Agamben e o homem sem conteúdo
Agamben (2013a) constrói um discurso contra a estética, fazendo notar que ela só surgiu no domínio das artes em tempos mais recentes. O saber estético tirou da arte seu conteúdo histórico, que era construir a verdade, ligar o mundo dos deuses ao nosso, e colocou o juízo estético como a única forma de julgamento artístico. Com isso, ele gerou um homem sem conteúdo, o artista que agora só tem, em seu gesto de criação, sem nada de concreto para trabalhar, o julgamento do que produzir. Ao mesmo tempo, o estatuto da arte foi cindido: de um lado, o artista que incorpora o gênio da criação; do outro, o espectador que só possui seu juízo de gosto para realizar o julgamento da obra. O artista vaga, agora, em uma total liberdade, sua
subjetividade artística é a essência absoluta, para a qual toda matéria é indiferente: mas o puro princípio criativo-formal, cindido de todo conteúdo, é a absoluta inessencialidade abstrata que nadifica e dissolve todo conteúdo em um contínuo esforço para transcender e realizar a si mesma. (AGAMBEN, 2013a, p. 97).
Consequentemente, a arte foi transformada em um nada que se nadifica, sobrevivendo eternamente a si mesma, ilimitada e sem conteúdo. Ela morreu, mas morreu porque “a morte é, precisamente, não poder morrer, não poder ter mais como sua medida a origem da obra” ( AGAMBEN, 2013a, p. 99). Assim, a arte tornou-se pura negação. Em sua essência, tornou-se niilista e tem o destino dos seres humanos como o nada:
Se a morte da arte é a incapacidade na qual ela se encontra de atingir a dimensão concreta da obra, então a crise da arte no nosso tempo é, na realidade, uma crise da poesia [...] poesia não designa aqui uma arte entre outras, mas é o nome do fazer mesmo do homem, daquele operar produtivo do qual o fazer artístico é apenas uma exemplo eminente e que parece hoje estender, em uma dimensão planetária, a sua potência no fazer da técnica e da produção industrial. (AGAMBEN, 2013a, p. 103).
Agamben coloca que a poesia foi separada da práxis quando o trabalho intelectual foi separado do manual. Indo a Platão e a Aristóteles, ele define, por sua vez, a poesia como aquilo que faz passar algo do não ser para o ser e considera que a técnica permite a entrada na presença da obra (isto é, ela passa a constituir uma realidade), dando uma forma à criação, pois “é precisamente a forma e a partir de uma forma que o que é produzido entra na presença” (AGAMBEN, 2013a, p. 105). O modo da presença das coisas na contemporaneidade – a rigor, desde a segunda metade do século XVIII – pode ser divido em dois: o estatuto da estética, a arte; e o estatuto da técnica, produtos em geral. A partir do momento dessa divisão, a arte passou a ser identificada como fruto da originalidade ou autenticidade.
Para os gregos, a verdadeira atividade produtiva estava na obra e não no artista. Eles sequer separavam o artesão do artista, o que não quer dizer que não sabiam apreciar as obras e valorizá-las. Com a estética, essa relação se inverteu, a produtividade passou a ser vista no artista e não na obra, que se tornou um resíduo da genialidade daquele (AGAMBEN, 2013b).
São Duchamp e Warhol os que mais denunciaram a prisão da estética. O primeiro, através dos ready-made, trouxe uma obra que não fez, fruto somente de uma produção técnica, para o estatuto da arte; e o segundo leva uma obra original para a reprodutibilidade. Assim, o ready-made, como a pop-art:
Se funda em uma perversão do dúplice estatuto da atividade produtiva, mas, nela, o fenômeno se apresenta, de algum modo, invertido e se assemelha, antes, àquele reciprocal ready-made em que pensava Duchamp quando sugeria usar um Rembrandt como tábua de passar roupa. Enquanto o ready-made procede, de fato, da esfera do produto técnico à esfera da obra de arte, a pop-art se move, ao contrário, do estatuto estético ao do produto industrial. [...] Em ambos os casos – exceto pelo instante em que dura o efeito de estranhamento – a passagem de um estatuto ao outro é impossível: o que é reprodutível não pode se tornar original, e o que é irreprodutível não pode ser reproduzido. O objeto não é capaz de chegar a presença, permanece imerso na sombra, suspenso em uma espécie de limbo inquietante entre ser e não ser; e é precisamente essa impossibilidade que confere tanto ao ready-made quanto à pop-art todo o seu enigmático sentido. (AGAMBEN, 2013a, p.108-109).
A entrada no campo da estética, portanto, trouxe enormes consequências para o espectador, para o artista e para a obra. No campo do vazio, o juízo estético e o prazer desinteressado do espectador conduziu a arte ao Terror. Por isso, “todos os artistas do presente, pelo menos aqueles que não caíram num formalismo retórico vazio, se tornaram Terroristas” (OLIVEIRA, 2013, p. 200-201).
Há alguma saída desta prisão? Agamben (2013a) diz que, quando a obra é dada ao gozo estético, ela deixa de trazer a presença. Quando ela está na dimensão do estatuto poético do ser humano, a obra paralisa o instante, despedaçando o tempo linear, fazendo encontrar-se no espaço presente, “alcançando uma dimensão mais original do tempo, o homem é um ser histórico, para o qual está em jogo, a cada instante, o próprio passado e o próprio futuro” (AGAMBEN, 2013a , p. 164-165). Assim, a arte é o dom mais original dos seres humanos e observá-la é “ser lançado para fora, em um tempo mais original, êxtase na abertura epocal do ritmo, que doa e mantém” (idem).
Analisando Kafka, Agamben (2013a) evoca a ideia de que estamos no Juízo Universal e de que o anjo da história de Benjamin já há muito está no céu (na verdade, ele sempre esteve lá). Consequentemente, abole-se a ideia de história linear para se afirmar que estamos perpetuamente no evento fundamental da história humana, dando aos seres humanos responsabilidade pelos seus atos, devendo a arte tornar-se transmissão, independente do conteúdo. É preciso, portanto, apropriar-se da condição histórica da humanidade, saindo da ilusão do tempo linear para se resolver o conflito entre passado e presente, dando acesso “ao conhecimento total capaz de dar vida a uma nova cosmogonia e de transformar a história em mito” (AGAMBEN, 2013a, p.183).
Trazer a arte de volta à presença, retirando-a do campo estético, é uma missão quase messiânica, uma missão que o próprio Agamben (2013a) entende não ser possível somente através da arte, que deve fazer seu papel largando as garantias do verdadeiro por um amor à transmissibilidade.
Arte por Godard
Jean-Luc “Cinema” Godard, como foi apelidado o cineasta, é uma das figuras mais importantes da história da sétima arte, provavelmente o mais importante cineasta vivo, autoproclamado “um ilustre desconhecido”. O que, no entanto, é arte para ele? No curta-metragem Je Vous Salue, Sarajevo (1993), ele a define da seguinte forma:
[...] Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra; e arte, a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, televisão, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoiévski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebrenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra da Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.
A cultura, assim, é feita pelo sistema social e faz o sistema social vigente, produzindo e reproduzindo o statu quo. A arte, por sua vez, como exceção, é o que se rebela contra a regra e pela regra quer ser destruída. Por isso, o cinema de Godard se coloca como uma luta contra a cultura, uma denúncia dessa cultura, uma luta, como coloca o filósofo Alain Badiou (informação verbal)1, contra bad images. Essa é uma briga que ele realiza a todo instante, interrogando as imagens constantemente, inclusive as que ele mesmo produz: “quais as implicações da associação entre uma imagem e outra, assim como entre as imagens e determinado som, palavra ou voz...” (SCEMAMA, 2011, p. 23). Para Daney (2007, apud COUTINHO, 2013, p. 23): “Ao que o outro diz (asserção, proclamação, sermão) ele responde sempre com o que um outro outro diz”. Godard está sempre procurando “‘outro’ enunciado, outro som, a outra imagem que poderia vir contrabalançar, contradizer (tornar dialético?) esse enunciado, esse som, essa imagem”.
No seu maior projeto fílmico – talvez o único, como coloca Dubois (2004) –, História(s) do cinema, o cineasta aproxima-se de Duchamp pensado por Agamben, pois, ao realizar um tratado sobre as histórias do cinema, ele produz arte sem reinventar o conteúdo da história:
Pois compõe seu filme a partir de elementos com os quais essa já tem sido feita. Todos os documentos estão postos, como testemunhas do tempo. Sendo assim, o cineasta manipula as palavras, as imagens e os sons (os quais constituem a força motriz do seu pensamento visual), interrogando o conjunto de documentos que constitui a própria matéria da história. (SCEMAMA, 2011, p.23).
Se Duchamp realiza o ready-made trazendo para o museu o que não produziu, colocando-o de cabeça para baixo e assinando com um pseudônimo, manipulando assim o objeto e seu pertencimento, Godard traz para o cinema o que ele não produziu, questionando esse produto e o próprio cinema. Scemama (2011, p. 25), ao falar do anjo da história de Benjamin, que olha para o passado, local de ruínas, querendo ressuscitar os mortos e reunir os vencidos, compara Godard a esse, como se ele adotasse a postura do anjo. Assim, entende o autor, para o cineasta:
A “força fundamental messiânica” que cabe ao cinema é a de fazer reviver as imagens como se estivesse ressuscitando os mortos. Sua força específica, então, seria a da montagem: o “dizer próprio da visão”. No entanto, a montagem não tem o poder de salvar nem de ressuscitar os mortos; ela pode, somente, trazer suas imagens de volta. E esse resgate das opressões do passado no plano da imagem é a maneira pela qual Godard concretiza o preceito de São Paulo: “A imagem virá nos tempos da ressurreição”. (SCEMAMA, 2011, p. 25).
Tem-se um terrorista, um artista que a todo momento questiona o que a cultura constrói, questiona a arte e a si mesmo. Ele é, pois, o que o sistema quer destruir, ele é o que causa medo à República de Platão, um terrorista denunciando a morte da linguagem2 e a dominação das “bad images”, da morte da arte.
Fantasmas de Strindberg e Phantasmagoria de Carroll
No século XVII, os aparatos técnicos que constituíram os primórdios do que viria um dia a se tornar o cinema estavam surgindo, tal como a Lanterna Mágica: “um aparelho para projecção de imagens sobre vidro pintadas em cores translúcidas [...] É o primeiro aparelho destinado a projeções coletivas” (COSTA, 1998, p. 1). O aparelho se transformou, assim como seu uso, até o fim do século XIX, tornando-se um sucesso extraordinário em diversos meios sociais: na igreja para a doutrinação, em espetáculos de rua e em salões aristocráticos. Foi usado também por pessoas que desejavam enganar outras, pelo motivo que fosse, levando-as a acreditar que as projeções da lanterna eram atos de bruxaria:
No final do Séc. XVIII um novo espectáculo de Lanterna Mágica, denominado Fantasmagoria, faz sucesso em Paris com os seus espectaculares efeitos acústicos, luminosos e pirotécnicos, evocando aparições do passado e monstros terríveis. Robertson, Étienne-Gaspard Robert, físico belga, o inventor deste espectáculo construiu uma lanterna mágica especial – Fantascópio – montada num suporte móvel que permitia aproximá-la e afastá-la no decorrer das projecções a fim de obter os diversos efeitos especiais. A Lanterna ficava fora da vista do público, por trás da fina tela branca, em frente da qual se sentavam os espectadores na penumbra. As imagens projectadas sobre esse pano transparente surgiam do outro lado, conservado no escuro, como aparições sobrenaturais, fantasmagóricas. (COSTA, 1998, p. 2).
No seu romance Tschandala, passado no século XVII e escrito em 1889, Strindberg conta a história de um professor que busca um local para passar o verão e que aluga um espaço em um castelo, tendo como anfitriã uma suposta baronesa e um servo ou o amante dela, Gypsy. Ambos são ciganos (ele, um ladrão) e parecem estar tramando contra o professor, que, por sua vez, tenta, de todas as maneiras, desmascarar Gypsy, mas não consegue. Por fim, ele resolve acabar de vez por todas com sua suspeita, utilizando-se de uma recente invenção; a lanterna mágica:
Era preciso provocar no cigano, já aterrorizado, a inquietação e o terror. O professor pensou então em fazer aparecer a sombra do guarda morto e da mulher dele [...]. No estado de exaltação em que se encontrava, lembrou que o boêmio lhe tinha contado um sonho que por diversas vezes havia tido: começava por se transformar em cobra, depois em rato e por fim em cão. Acordava sempre desse sonho num estado de grande angústia […] Por que é que o cigano sonhava tantas vezes esse sonho? Por que é que esse sonho o assustava tanto?
Seria o sonho reminiscência de épocas há muito desaparecidas? Quando, como os egípcios, os antepassados dele acreditavam na metempsicose e na reencarnação das almas, depois da morte, em corpos de animais? E por que é que só de pensar nesse sonho o cigano tremia dos pés à cabeça? (apud SCHEFER, 2005, p.48).
Só de uma coisa tinha certeza: se conseguisse uma representação que pudesse superar o sonho enquanto realidade palpável, essa representação teria um efeito ainda mais esmagador, ainda mais destrutivo e ainda mais asfixiante do que o sonho. Sobretudo se essa representação fosse reforçada ao máximo pela angústia que o professor antecipadamente provocara através da visão de cadáveres.
Pintou então grandes e grosseiras imagens, imagens que pudessem ser facilmente entendidas pelo cigano. Preparou a lanterna mágica de modo a que as imagens surgissem sem que a lanterna se visse. O feixe luminoso devia estar atrás do espectador. Mas também tinha que estar preparado, no caso da vítima se virar para tentar perceber de onde vinham as projeções, a não ser obrigado nem a apagar, nem a tapar a lâmpada. Reuniu assim três tubos em forma de triângulo, encheu-os de fósforo e colocou-os à volta do feixe luminoso da lanterna, de modo a que o conjunto se pudesse parecer como o olho que tudo vê, como o olho que está sobre o altar da igreja. O cigano podia escolher entre concebê-lo como o olho de Deus, que tudo cega, ou como o olho gravado na árvore, lá ao fundo, na floresta. (apud SCHEFER, 2005, p.48-49).
Para não lhe dar tempo de estudar a imagem com maior precisão, o professor fê-lo alternadamente desaparecer e reaparecer entre fumo. À medida que o professor passava os vidros na lanterna ou retirava dela, o cigano se mexia-se, saltava e voltava a cair.
Como se fosse uma marionete que o professor controlava através de um fio, com os dedos.
Assim que prendeu a atenção do cigano, o professor projetou a forma gigantesca do guarda sobre o écran de bruma.
Contemplar essa imagem gigante de um morto amortalhado, de mão levantada, que parecia sair da floresta, tão alto como uma faia. Ao deslocar a rosca da lente, o professor fez com que a imagem se aproximasse cada vez mais. Ouviu então o cigano a uivar docemente, de uma forma monótona e contínua, como se tivesse enlouquecido. Viu-o tapar a cabeça com o cobertor, levantar-se e dançar como um urso, cair na erva, voltar a levantar-se até se conseguir manter de pé, como se tivesse sido imobilizado por um tétano, uivando docemente, sem cessar.
Depois, o guarda desapareceu e o primeiro acto do drama terminou (apud SCHEFER, 2005, p.56).
Em 1869, quase duas décadas antes do romance citado, Lewis Carroll publicou seu poema Phantasmagoria, que se divide em sete cantos, dos quais os vinte e cinco primeiros versos estão citados logo abaixo:
One winter night, at half-past nine, / Cold, tired, and cross, and muddy, / I had come home, too late to dine, / And supper, with cigars and wine, / Was waiting in the study.
There was a strangeness in the room, / And Something white and wavy / Was standing near me in the gloom — / I took it for the carpet-broom / Left by that careless slavey.
But presently the Thing began / To shiver and to sneeze: / On which I said “Come, come, my man! / That’s a most inconsiderate plan. / Less noise there, if you please!”
“I’ve caught a cold,” the Thing replies, / “Out there upon the landing.” / I turned to look in some surprise, / And there, before my very eyes, / A little Ghost was standing!
He trembled when he caught my eye, / And got behind a chair. / “How came you here,” I said, “and why? / I never saw a thing so shy. / Come out! Don’t shiver there!” (1–25)
O poema conta a história de Tibbets, que, ao chegar em casa, encontra um fantasma e com ele começa a conversar. Diferentemente, do cigano de Strindberg, Tibbets não se assusta com o estranho em sua sala, inclusive o convida a se aproximar, pedindo-lhe para fazer menos barulho. Com uma tranquilidade aparente, o contato com aquela figura estranha se dá sem medo, uma reação incomum vinda de uma pessoa que acaba de se deparar com alguém desconhecido em sua casa. O protagonista inclusive, após inicialmente convidá-lo, desvia o olhar da figura ao invés de prestar atenção nela. Somente quando o visitante fala que pegou um resfriado devido ao frio, é que o protagonsita observa-o atentamente e, surpreso, percebe-o como um fantasma. Aqui temos o efeito inverso daquele causado pelas projeções do professor no cigano: é o fantasma quem primeiramente se assusta com o interlocutor humano, que, surpreso, mas não com medo, convida-o a se aproximar novamente.
Durante o desenvolvimento da obra, como em uma conversa de velhos amigos, Tibbets e seu “convidado” conversam, enquanto bebem, sobre as cinco regras que um fantasma deve seguir, que tratam desde a etiqueta no mundo do além às maneiras de assombrar. No canto VI, penúltimo, o fantasma descobre que está na casa errada, pois confundira o nome de sua real “vítima”, Tibbs, com o do protagonista. Primeiramente fica furioso com o protagonista; depois acalma-se, pede desculpas, além de agradecer o vinho, e vai embora, abandonando o anfitrião, que só fica com uma Sad Souvenaunce (uma lembrança triste), sem saber se dormiu ou se estava a beber, e sem nunca mais ser visitado por um espírito de novo.
Análise conclusiva
A comparação das histórias é muito interessante para nós, pois, na de Strindberg, o intento do personagem principal com as imagens criadas era que elas fossem “uma representação que pudesse superar o sonho quanto realidade palpável”, assustando sua vítima com uma construção fantasmagórica, evocando figuras de seu pesadelo, “aparições do passado e monstros terríveis” (tal como a força messiânica do cinema de trazer os mortos à vida). Assim, o professor estaria trazendo à presença os sonhos do cigano, fazendo algo passar do não ser ao ser, dando uma forma ao que ainda não havia entrado na presença, abrindo, assim, o espaço da verdade, realizando a experiência central da poieses (AGAMBEN, 2013a). De certa forma, quando ele transfigura a lanterna mágica na possível aparição do olho de Deus, ele está entrando profundamente no campo da criação, já que Deus cria tudo, colocando, assim, a realização da arte no objeto que projeta (só há cinema se há projeção) e não no criador da obra. Em contrapartida, no poema de Lewis Carroll, o fantasma já é verdade, ele já está lá, ele é natureza, “tem em si o princípio e a origem do próprio ingresso na presença” (ARISTÓTELES, 192b, apud AGAMBEN, 2013a, p. 104), não há criação poética. Na primeira história, a visão da obra gera terror, enlouquecendo seu perseguidor e afugentando-o; na segunda, a visão do que já existia gera curiosidade e uma relação de amigos.
Se podemos assumir como verdade que a arte vai contra a cultura, que ela é por isso terrorista, então, de um lado, temos a criação poética na história do romance de Strindberg e, por outro, temos a cultura na história do poema de Carroll. Se o terror é, no cinema, Godard, a cultura é Hollywood; se o professor da história de Strindberg é Godard, o fantasma do poema é Hollywood. Godard assusta, incomoda, perturba, delira; Hollywood nos é amigável, nos instiga, no máximo, curiosidade e, se de vez em quando é agressiva, no final é sempre lisonjeira. Temos nela uma amiga que segue sempre as mesmas regras, que se despede de nós com “Good-night, old Turnip-top, good-night!” (CARROLL, 2013, p. 51). Se nos deleitamos com o mundo de Hollywood, se ele cria desejos e esperanças e constrói narrativas, talvez acabemos como o personagem em uma triste lembrança de que o que vemos na tela do cinema não é o mundo em que vivemos.
Pensando, a partir de Agamben, a não finalidade da obra de arte, pode-se ampliar esse contraponto entre o cinema arte e Hollywood, já que o cinema hollywoodiano tem diversas finalidades: das mais diretas, como lucrar, às mais políticas, como projetos de colonização (GIROUX, 1995).
Por fim, a diferença do poema de Carroll para a vida cotidiana é que ainda não conseguimos dizer ao cinema enlatado, cheio de formalismos, que nós não nos chamamos Tibbs e que, por isso, ele está no lugar errado. Não nos enganemos: talvez não seja possível dizer isso na sociedade do Capital, talvez seja necessário ir dizendo isso como ato poético, como ato terrorista.