Giorgio Agamben parte da hipótese segundo a qual o conceito de dispositivo teria um papel axial na filosofia de Foucault, afirmando tratar-se de um termo técnico decisivo na estratégia de pensamento deste autor. Em seu texto intitulado “O que é um dispositivo?”, uma genealogia do termo é traçada por Agamben a fim de remontar sua origem etimológica e ampliar sua leitura, inclusive para além do sentido foucaultiano. Agamben, por meio de uma perspectiva original, propõe uma relação histórica entre os termos “economia” ou oikonomia1 em grego e o termo “dispositivo”. O argumento parte do pressuposto segundo o qual os teólogos medievais dos primeiros anos do cristianismo estavam preocupados com uma questão considerada por Agamben como um “[...] problema extremamente delicado e vital” (AGAMBEN, 2009, p. 36), a saber: a Trindade. Havia uma preocupação que interpretações equivocadas desse termo suscitassem questionamentos do aspecto monoteísta da doutrina cristã, remontando às seitas pagãs e politeístas. Para evitar tal equívoco, formulou-se um argumento teológico que tem o termo oikonomia como elemento chave. Segundo Agamben o argumento seria o seguinte: “Deus, quanto ao seu ser e à sua substância, é, certamente, uno; mas quanto à sua oikonomia, isto é, ao modo em que administra sua casa, a sua vida e o mundo que criou, é, ao contrário, tríplice” (AGAMBEN, 2009, p. 36).

Mas Agamben nos mostra que essa argumentação teria deixado um legado negativo para a cultura ocidental na medida em que sugere uma divisão entre o ser e a ação, entre o pensamento abstrato e a prática.

Mas, como frequentemente acontece, a fratura que os teólogos procuraram deste modo evitar e remover em Deus sob o plano do ser reaparece na forma de uma cesura que separa em Deus ser e ação, ontologia e práxis. A ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como herança à cultural ocidental. (AGAMBEN, 2009, p. 37).

Agamben ressalta a importância do termo oikonomia para a teologia cristã e sua influência em nossa cultura na contemporaneidade, pois a tradução deste fundamental termo grego para o latim é justamente dispositio. “O termo dispositio, do qual deriva o nosso termo ‘dispositivo’, vem, portanto, para assumir em si toda a complexa esfera semântica da oikonomia teológica” (AGAMBEN, 2009, p. 38). Portanto, o conceito foucaultiano de dispositivo certamente tem uma conexão com sua herança teológica oriunda da oikonomia, que significa “[...] um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se propõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens” (AGAMBEN, 2009, p. 39).

Nesse ponto de sua argumentação, Agamben nos convida a abandonar o contexto da filologia foucaultiana e concebermos o termo dispositivo em um novo contexto. O autor propõe então uma ampliação do conceito de dispositivo, compreendendo-o a partir de uma “geral e maciça divisão do existente em dois grupos ou classes: de um lado, os seres viventes (ou as substâncias), e, de outro, os dispositivos em que estes são incessantemente capturados” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Portanto, para Agamben, os dispositivos são “[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).

Assim, temos os seres viventes e os dispositivos e, entre esses dois, os sujeitos que são definidos como o que resulta deste corpo a corpo que os viventes têm com os dispositivos. Quanto mais dispositivos, mais processos de subjetivação, e o nosso tempo, especialmente, tem uma proliferação de dispositivos. Agamben nos alerta para o fato de que esta proliferação de dispositivos pode nos dar a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo perderia a consistência por vacilar diante de tantas possibilidades de processos de subjetivação, porém, o autor afirma que não se trata de um cancelamento ou uma superação dos sujeitos, mas de uma “[...] disseminação que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal” (AGAMBEN, 2009, p. 42). Esse mascaramento se explicita no modo como as pessoas atualmente confeccionam seus perfis em redes sociais, por exemplo.

Assim, a fase extrema do desenvolvimento capitalista em que estamos poderia facilmente ser definida como uma “gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos” (AGAMBEN, 2009, p. 41. O filósofo ressalta que, em todo o complexo processo de formação do Homo sapiens, certamente houve dispositivos de toda ordem, mas atualmente podemos afirmar que não há um só instante em nossas vidas que não seja “[...] modelado, contaminado, ou controlado por algum dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 42). Então vem a pergunta prática que Agamben nos lança nesse ponto de sua argumentação: “De que modo então podemos fazer frente a esta situação, qual estratégia que devemos seguir no nosso cotidiano corpo a corpo com os dispositivos?” (AGAMBEN, 2009, p. 42).

Agamben inicia a resposta a essa questão com um exemplo do modo como os italianos se relacionam com os telefones celulares que, na Itália, são carinhosamente chamados de telefonini. Esse diminutivo que deixa o aparelho com um aspecto familiar e que o autor condena, confessando sua resistência e seu desejo de destruir ou desativar os telefonini para, logo em seguida, afirmar que essa não é a solução justa para o problema, na medida em que todos os dispositivos têm a mesma raiz no próprio processo de “hominização” — que tornou humanos os animais que classificamos de Homo sapiens — e que na raiz de todo dispositivo está um desejo demasiadamente humano de felicidade.

Portanto, a resposta para a questão sobre qual a estratégia que devemos adotar no nosso corpo a corpo com os dispositivos passa por liberar o que foi capturado e separado por meio dos dispositivos e restituí-los a um possível uso comum. Agamben então insere o conceito de “profanação”2 que significa restituir ao livre uso dos homens algo que era sagrado. A religião pode ser definida por esta subtração de coisas, lugares, animais ou pessoas do uso comum para uma esfera separada. O sacrifício é o dispositivo que regula e realiza esta separação.

Se pensarmos na relação que a arte tem com a religiosidade e com a religião e como o processo de laicização da arte é importante para a compreensão da arte moderna e contemporânea, nos vemos aqui em um terreno fértil para pensar como os dispositivos de aproximação com o público trazem esses legados e em que medida esses dispositivos funcionam como profanações, ou contradispositivos. Aqui, encontra-se o argumento central que justifica e respalda o uso do termo “dispositivo” para refletir o papel do público na arte participativa. Para ilustrar essa questão, podemos citar Marcel Duchamp,3 que, com seus ready mades, criou antidispositivos de profanação na medida em que tornou acessível, aproximou a arte dos objetos cotidianos, ao mesmo tempo que retirou um objeto prosaico e o elevou à condição de arte. São dois movimentos aparentemente opostos que na verdade operam em uma mesma direção: um gesto radical capaz de questionar a arte enquanto tal.

Esses dispositivos de aproximação do público envolvem também as relações de poder que se estabelecem entre espectador e obra. Para abordar tal temática, o filósofo francês Jacques Rancière nos traz os conceitos de “Partilha do Sensível” e “Espectador Emancipado”.

Jacques Rancière, em sua obra “A Partilha do Sensível”, afirma que os espectadores de uma obra partilham de um conjunto que lhes é comum. Essa comunidade contém elementos que, a partir do sensível, proporcionam tal partilha. Em outras palavras: há algo do qual os espectadores comungam, algo que é percebido por eles como comum. Segundo Rancière, esse comum é o sensível.

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. (RANCIÈRE, 2014, p. 15, grifo do autor).

É essa partilha do sensível que dá forma a uma comunidade e determina a relação entre um conjunto comum partilhado — que promove uma participação conjunta dos espectadores — e a divisão de partes exclusivas que são percebidas de modo individual. Trata-se de um “fazer parte de um todo”, de algo que engloba e, ao mesmo tempo, identifica os indivíduos. O conceito de sensível partilhado, a ideia de um conjunto comum a indivíduos que partilham esse mesmo comum no sentido de comunhão e, ao mesmo tempo, repartem esse todo no sentido de partilha, ou seja, a ideia de um todo que é partilhado cabe em exemplos que vão de uma perspectiva macrocósmica, como a ideia do conceito de estado formado a partir do pacto social, até às microcomunidades4 efêmeras criadas artificialmente por um artista contemporâneo. Rancière (2014, p. 16) cita Aristóteles para definir o conceito de cidadania: “O cidadão é quem toma parte no fato de governar e ser governado”. Mas Rancière nos alerta para o fato de existir uma outra forma de partilha que precede esse tomar parte que é justamente aquela que determina quem vai tomar parte. Mesmo com a afirmação de Aristóteles, segundo a qual o animal falante é um animal político, Rancière afirma que o escravo, por exemplo, mesmo compreendendo a linguagem, não a possui, pois não tem direito a ter voz. O comum exige, portanto, uma posição que permita o seu exercício. Nesse ponto de sua argumentação, Rancière cita Platão, que afirma que os artesãos não podem participar das coisas comuns porque eles não têm tempo para isso, pois seu trabalho não os permite participar. A partilha do sensível faz ver quem pode e quem não pode fazer parte desse conjunto, e a ocupação que o indivíduo tem “[...] define competências e incompetências para o comum.” (RANCIÈRE, 2014, p. 17).

Segundo Rancière, existe uma estética na base da política, uma espécie de sistema de formas a priori, entendida em um sentido kantiano.5 Não se trata daquela estetização da política que podemos verificar a partir da reprodutibilidade técnica da arte na modernidade colocada por Walter Benjamin, mas sim de algo que vem antes disso em termos históricos e, antes de tudo, filosóficos. Trata-se de uma “estética primeira”, como afirma Rancière, uma espécie de condição ulterior de sensibilidade. Nesse ponto de sua argumentação, o autor nos remete à emblemática expulsão dos poetas da cidade ideal por Platão. Para este, os poetas são imitadores e poderiam imitar várias profissões. Entendendo que a chance de alguém ser muito bom em algo está no fato desse alguém se dedicar exclusivamente a essa função, Platão argumenta que ninguém pode ser muito bom em várias coisas ao mesmo tempo. Também pelo fato de serem imitadores livres, os poetas poderiam influenciar de modo negativo os cidadãos da cidade ideal, imitando pessoas inferiores ou afastando as pessoas da busca pela verdade. Semelhante argumentação aparece no momento em que Platão, também na obra “A República”, condena os pintores pelo fato de, por meio da mímesis, se afastarem das essências imutáveis das coisas, justamente por produzirem uma cópia imperfeita dessas. Mas Rancière nos diz que antes de afirmar sobre os riscos da má influência ou do afastamento da verdade, Platão nos diz da impossibilidade de se fazer muitas coisas ao mesmo tempo, seja pelo fato de não terem tempo hábil, como no exemplo do artesão citado acima, seja pelo modo como o próprio sensível é partilhado. A partir desse exemplo, Rancière faz uma analogia com a escrita e afirma que: “O mesmo ocorre com a escrita: circulando por toda parte, sem saber a quem deve ou não falar, a escrita destrói todo fundamento legítimo da circulação da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e as posições dos corpos no espaço comum” (RANCIÈRE, 2014, p. 17).

O regime político que presenciamos contém uma indeterminação das identidades no qual a posição das palavras está sendo deslegitimada e as partilhas de espaço e tempo estão sendo desreguladas. Nos diz o autor que este regime estético da política é propriamente a democracia e que a política só existe mediante a efetuação da igualdade. Esse modelo embaralha as regras de correspondência entre o dizível e o visível e embaralha também a partilha entre as obras da arte pura e as decorações da arte aplicada. Rancière nos diz que é na interface criada entre suportes diferentes que se forma esta “novidade” que vai ligar o artista ao revolucionário, inventor da vida nova. Rancière (2014, p. 17) ilustra essa passagem afirmando que é “[...] nos laços tecidos entre o poema e sua tipografia ou ilustração” que se formaria essa interface que é essencialmente política. Portanto, a relação que se estabelece entre espectador e obra é política, intermediada por uma estética que antecede a própria política, e os corpos ocupam lugares específicos nessa relação entre espectador e obra.

Boris Groys, filósofo e crítico de arte, ao abordar os aspectos políticos da arte contemporânea, nos alerta para o fato de o mundo artístico não ser regulado apenas pelo estético e que os julgamentos de valor, critérios e regras que a obra apresenta nunca são autônomos na medida em que eles refletem as convenções sociais e as estruturas de poder dominantes. Aqui encontra-se o ponto central da argumentação de Groys: segundo o autor, seria justamente essa ausência de qualquer julgamento de valor puramente estético que garante a autonomia da arte. Nas palavras de Groys: “Dessa forma, a autonomia da arte implica não numa hierarquia autônoma do gosto, mas na abolição de toda hierarquia deste tipo e no estabelecimento do regime de direitos estéticos iguais para toda obra de arte” (GROYS, 2015, p. 12).

Entendendo que as vanguardas clássicas lutaram para alcançar reconhecimento de todos os signos, formas e coisas como arte e entendendo que há uma desigualdade factual entre as formas de arte e mídias, Groys afirma que o estabelecimento de um regime de direitos estéticos iguais para toda obra de arte seria uma resistência à desigualdade factual. Groys entende que “a boa obra de arte é precisamente aquela que afirma a igualdade formal de todas as imagens sob as condições de sua desigualdade factual”. Aqui as argumentações de Rancière e Groys coadunam e nos ajudam a compreender as relações de poder entre espectador, artista e obra. Para Rancière o comum é partilhado por meio do sensível, mas esta partilha é determinada por meio das relações de poder que se estabelecem. Groys propõe uma leitura do atual contexto, no qual a arte contemporânea se estabelece, que proporciona uma possibilidade de igualdade, essa que está no conceito de comunidade proposto por Rancière e que é a base da arte participativa.

O crítico e curador Nicolas Bourriaud, corroborando Groys e Rancière, também defende o papel político que a arte desempenha na atualidade. “Nada mais absurdo do que afirmar que a arte contemporânea não apresenta nenhum projeto cultural ou político, e que seus aspectos subversivos não se enraízam em nenhum solo teórico” (BOURRIAUD, 2009, p. 19). O autor nos apresenta em sua obra “Estética Relacional” a possibilidade de compreensão da arte como interstício social a partir das relações humanas no contexto artístico. A arte relacional seria “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (BOURRIAUD, 2009, p. 19). Nesse sentido, a arte relacional “[...] atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna” (BOURRIAUD, 2009, p. 20). A obra de arte, segundo Bourriaud, representa um interstício social. O termo interstício, segundo Bourriaud, foi usado por Karl Marx para “[...] designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia capitalista, pois não obedeciam à lei do lucro: escambo, vendas com prejuízo, produções autárquicas, etc.” (BOURRIAUD, 2009, p. 21), ou seja, o interstício oferece outras possibilidades de trocas além das vigentes, que reduzem e restringem as possibilidades de relações humanas. Bourriaud faz uma analogia da motivação da criação dos banheiros públicos com a criação das ferramentas de comunicação: da mesma forma que os banheiros públicos evitam que as ruas fiquem sujas, as ferramentas de comunicação deixam as cidades “[...] limpas de qualquer escória relacional e as relações de vizinhança se empobrecem” (BOURRIAUD, 2009, p. 23). Atuando como interstício, a arte contemporânea desenvolve, segundo Bourriaud, um verdadeiro projeto político na medida em que se empenha em investir e problematizar a esfera das relações.

Percebe-se, portanto, o verdadeiro desafio que é, para o artista, tirar o espectador de sua quase total inércia para uma verdadeira participação, pois existem muitos níveis a serem ultrapassados. Inicialmente, romper os próprios paradigmas da arte tradicional, depois, por meio de dispositivos inventados, estimular uma participação efetiva do espectador. Mas o artista que opta por atravessar essa fronteira entre os “iniciados” nas artes e o público em geral tem essa tarefa como mais um desafio. Há uma espécie de hostilidade do público em geral em relação à arte moderna, de acordo com Bourriaud, na medida em que há uma tendência do público mais amplo em reproduzir concepções mais tradicionais de arte, como a noção de gênio, a ideia de inspiração, dom artístico, etc. E, como a arte moderna rompe com essas estruturas tradicionais, trazendo, desde a ruptura com a figuração em direção à abstração até o questionamento do próprio conceito de arte com o dadaísmo, a presença do grotesco, do abjeto, a utilização de objetos prosaicos rompendo com as instituições artísticas e tantas outras tentativas de ruptura, tudo isso causa no grande público um estranhamento, um desconforto e uma sensação de distanciamento, e acreditamos que a arte participativa pode ser uma possibilidade de superar estas fronteiras.

Todo esse legado romântico que permeia o senso comum quando falamos de arte corrobora a hostilidade do público que geralmente considera toda arte que foge dos padrões tradicionais ou hermética e inacessível, ou desprovida daquela habilidade manual, emblema de virtuose que o artista, na condição de um gênio criador, deveria ostentar. É comum ouvirmos, diante de pinturas abstratas por exemplo, frases do tipo: “Isto até meu filho faria!”. Bourriaud nos diz que, em nossa sociedade ocidental, a partir da revolução industrial, ocorreu uma diminuição da necessidade de habilidade manual, ficando essa isolada em “uma espécie de reserva natural, a arte, a qual estaria separada das outras atividades” (BOURRIAUD, 2011, p. 13). Ou seja, a produção em série praticamente aboliu a necessidade de habilidade manual, ficando essa restrita à arte. Assim, o público em geral, diante de uma arte que reflete o cotidiano com suas mazelas e o vazio desse, tende a não compreender as propostas, chegando a negá-las.

A hostilidade do público em relação à arte moderna advém do fato de que ela reflete exatamente a miséria do cotidiano e a vacuidade de nosso emprego: gostaríamos de limitar a liberdade do artista a aptidões profissionais precisas, a habilidades e técnicas cuja sobrevivência nos tranquiliza. (BOURRIAUD, 2011, p. 12).

Assim, a arte moderna surge como um território desprovido de regras que, ainda hoje, desafia o pensamento normativo e o senso comum, desde as rupturas das vanguardas até as propostas mais contemporâneas, pois mesmo entre os próprios artistas e estudiosos verificamos, atualmente, questões colocadas no início da arte moderna que permanecem legítimas. Bourriaud6 assinala que um certo aspecto do programa da modernidade está encerrado, mas o espírito que o animava ainda é o mesmo. Por isso podemos afirmar, sem hesitar, que o emblemático artista Marcel Duchamp ainda é uma referência para a arte contemporânea, ou seja, algumas questões que permeiam artistas hodiernos ainda são as mesmas que motivaram os modernos. Por isso é sempre complexo encontrar os momentos de ruptura entre moderno e contemporâneo na medida em que se trata mesmo de uma transição o que estamos vivendo. Mas é possível identificar determinados aspectos dessa ruptura entre moderno e contemporâneo que são consenso entre os estudiosos. Pode-se dizer que a arte moderna se ocupa de questões meta-artísticas, voltando-se para si mesma, e a arte contemporânea abandonou essas questões em direção à própria vida, colocando as relações humanas como elemento artístico. Pode-se dizer também que a abertura da obra para dialogar com o espectador a partir das múltiplas interpretações possíveis e também para a própria participação do espectador são aspectos dessa transição. Uma questão que é consenso no ideário de Nicolas Bourriaud é aquela segundo a qual podemos afirmar que a arte vai abandonado, no decorrer da história, seu caráter de representação do real, deixando gradualmente de ser puramente contemplativa para ter no espectador uma espécie de coautor diante de algo em processo, lidando com seu inacabamento. A obra, nessa condição de abertura à participação do espectador, tradicionalmente passivo, tem agora como preocupação central a própria percepção do tempo real, pois o tempo do espectador se funde com o tempo da obra inserindo-o na obra e essa no espaço. O experimentalismo se torna uma máxima nesse contexto de novos valores espaço-temporais e, nessa profusão de dispositivos, o artista tem o desafio de subvertê-los, reinventá-los e, como colocou Agamben, profaná-los.



1  Segundo Agamben (2009), oikonomia significa em grego a administração do oykos, da casa, e, mais geralmente, gestão, management.

2  O conceito de “profanação” foi desenvolvido por Agamben em seu livro “Profanazioni” publicado na Itália em 2005. A tradução brasileira foi publicada pela Boitempo em 2007. (AGAMBEN, 2007).

3  Para muitos autores, os conceitos formulados pelo artista dadaísta Marcel Duchamp foram as principais causas para o início das transformações dos ideais de arte, o que trouxe como consequência a arte de vanguarda dos anos 1950, que antecipou várias formas de arte tecnológicas que temos hoje. Venturelli (2004, p. 28) afirma que “[...] isso se deve ao artista francês Marcel Duchamp, que no início do século XX situou o artista de uma maneira inédita no centro da arte, na qual se tornava livre para expressar, por qualquer meio que fosse, todo conceito relacionado à própria arte, ao cotidiano, a nós, ou ainda a si próprio, proclamou-se o fim da arte tal qual havíamos conhecido e acreditava-se que ela havia conseguido sua autonomia política, cultural e religiosa”.

4  Microcomunidade é um conceito que o curador e crítico Bourriaud utiliza para pensar a arte relacional e será abordado posteriormente.

5  “A priori” significa aquilo que é anterior à experiência. A partir da perspectiva kantiana, o “a priori” está ligado à razão pura. Kant concebe um pensamento filosófico que supera a dicotomia empirismo-inatismo e inaugura o criticismo. Rancière utiliza a expressão “a priori” não necessariamente em seu sentido epistemológico e muito menos em seu sentido metafísico no contexto kantiano. Compreende-se que Rancière vale-se da expressão “a priori” como uma metáfora para pensar a ideia de comum.

6  Bourriaud, no livro Estética Relacional, faz esta afirmação no início do capítulo intitulado “A Forma Relacional”.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad.: Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Trad.: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

______. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes — Selo Martins, 2011.

GROYS, Boris. Arte poder. Trad.: Virgínia Starling. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2014.

VENTURELLI, Suzete. Arte: espaço-tempo-imagem. Brasília: UnB, 2004.

Camila Buzelin, Lantejoulas no meu tédio, 2009-16, ação.

Camila Buzelin, Um final/ Salvador, BA, 2013, ação.