“Não restam dúvidas: arriscamos muito mais quando partimos da ignorância. O não saber nos conduz a uma investigação, afinal, não queremos viver em zonas de sombras”. (Elida Tessler)
Listras de madeira, abauladas devido ao enquadramento de uma lente grande angular, se movem muito lentamente para cima e retornam com o som de uma expiração. Seguindo o mesmo ritmo, as listras iniciam um giro e retornam, repetindo o movimento, que vai aumentando gradualmente em distância, amplitude e velocidade, do ponto inicial até completar um grande círculo e iniciar o movimento no sentido contrário. Nesse sentido oposto, vai acelerando mais rapidamente até se repetirem alguns círculos desorganizados. Depois, vai desacelerando até parar numa respiração pesada. Por alguns minutos, o ritmo e as listras abauladas poderiam sugerir o movimento de um barco sobre a água.
Enquadro a mesa, prendo a câmera sobre o quadril com um elástico grosso e começo a lembrar de uma parte da lição de Consciência pelo Movimento,1 chamada Relógio Pélvico. Do ponto de vista do teto, que está “olhando” de frente para mim, o “12” do relógio imaginário estaria próximo do umbigo, e o “6”, em oposição, no baixo ventre; o “3” e o “9” estariam nas extremidades laterais, perto das cristas ilíacas. Os movimentos são lentos, e a cada três ou quatro inícios de giro faço uma pausa para descansar, pois é importante evitar o esforço. A partir de certo ponto, mesmo tentando ir com calma, os movimentos circulares se aceleram desorganizados. Nesse momento, já estou cansada e quero acabar logo a tarefa de fazer o vídeo. No final, a lição se perdeu, deixando um registro de imagem. Aliviada, respiro profundamente como no início.
Este texto começou a ser escrito apenas alguns dias depois da filmagem do vídeo descrito acima. Esta é uma escrita sobre algo que não existe plenamente. É uma suposição sobre um movimento ao mesmo tempo imaturo e adiado. Como escrever sobre o que ainda não sei o que é? Como processar o inacabado, o incompleto? É necessário algum distanciamento temporal ou físico do objeto?
Em um ponto inicial, não se sabe bem por onde olhar o trabalho, pois quem escreve ainda está muito próximo, talvez dentro dele ou vice-versa. Então, é preciso fazer a partir do que não se sabe, do que é preciso compreender ou sentir, e isso requer uma aproximação. Como o desejo da escrita, o que mais me move é o desejo por fazer o que não sei ainda. Fazer vídeos é apenas um dos modos de trabalho que não domino. Colocar-me em risco é um hábito um tanto perigoso, mas conhecer o novo, me arriscar em propostas, ainda assim, é um prazer.
Nesse contexto, outras questões foram muito importantes para pensar no processo de trabalho prático e teórico que se inicia: de onde vem o que tenho feito? O que veio antes? Vem do que não sei fazer, do que não entendo bem, mas que desejo muito. Vem de outro movimento que não sei qual é, mas que talvez descubra. Por que continuar se não faço bem, se não tenho desenvoltura? Por que continuar fazendo o que faço pior? Por que não paro? Será vaidade ou necessidade?
Neste momento, já cansada, faço uma primeira pausa na escrita e encontro uma citação de William James, feita por Judith Nogueira, em Do movimento ao Verbo, que conversa com os questionamentos anteriores:
A principal diferença entre o homem e os brutos está no excesso exuberante de sua propensão subjetiva. Sua superioridade sobre eles repousa simples e unicamente no número fantástico e desnecessário caráter de seus desejos físicos, morais, estéticos e intelectuais. Se toda a sua vida não tivesse sido uma busca de supérfluos, ele não se teria estabelecido de maneira tão inexpungível no necessário. E da consciência disso deveria extrair a lição de que deve confiar nos seus desejos, que mesmo quando a sua satisfação parece remota, o mal-estar que ocasionam ainda é melhor guia da sua vida, e o levará a questões totalmente além de sua atual capacidade de ver. Podem-se as suas extravagâncias, moderem-se o homem, e ele estará desfeito. (JAMES, apud NOGUEIRA, 2008, p.9).
Esse trecho da leitura me tranquiliza, e tento afastar aquela angústia que possivelmente acomete outros artistas, e não só a mim, de trabalhar em algo em que não se vê uma conexão objetiva com a vida prática, que não apresenta resultados ou ganhos facilmente perceptíveis em primeira mão. Algo que, para ser experimentado, requer uma predisposição do outro para se aproximar.
Com um clique para seguir a escrita, lembro-me da primeira sensação que tive ao assistir o vídeo. Tateio, supondo que essa experimentação seja apenas a primeira parte de algo que se inicia: um modo de criar por meio de partituras de movimentos ou ações simples que se repetem e vão encontrar ritmos e significações que se definem no decorrer do próprio trabalho. Esse modo de criar, no momento, está como um relógio descompassado, que perdeu seu ritmo marcado e ganha velocidade. Como uma imagem para indicar uma direção, em determinado momento, o ponteiro do relógio – ele tem apenas um – se desgoverna, fazendo círculos completos, quase se soltando da base. O movimento se descola da proposição inicial, que seria um trajeto inicialmente lento, ritmado, entre pausas e crescentes suaves.
Não é uma imagem, mas é uma imagem, pois se tornou uma depois de ser desejado como investigação de movimento. No entanto, o alinhamento da madeira e suas bordas, um centro para alinhar com a câmera e marcar o centro do relógio imaginário são cuidados anteriores à filmagem e que não devem ser esquecidos. O vídeo em si, enquanto processo experimental, ainda é um embrião, o início de algo que não se sabe o que vai se tornar ou o que vai ser. Foi elaborado com a intenção de experimentar através da imagem de movimentos e de sensações, sem saber o que resultaria, no entanto, depois que assisti a filmagem, vi algo que ainda não decifrei, mas que me sugere algo em potencial. Como disse a Ofélia de Shakespeare em Hamlet (Cena V, ato IV): “Senhor, nós sabemos o que somos, mas não o que seremos”.
Enquanto potência, podemos dizer que esse algo indefinido está entre duas extremidades: a materialidade do visível de um lado, na parte captada pela filmagem, e, do outro, uma parte do corpo que é foco desencadeador do movimento. O Relógio Pélvico, assim como as outras lições de Consciência pelo Movimento, parte da visualização interna da estrutura anatômica através do movimento. O que é visto na filmagem está além do movimento, talvez uma sensação, pois não se vê uma pelve aprendendo um movimento novo, mas um jogo de madeira se movendo dentro de um enquadramento. Na tentativa de extrapolar os objetos de arte na sua condição de imagem, pretende-se, talvez, reativar o que foi abandonado dos outros sentidos na conquista ancestral da verticalidade.
Por trás da concepção das imagens, está a construção do sujeito artista, através da compreensão de si enquanto complexo movente. Neste processo inicial de escrita sobre a minha poética, eu me revejo e releio autores que podem contribuir para a construção de um pensamento próprio legível e compreensível para mim e além de mim, como Judith Nogueira (2008), que comenta que a comunicação também é um fenômeno interno, entre informações orgânicas, neurais e memoriais. A inteligência dessa comunicação é um aspecto considerado também por Feldenkrais, que defende, para o indivíduo, o direito de se ouvir, de se falar, de se autoconectar.
A autoconexão pode se apresentar numa visão pela falta, na clareza pelo que não se tem ou pelo não tido. A falta de algo toma atenção e proporções maiores na busca pelo que alavanca o que não pode, supostamente, ser sozinho, pois há forças que o estruturam e que estão ocultas, pois não são vistas. O abafamento ou apagamento dos sentidos supõe que há outros iluminados. Fechar para abrir, esconder para ver, faltar para ter. A falta pode ser motivo para o encontro. O desejo, inicialmente, é a sensação da ausência; o querer é algo pelo que não se tem, ao menos, naquele momento. Então, o que resta é fazer com o que se tem e aproveitar a oportunidade de experimentar outros movimentos em uma nova condição: sozinha. Uma possibilidade há muito necessitada, desejada e adiada. Fazer por si, fazer sozinha. Qual o sentido disso? Uma prática de movimento solitária foi o que me aconselharam, muitas vezes, os profissionais da dança para chegar ao início de uma movimentação poética própria. Nessa dança, o vídeo sobre o Relógio Pélvico é mais um passo.
No entanto, enquanto processo de pesquisa, se não foi definida uma metodologia do isolamento, existe um ponto frágil nesse processo. Um ponto que não está ali, uma falta, uma falha. Se esse ponto não está, pode ele iluminar o que está à sua volta? Ao contrário, esse todo iluminado tem, então, um ponto escurecido, um lugar que lhe pertence e que não foi visto porque não teve luz, um lugar ao qual não foi dada a devida atenção ou importância. Esse ponto foi esquecido, ficou submerso, escondido. Assinala referenciais artísticos que podem ter sido encobertos.
Sempre há alguma associação visual que pode ser feita, mas não me sinto confortável em referenciar meus trabalhos a partir da visualidade. Para mim, o que mais importa quando faço essas ligações é encontrar as que sejam de caráter filosófico, de interesse pelo assunto, mesmo que não seja consciente no momento em que foi criado o objeto de arte. É algo que está na textura, nas sensações, como se vê nas videoinstalações de Pipilotti Rist, nos objetos de caráter terapêutico de Lygia Clark ou no texto de Leila Danziger, que fala do interesse pelo outro, pela beleza estranha que ele carrega:
Na intensidade da cor ela vê a possibilidade de tratar-se, curar-se, exibindo-se como uma gravura – ou de fato um cromo – cuja matéria e suporte é sua pele e seu corpo. Na verdade, esse encontro me levou, mais uma vez, a pensar no desenho e na escrita, e me fez compreender que eu sempre desenhava como se escalavrasse o papel, que sempre via o papel como a superfície da pele. (DANZIGER, 2013).
Há visualidades que nos são dadas facilmente; outras não, nos deixam incomodados, insatisfeitos. Dão pistas, mas não dizem a que vieram. Para decifrá-las, temos que buscar o que está invisível ou, ao menos, escondido, o detalhe, através de um modo investigativo de fazer arte.
Em outro momento, muito remoto, a iluminação do olhar pelo trabalho do outro aconteceu por Ofélia, de Millais. O fascínio pela figura feminina inerte e morbidamente linda da pintura ficou submerso, mas pode-se dizer que essa imagem boiou pelo meu inconsciente e emergiu em Tanques e Pele na água, obras que valem ser lembradas aqui por algumas características comuns: a produção demorada, a analogia da materialidade com a água e a relação com finalização.
Em Tanques, produzido em 2010, pode-se dizer que a imagem da Ofélia ressurge. Mas os corpos que boiam ou afundam são de outra matéria, assada até perder qualquer vestígio de água, e, mais que isso, torrada em forno de altíssima temperatura e cujas chamas tingiram as peças cerâmicas e as transformaram em pedras. Essas não derretem, Ofélia derreteria? Até que ponto a imagem – imortal? – de uma mulher que boia sem vida é diferente dos corpos de solidez extrema que estiveram nos tanques de vidro cheios de água? Endurecidos pela cerâmica, preparados para nunca derreter, alguns submergiram. Tanques dentro de tanques, a água entre eles. Em volta dos dois tanques de vidro estão as portas arredondadas de um antigo forno.
Depois de algum tempo, outra imagem se somou às anteriores peças afogadas. Desta vez, o corpo que boia e submerge desaparece, desfaz-se em sua característica solúvel, intrínseca à matéria. É um fragmento mostrado no vídeo Pele na água, de 2014, o qual apresenta algumas ações até chegar ao desfecho final: deitar de bruços sobre a pedra, desabotoar os botões de trás da blusa, receber na pele uma escrita com delineador labial por uma mão masculina que, em seguida, espalha uma gosma branca, a arranca depois de seca e a devolve para a dona da pele. Esse relevo seco que foi feito a partir de um procedimento velho/novo, já bastante experimentado na vida desde a infância, e, agora, transposto como um procedimento artístico: passar cola branca sobre a pele, esperar o material secar completamente e arrancar a película. O fragmento de pele-cola foi delicadamente colocado na água corrente do ribeirão, que o levou pelo escorrido da pedra e o misturou com movimentos rápidos, fazendo-o desaparecer em meio à correnteza-redemoinho num quase instantâneo desmanchar. Esse corpo que se desfaz poderia ser uma Ofélia? Como esquecer algo tão frágil que se vai, que se foi, num ido levado, desapegado, desprendido? O fim iluminou mais uma Ofélia, num acende-apaga de estranha clareza.
Entre os contatos – pele-pele, pele-cola, pele-pedra, pele-coisa, coisa-cola, haveria algo de inframince?2 No procedimento videográfico de Pele na água, havia questões sobre o toque e a relação com o outro – como eu toco e como sou tocada. Agora, com o novo vídeo sobre o Relógio Pélvico, olho mais diretamente para o meu movimento de novo, e minha carne se agita, de tantos e tão desordenados que são os questionamentos e incertezas trazidos por essa investigação que se inicia e se interrompe constantemente em busca de um novo movimento. Exausta, paro outra vez. Essa volta brusca a um assunto deixado para trás me deixou um pouco tonta.
Com exceção do trabalho Tanques, os outros aqui citados foram descritos tendo como características físicas comuns: fragilidade, transparência e sobreposição. Desejar o movimento, perscrutar a estrutura em suas possibilidades e carências, buscar uma falta, desistir, deixar ir embora, dissolver. Depois disso, o que sobrevive? Há algo além da memória do que se foi? Pode uma escrita em crise tornar-se uma escrita potente? Será produtivo buscar o detalhe no trecho? Tomo emprestado aqui os conceitos de “detalhe” e “trecho” que Didi-Huberman apresentou no apêndice de seu livro Devant l'image. Para explicar esses conceitos, exemplificou o detalhe por operações do traço e por objetos delicados como fios e agulhas; já o trecho, como uma mancha intrusa que salta aos olhos. Segundo o autor, o detalhe tem a ver com aproximação, descrição, um ver bem que significa saber. “[...] detalhar o visível, descrevê-lo e desdobrá-lo em detalhes, fazer dele uma soma sem resto dos aspectos”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.317). O conceito de trecho é associado pelo autor a um acidente, uma crise, algo que gera confusão na imagem, mas não um fracasso, pois tem sua importância na concepção da imagem como um todo. Crise, sintoma: potência, jazida. Assim, inspirada pelo raciocínio e pelos verbos utilizados por esse autor, refaço e desfaço caminhos. Um desses movimentos pode-se delinear na seguinte suposição: se aplicarmos a ideia do trecho a outros contextos e pensarmos inversamente, compreender a crise em seus milímetros poderia transformá-la em uma potência. Seria procurar e encontrar a delicadeza do detalhe na crise. Voltando a pensar no serviço da escrita, que acontece neste momento, pode uma soma de delicadezas causar ou tornar-se uma crise? Se sim, é preciso buscar meios de sair dela para reintegrar.
De alguma maneira, o conceito de detalhe aproxima-se do conceito de soma, fundamental para a compreensão de processos integrativos. Sem constituir em si uma separação, mas para esclarecer do que se trata esta ideia, vale tanto para processos físicos de busca por melhoria mecânica dos próprios movimentos, quanto para os processos aparentemente puros do pensamento – como para entender um conjunto de trabalhos e suas questões em relação. Saber é realmente perigoso: elementos vêm com pensamento, e aparecem mais informações para lidar, escarafunchar, adentrar. Não se sabe onde isso vai parar; sabe-se apenas que começa.
O Método Feldenkrais, que está na parte invisível do vídeo descrito no início deste texto, é um dos vários modos de trabalhos somáticos que promove um intenso saber de si, considerando o ser humano como um todo integrado. Como proposta de educação somática, o trabalho, muitas vezes, é focado em uma parte que irá influenciar as outras e a organização do todo, desde movimentos simples, como pisar, até grandes tomadas de decisão, que podem gerar mudanças importantes na vida.
A prática e o estudo das referências se movem juntos. Entre as aulas de dança, a construção de vídeos e trabalhos gráficos e as conversas com os autores, vou tecendo uma escrita desorganizada pela qual torço para que no final se torne algo que valha a pena ser lido e que não seja lido a duras penas. Algo que é feito para ser lido não pode se dar ao luxo de ser incompreensível como um objeto de arte, mesmo que fique algo no ar. Não se sabe a medida exata de aproximação ou distanciamento entre uma escrita de interpretação e um objeto de arte, mas se aquela é muito distante do legível, as letras se misturam, ficando impossível juntá-las.
É preciso encontrar alguma luz no meio da crise, uma organização elucidativa entre tantas dúvidas. É como mover-se sobre o mangue, a passos pesados, engolidos pela matéria pastosa embaixo e em volta do corpo. Ler para escrever. Confundir para entender. Há leituras que me trazem verdadeiros déjà vu de situações descontraídas. Descontração! Está aí uma boa palavra, que pode ser associada à moda Feldenkrais: fazer sem contração, fazer relaxado, fazer até com preguiça.