1 Uma pesquisa
Neste artigo, busco indicar alguns vetores – entre outros possíveis – que tocam no processo criativo de três artistas contemporâneos pertencentes à cena artística da cidade de Porto Alegre, com atuação especialmente desde o ano 2000. O interesse nas poéticas de Marcos Sari, Rommulo Conceição e Tiago Giora se explica, em parte, por uma possível leitura de seus trabalhos a partir do tema do espaço e das possíveis ressonâncias de seus trabalhos com relação à paisagem, ambos tópicos da minha própria área de interesse, tanto como artista visual quanto como arquiteta. Ainda, a escolha de Rommulo, Marcos e Tiago se deve, primeiro, à minha própria participação no desenrolar de suas poéticas e de um ponto de gênese em comum, o que permitiu discutir ativamente sobre seus processos, algumas vezes como participante. Segundo, a escolha desta amostragem se justifica, porque esses artistas – dentre outros possíveis – estavam legitimados sob o ponto de vista institucional, já que receberam prêmios e bolsas, bem como já fizeram exposições em diversos pontos do mundo.
Com base no trecho analisado, retirado desse conjunto de conversas, passei a registrar algumas ideias e noções que esse grupo de artistas compartilha e que mereciam ser explicadas, levando em consideração que "quando ideias ou crenças são partilhadas por um grupo de pessoas, uma das consequências é que as explicações que um membro do grupo precisa dar aos demais é reduzida" (KRAUSS, 1972). Assim, o trabalho de crítica e contextualização histórica ambicionado pela pesquisa compreende, primeiramente, esclarecer e reavivar algumas "ideias ou crenças" compartilhadas, por acreditar que nelas residam indagações esclarecedoras das poéticas analisadas. As ideias que surgem da transcrição que segue servem como chave para a inserção da produção de Rommulo especialmente, e, em um universo histórico mais amplo, das produções de Marcos Sari e Tiago Giora.
Com esse quadro inicial esboçado, o método que se apresentou mais adequado, tendo em vista minha própria participação no cenário artístico local e, consequentemente, meu conhecimento de cada um dos três artistas em questão (como de tantos outros), foi a dialética, definida, segundo Engels como
a grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, na aparência estáveis, do mesmo modo que os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, as ideias, passam por uma mudança ininterrupta de devir e decadência, em que finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneos, um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje. (ENGELS, apud, POLITZER, 1979, p. 214).
Assim, diversas conclusões são construídas ao longo de questionamentos e dúvidas que surgem entre dois ou três interlocutores e que, principalmente, contemplam a noção de um conjunto de processos, os quais, no caso dos três artistas em questão, incidem mutuamente em suas poéticas.
Desse ponto em diante, foram desenvolvidas conversas sobre temas determinados, documentadas em cerca de oito horas de gravações de áudio, nas quais se constata, eventualmente, uma tomada de consciência dos próprios artistas sobre seus processos de criação. A série de fragmentos de conversas a que esta transcrição pertence compõe um todo maior de pesquisa propiciado por minha bolsa CAPES/FAPERGS no âmbito de um pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, com projeto que se insere na linha de pesquisa Relações Sistêmicas da Arte, a convite e sob supervisão da professora Mônica Zielinsky. A conversa a seguir é parte de um acervo documental que ainda estou organizando e que se desdobra em direção ao processo autoral dos artistas documentados. Vale salientar que esta é uma pequena contribuição para o contexto da documentação em questão, que é muito mais amplo e que merece a contribuição de outros pesquisadores.
2 Um ponto de gênese
A escolha desses artistas faz parte de um ponto gerador que se materializa nas intervenções no Torreão.1 Todos nós participamos ativamente do Torreão entre os anos de 1998 e 2008 – um pouco mais talvez –, e minha opção, num universo de muitos artistas que circulavam nessa cena, foi editar, dentre as intervenções no Torreão, as que levavam em conta o lugar e sua espacialidade.2 Esse ponto gerador corresponde a um encontro, no tempo e no espaço, em que se iniciam as conversas das quais se publica um fragmento aqui. Essa conversa não é só nossa, por certo, e mantém extratos sobrepostos agora, em outros tempos e lugares dos quais não é possível dar conta.
Cabe esclarecer que as intervenções feitas para o Torreão foram apenas o ponto de partida da documentação produzida e coletada, incorporando-se à pesquisa como base de uma experiência que, essa sim, por suas qualidades de troca entre um grupo de artistas, propiciada naquele espaço de arte (sob a coordenação de Jailton Moreira e Elida Tessler), mostrou-se fundadora de um sistema ético, sobre o qual se destacam rigor formal e coerência diante de opções e escolhas condutoras de carreiras e poéticas dos três artistas em questão. Sobre essa experiência que age como pano de fundo, incluo minha própria formação e minhas próprias escolhas. Dentre as inúmeras experiências vividas na prática daquele espaço de arte, destaco as experiências propostas e organizadas por Jailton Moreira, de caráter experimental, chamadas de Ateliers Abertos. Não quero, no entanto, incorrer no erro de tentar explicar essas práticas, por ter certeza de que isso não seria possível; quero apenas descrever essa experiência que transparece na conversa documentada a seguir e que se transforma em uma ideia ou noção compartilhada. Transcrevo, então, o resumo de artigo publicado por Jailton Moreira, que descreve brevemente os Ateliers Abertos, e que poderá ser consultado para esclarecer um pouco mais tais experiências:
O Torreão durante a sua história de treze anos de atividades ininterruptas é principalmente associado às intervenções realizadas por diversos artistas especificamente para sua torre. Simultaneamente a esse período desenvolveu-se uma intensa atividade de ensino de arte sob o enfoque da contemporaneidade onde as questões das relações entre arte e lugar aparecem com recorrência. Frente a isso, criou-se uma série de workshops, chamados de Atelier Aberto, tendo o espaço da paisagem como centro das especulações e discussões. Para ampliar as abordagens buscaram-se situações radicalmente opostas como desertos, praias e montanhas. Toda essa experiência gerou paralelamente indagações a respeito dos limites, e das possibilidades do ensino de arte. (MOREIRA, 2005, p. 109).
Cabe esclarecer que nem todos os participantes do Torreão se incluíram nos Ateliers Abertos, mas, de acordo com Marcos Sari, “todos nós fomos de alguma forma tocados por essa experiência”.
A conversa a seguir transcrita recai sobre relações que se desdobram a partir da experiência dos Ateliers Abertos. Ressalto que Rommulo, assim como eu, não participou diretamente de nenhum dos Ateliers Abertos. Por isso, não é possível afirmar uma relação direta, como experiência fundadora, entre seu trabalho e os Ateliers Abertos, como acontece no trabalho de Marcos Sari e de Tiago Giora; mas é possível encontrar adensamentos que se constroem com base em uma experiência que se traduz em modos de operar com o campo da arte, que podem resultar ou não, diretamente, em trabalhos artísticos e que levam a processos mais amplos de criação nos quais estamos inseridos.
3 Da ação ao pensamento
Rommulo 1 – 20/01/2015 (meu apartamento, na Rua 24 de Outubro)
MP: Na minha opinião, não tem como pensar enquanto se está agindo...
R: Eu concordo.
MP: Então, nessas nossas conversas isso fica muito claro, sabe, muito claro, porque tem um monte de coisas que viraram pensamento...
R: Que a ação virou o pensamento...
MP: É, eu não consigo muito ver como é que tu vais fazer um trabalho...
R: ...pensando o que é que eu estou fazendo, não dá pra fazer isso ao mesmo tempo...
MP: Eu acho que não.
R: E depois tem que resgatar uma memória, mesmo que artificial...
MP: Porque a intuição... Devem ter falado sobre isso... sobre intuição?
R: Não existe essa palavra.
MP: Essa é uma coisa que foi cara pra mim. Quem falou, talvez primeiro, e que acho que de uma maneira que me satisfez, anterior ao Bergson, que é também fundamental, foi o Kant: que a intuição é um conhecimento que a gente tem já, mas que ainda não se transformou em conceito.3 Então, essa coisa intuitiva que nós temos... Eu sempre pensava: “Ah, eu sou muito intuitiva” – não, quando eu estou usando a intuição eu estou usando toda a minha inteligência, mas só que isso ainda não se transformou num conceito. Eu sei que eu tenho que pegar o pincel assim ou que tu tens que pintar de tal cor um pedaço do teu móvel; móvel que vai entrar no outro e sei lá o quê... Aquilo tem um conhecimento, depois isso vai se transformar num conceito, não há um conceito primeiro.
R: A impressão que eu tenho é que eu fui eliminando a intuição, o que é péssimo; foi uma atitude que eu tive e agora estou tentando retomar a intuição, porque, de alguma forma, falar sobre o trabalho engessou a intuição, destruiu a intuição. Então, agora, recentemente, eu peguei o carro e fui até... Eu queria muito pegar o carro e ir. Então, eu fiz a carta verde,4 aí, eu estiquei o seguro; eu pensei assim: eu vou... e sei lá. Eu vou cruzar a fronteira e não sei onde é que eu vou parar. Eu tinha a ideia de que, se eu cruzasse a fronteira e fosse até a Argentina, eu ia chegar no mesmo lugar em que eu cheguei há 20 anos atrás; eu queria ficar meio perdido (após alguns episódios importantes de sua vida pessoal), fisicamente perdido. Pegar o carro e ir.
MP: À deriva.5
R: É. Pois parece que, enquanto eu dirijo, (o carro em movimento) é o lugar em que eu consigo meditar. Parece mentira, acho que todo mundo tem isso – quem gosta de dirigir –, parece que o braço faz a coisa, a perna faz e você... Se passar um coelho, uma pessoa, você sabe que você vai frear e que isso é uma ação quase que... Você não vai pensar muito: passou uma pessoa, você vai ter que frear o carro pra não matar (batendo as mãos em palma), e, como o seu corpo já sabe o que tem que fazer, a sua mente tá fora dali;
MP: Conhece aquela passagem da estrada narrada pelo Tony Smith?6 Uma estrada no deserto, à noite, em que Tony Smith tem um insight (procuro nas gavetas). Ele diz que foi uma experiência reveladora, e termina dizendo: “É claro que é o fim da arte!”.
Risos
R: A estrada tem uma coisa: você não apreende nada e tudo passa. Então... depois eu te mostro o que eu estou fazendo agora. E aí, começou a chover e eu comecei a fotografar, focar fora e focar na gota de chuva, e, então, eu agora estou compondo este material que são fotos bem grandes. Ontem eu fui na Sul Fotos para ver até que tamanho eu consigo chegar: então, um metro e meio por um metro; então, vai ter um pedaço aqui, que era a chuva, um outro pedaço aqui, que é a imagem, e isso para trás, para frente; já fui no Santos pra ver se dá pra montar; dá pra montar (figura 1). E eu tô começando a resolver isso. Como o Cláudio estava lá comigo, eu pedia pra ele ficar parado, e eu ia entrando na paisagem, e ele me fotografando. Eu orientava a máquina – depois eu vou mostrar tudo isso – então, eu orientava a máquina, como se fosse... Eu caminhava até virar um pontinho e desaparecer na imagem – e ele fotografando. Dava sei lá quantos metros, ficava uma hora e meia fazendo isso. Então, você vai desaparecendo nessa imagem como se você ficasse integrado nessa imagem. Pra mim, isso é o espaço (figuras 2, 3 e 4). E... Não... Paula, tem uma coisa que é o espaço e outra que é o lugar... Deixa eu viajar um pouquinho.
MP: Claro, à vontade.
R: Então, uma coisa é o espaço, sou eu dentro desse lugar. A câmera fotográfica tem uma perspectiva cartesiana. Tem uma coisa... porque eu tô nessa (série) desses objetos construídos, que são referentes ao espaço, porque pra mim eu estava falando do espaço, mas já começo a ver que (o trabalho) é mobiliário, que talvez não caracterize um lugar, não sei.
Então, quando a gente olha qualquer coisa, tem essa visão cartesiana na cabeça da gente, e a máquina fotográfica faz isso também, mas quando tem um relevo, que desce e sobe, é difícil apreender que desceu e que subiu, a não ser que um corpo se movimente ali.
Se a câmera... Eu sou maior do que a montanha que está atrás de mim (indicando uma relação de perspectiva), mas, à medida que eu começo a entrar no espaço, eu desço, subo, sem sair (da mesma linha ou direção). Eu tenho um rumo – norte 320 – e vou até o final, né, aí eu fotografo de frente, de lado, de costas e do outro lado, orientado nos eixos cartesianos – eu tô falando e tentando pensar nesse trabalho, né – e eu sei que a máquina tá virada pra lá – norte 120, por exemplo, norte 120 – então 90º, 90º, 90º, 90º, aí eu caminho 12 passos e fotografo isso de novo, aí eu já tô menor, um pouquinho, do que a montanha, ou eu já desci um pouquinho; ou desci muito, desapareci, e apareci lá de novo, corpo inteiro... Eu vou fazendo essas voltas. De alguma forma, é esse espaço me absorvendo, e aí é o espaço, eu vou me integrando a ele, eu... É quase antropológico, eu me perco nessa invisibilidade, nessa dimensão minúscula que eu sou em relação a tudo isso (figuras 2, 3 e 4).
Aí eu comecei a parar, nos lugares que eu fui, e comecei a perguntar pra algumas pessoas assim: “Onde você está agora?”, eu já tinha feito isso e agora recuperei isso também, mas antes eu fazia essas perguntas dentro dos lugares, e agora eu fico fazendo pra qualquer coisa; eu converso, converso, converso, converso e aí eu peço pra essa pessoa: “eu posso te fotografar?” e eu peço para essa pessoa responder onde é que ela está. Então... foi muito engraçado, porque teve gente que respondeu assim: “cidade tal, do departamento tal, da Argentina”, e tem gente que respondeu... “estou trabalhando no lugar tal”, e tem gente que está num lugar mental: “estou pensando na minha mãe”, e só. E tem gente que... Teve uma resposta que foi engraçada, que foi: “não há outro!”, eu pergunto “mas o que que não há outro?”, “não há outro lugar como esse aqui, esse lugar é único”, então são aspectos de qualidade de lugar, mas aí é o lugar. Então, enquanto o outro é o espaço, que contém, esse é o lugar, que tem um significado, mesmo que seja mental (figuras 5 e 6).
Então, eu tô com esses trabalhos que eu tô fotografando, fotografando, e que ainda não estão com a forma bacana, e eu não sei o que eu vou fazer com isso, que, pra mim, são espaço e lugar: um é o lugar... é essa pessoa segurando essa placa escrita onde ela tá, e o outro é o espaço e sou eu me perdendo nesse lugar.
E, como eu tenho orientação, por exemplo, norte 120, essa parede aqui pode ser norte 200... então, se eu pegar a foto e eu orientar aqui assim (mostrando com as mãos a possibilidade de expor com uma relação dada posição), talvez ela tenha norte 120 nessa direção... não sei, na minha cabeça, tem que ter duas coisas: tem que ter as imagens e tem que ter uma inclinação do jeito que eu miro a bússola pra cá (mostrando).
MP: Sim, tu vais orientar elas numa sala de exposições.
R: Sim... por exemplo, norte tá pra lá... (figura 7)
MP: Norte 120...
R: 120, então tem que estar orientada assim...
MP: Aham.
R: Então, ela pode vir nessa parede, é melhor que ela venha nessa (parede), porque ela tá assim... aí mostra pra lá, essa aqui é norte 10, então é melhor nessa parede, norte 10, então vai ficar uma coisa assim, né, que essa aqui é norte 10, essa aqui, que é norte, não sei o que lá, porque aí talvez eu posicione essa sala de exposição no mesmo contexto desse espaço enorme... É como se eu estivesse deslocando esses espaços e colocando tudo dentro dessa sala... como eu achava que eu estava fazendo com esses módulos. Então, é uma viagem ainda, eu não sei o que que estava falando aqui...
(risos)
MP: Eu achei bem interessante...
(risos)
R: Eu não sei o que que eu estou fazendo, mas eu estou fazendo... (risos) eu tô tentando orientar esse negócio, e é claro que eu me lembro de ti com os retrovisores7... Depois... eu tô fotografando, e um dia lá eu estava rindo, rindo muito... (lembrando dos retrovisores e vendo a relação entre esses dois trabalhos).
MP: Rommulo, tu sabes do que eu me lembrei quando tu começaste a falar? Por isso comecei a rir, porque tem muita interligação, sabe... Tu te lembras de um vídeo que o Marcos e o Tiago8 fizeram na Bolívia?9
R: Lembro, lembro.
MP: Aquele branco, que eles andam na borda do vídeo (figuras 8, 9, 10, 11 e 12)?
R: Sim, que eu acho maravilhoso...
MP: Muito bom aquilo. Tem a ver com aquilo...
R: Ah, tá, é claro!
MP: É o oposto daquilo...
R: Sim, anda delimitando o espaço, né. Ele anda na borda da máquina...
MP: É, exatamente. Até as bolinhas do Targa,10 enfim. Mas aquilo é uma espécie de inversão disso que tu estás falando, né?
R: Sim, porque delimita.
MP: É, porque aquilo é uma ilusão.
R: Traz a perspectiva pra cá... como se eles tivessem...
MP: Exatamente!
R: Rebate!
MP: Faz uma épura.
R: Isso!
MP: Faz uma épura do espaço aquilo.
R: Exatamente. E o outro é ir, ir até desaparecer, virar um pontinho. E o Marcos tem um, agora você falando, né, que é ele andando pintado de branco11 (figura 13)...
MP: Sim, eu tenho uma cópia. Está toda arranhada, eu tenho que trocar a cópia até. Ele me mostrou esse trabalho e disse “Tu viu esse?”, e eu disse “Marcos, tu me deu esse trabalho...”
(gargalhada)
Mas eu acho que tem muita coisa...
R: Paula, muita coisa...
4 Relações
O trecho acima, destacado da conversa número um com Rommulo Conceição, é um excerto de cerca de 10min, com partes selecionadas de uma conversa de 23min, seguida por uma conversa de 21min. Importa mostrar esse recorte, ressaltando o caráter pontual abordado. No trecho acima Rommulo demonstra um procedimento inicial – dirigir um automóvel em direção ao sul – que vai se transformando em processo gerador de vários trabalhos. (Nessa altura, três especificamente; mais tarde, muitos que talvez não tenham uma relação tão identificável com essa viagem.) A referência recorrente na conversa a trabalhos de outros artistas indica que a experiência de Rommulo com a paisagem pertence a um arcabouço de pensamento construído entre o embate direto e a experiência do outro. Essa trama adensa as poéticas de um grupo de artistas que, compartilhando a experiência inicial no Torreão e por meio da convivência intensificada com a partilha de ateliês, além da experiência de exposições juntos, passam a olhar seus próprios trabalhos ao lado do trabalho do outro, numa verificação constante de semelhanças e diferenças.
As relações encontradas com o trabalho de Marcos Sari – especialmente a foto tomada no Salar de Uyuni (figura 13) –, com o vídeo desenvolvido por Marcos Sari e Tiago Giora (e Lucas Levitan) (figuras 8, 9, 10, 11 e 12) e ainda com as fotos de Targa, todos nos Ateliers Abertos no Salar de Uyuni (2002 e 2006), demonstram que operações envolvidas nos trabalhos de Rommulo desenvolvidos nessa viagem, em 2015, têm relação com uma gênese que reverbera em significados que, juntos, podem ser adensados. Quando Rommulo se refere aos trabalhos realizados por Marcos Sari e Tiago Giora nos Ateliers Abertos, essa ideia está clara para todos como experiência fundadora de uma pauta que se traduz em procedimentos que se confundem com o processo criativo de cada um, como o apagamento do corpo sobre a imagem/espaço da paisagem, enfatizando o uso do corpo como instrumento de medida. A paisagem, portanto, comum aos três artistas, é uma paisagem com um tom de ausência e distanciamento, mas, por suas características formais, uma paisagem em que os artistas intervêm com procedimentos da geometria.
5 Autonomia
Nascido em Salvador, Rommulo se fixou em Porto Alegre depois de ter passado pela Austrália e Japão e de ter acumulado uma série de titulações acadêmicas, como mais de um pós-doutorado, mestrados e projetos de pesquisa tanto na área de geologia quanto em artes visuais. A ideia de deslocamento presente em seu trabalho desde o início dos anos 2000 se apresenta claramente nas produções em que Rommulo pergunta “onde você está agora?” e que permitem desvendar camadas de significação, muitas vezes, pouco claras inclusive para o próprio artista: Rommulo é um nômade.
Sob esse ponto de vista, o trabalho de Rommulo passa a ser melhor compreendido a partir do conceito freudiano de uncanny, ou o estranhamente familiar, tomado pela óptica apresentada por Anthony Vidler,12 em que a categoria estética do belo não exclui o sublime e o grotesco. Para Vidler, o estranhamente familiar encontra seu lugar metafórico na arquitetura; primeiro na casa, “e depois, na metrópole, onde o que antes era íntimo e confinado entre muros, a ratificação da comunidade [...], tornou-se estranho em função das incursões espaciais da modernidade”. (VIDLER, 1990, apud, NESBITT, 2008, p. 620-621). Em suas imagens e construções espaciais, Rommulo evidencia o olhar do estrangeiro ao apresentar o "estranhamente familiar". De acordo com Kate Nesbitt (2008, p. 34 e 617), "Sigmund Freud definiu o unheimlich13 como a descoberta de algo familiar que foi anteriormente reprimido, o inquietante reconhecimento da presença de uma ausência". Assim, o trabalho de Rommulo articula o conceito de “estranhamente familiar” tanto sob o ponto de vista original e psicanalítico, quanto amplia as possibilidades estéticas ao incluir, um tanto veladamente, o caráter de grotesco que reside em sua produção.
6 Palavras finais
A transcrição da conversa que é a base deste artigo permite encontrar adensamentos e cruzamentos capazes de ressaltar processos, procedimentos e pontos de gênese entre os três artistas, como uma compreensão da paisagem que se constrói no embate com a mesma, mas com procedimentos do universo da geometria. O corpo, igualmente, está presente, mas é o corpo como medida, agente dinamizador das relações entre espaço e paisagem. Cabe esclarecer, finalmente, que essa conversa que assume o ponto de vista de Rommulo Conceição, tem o caráter de ser – como as outras que compõem o corpo da pesquisa – conversas entre amigos que olham para seus trabalhos com a tensão adequada entre a proximidade de um processo ainda em curso e a distância (necessária) que permite operar sobre um certo campo de ação, com pontos de convergência e tangências que, todavia, se confirmam em futuros individuais e autônomos. Dentro dessas peculiaridades, procedimentos e ações em comum se confundem com o processo criativo autônomo de cada um, o que este artigo demonstra com base na produção de um dos agentes envolvidos.