibilita uma ponte ao absoluto, uma espécie de Stimmung que leva a uma consequente fusão do sujeito e do objeto, o eu no outro, o que pode ser chamado de um estado de poesia. Essa experiência lírica, que se pode denominar poesia, é o objeto dela mesma, instância das sensações, da abertura semântica, da música, no entanto ela ainda não é poema: só ganhará sua materialidade quando o eu lírico for tomado – “possuído”, em termos platônicos – por essa poesia, a qual escreverá a si mesma através da persona do eu lírico.
Pode-se reconhecer que a poesia já existe antes do poema. Ela que escreve a si mesma e que se transforma em poema: a poesia surge na relação do eu biográfico com o mundo, é uma experiência lírica em que surge um objeto que tem sua significação mais potente numa dimensão simbólica, a linguagem do transcendente, do que numa relação real. Essa linguagem simbólica, de impossível objetividade, possui o próprio sujeito biográfico e, assim, o transforma em outro, o eu lírico, o qual servirá como médium no processo árduo e custoso de transposição dessa imaterialidade em discurso. Nesse sentido, cabe a concepção de Tinianov de que a poeticidade consta nos traços flutuantes do poema, não em suas significações concretas. Essa poesia, o próprio objeto do poema, está além do poema: está na autonomia do poema, é a poesia que vive e pulsa nas leituras diversas do que é possível denominar leitores líricos, pois deixam suas identidades para assumirem a persona de um eu lírico através da experiência poética, por sua vez no ato da leitura.
O sujeito que profere a linguagem, ou pensa a linguagem, distancia-se do absoluto, do nada. Iogues em meditação não pensam, esvaziam a mente, buscando assim a união que almejam consigo mesmos, com outras pessoas, com a natureza, com o cosmos. Citando Schiller, “se a alma fala, ah! então, já não é a alma que fala”, Staiger (1997, p. 71) atenta para “a contradição existente entre o lírico e toda a essência da linguagem”, de modo que é possível dizer que o “poema transcende a linguagem” (PAZ, 1976, p. 48), ou que o “dizer poético diz o indizível” (p. 49). Quando se habita o nada, o silêncio, a linguagem surge como queda, como o despertar de um sonho. A poesia é uma experiência que pode ser sentida pelo sujeito, motivada por certa fusão entre ele e sua realidade objetiva, no entanto é vivida numa consonância que ainda não foi desdobrada em palavras. Quando o ser fala, deixa de viver a experiência para então dela falar, ocorre seu desdobramento em eu lírico, ser que participa da escritura do poema e que se inscreve como ser vivo nos versos. O poeta não sabe todos os sentidos e sugestões que suas obras encerram, pois elas se escrevem através desse eu lírico, o qual, mesmo depois da morte do poeta, seguirá seu ofício enquanto houver leitor para despertá-lo, quando então também despertará a poesia adormecida no poema.
Levando em consideração as observações colocadas, o sujeito lírico ganha um estatuto distinto: situa-se como o outro ao qual o poeta se desdobra ao transfigurar em linguagem sua experiência poética, a poesia em poema: “O poema não é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a poesia e o homem” (PAZ, 2014, p. 22). Consequentemente, o leitor também se tornará outro quando, no ato de leitura, transformar os dados do poema em poesia, mesmo comungando com a bagagem empírica de quem deixou de ser, pois “o poema é apenas isto: possibilidade, algo que só se anima em contato com um leitor ou um ouvinte” (PAZ, 2014, p. 33).
A poesia é o objeto do poema, o qual é escrito pela própria poesia que o compõe entre as limitações da linguagem e a articulação da mesma pelo eu lírico. A poesia é uma experiência lírica anterior à construção do poema, a qual foi vivida por um sujeito numa relação com o mundo. Na fusão de ambos, cria-se um terceiro objeto, um objeto simbólico, o sentido que paira por trás das correlações lexicais do poema, num sentido mais profundo, mais abstrato. Esse outro toma o eu lírico – assim como impulsos íntimos, por vezes, tomam as rédeas de nosso consciente –, distinguindo-o do sujeito biográfico. Uma vez que o poeta vive a experiência e se despersonaliza, o eu lírico traduz a mesma num processo normalmente árduo de arranjo de linguagens, as quais entre si se organizam de tal modo que revelam mais do que o próprio poeta pode prever, e cria um ser autônomo, que dialoga em diferentes cores e timbres com cada leitor.