O grupo Muovere Cia de Dança Contemporânea completou 27 anos de trajetória em 2016 com o espetáculo que integra o projeto Webcoreô, contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014. Neste texto, apresenta-se uma análise sobre elementos que compõem o processo criativo da obra, além de outros aspectos inerentes à interface arte-tecnologia, seus hibridismos na arte contemporânea e seus resultados em construções estéticas inovadoras. Aponta-se, também, para o uso de um conceito denominado pós-mídia arte, evidenciado pela construção de obras que se articulam a partir da rede, mas que extrapolam seu campo de localização/atuação, através de desdobramentos materiais e da circulação para além do espaço da web.

É abordado aqui o fértil terreno interativo permeado por dispositivos tecnológicos, apresentando como principal característica a interface arte-tecnologia e o hibridismo de modalidades artísticas. Destaca-se as relações estabelecidas em rede entre corpo, tecnologia e informação com a intenção de abordar um cenário da produção contemporânea que utiliza, na composição do repertório em artes visuais, a introdução de movimentos do ciberespaço, produzindo, assim, novos sentidos do corpo a partir de metáforas do compartilhamento corpo-máquina.

Busca-se refletir em que medida a internet e os dispositivos digitais interferem no movimento do corpo, uma vez que Choking transforma o palco numa grande tela onde se mesclam o real e o virtual. De acordo com Jussara Miranda (apud JORNAL DO COMÉRCIO, 2016, p. 2), diretora da companhia e do espetáculo, “[...] o ponto de partida da criação se baseia na questão da dança moribunda. Trata-se da dança das bordas, ou aquela que atrai o olhar para as ocorrências fora da zona de maior atenção”. A noção é citada pela coreógrafa no artigo Processos endêmicos ativados por picadas, in Políticas Culturais: teoria e práxis, 2011. Este trabalho, indo do real ao virtual e vice-versa cria um lugar de reconhecimento e identidades que se apresenta como uma proposta de web coreografia. Com estreia recente em novembro de 2016, o espetáculo foi criado com extensa pesquisa a partir de questionamentos sobre as relações estabelecidas entre realidade e ficção na interação cotidiana com a internet e os dispositivos tecnológicos. Um projeto de dança contemporânea concebido para a rede e em que a relação dos artistas não se dá apenas pela tecnologia. Um cenário — palco teatral — é onde se desenrola uma sequência de episódios articulados em torno das relações estabelecidas pela internet e representados por três bailarinas com notável experiência na técnica da dança. Em Choking, três bailarinas, uma de cabelo ruivo, uma negra e uma loura surgem em cena trajando figurino composto de vestidos curtos com mangas longas, sendo um na cor verde, outro em roxo e outro em vermelho, com abotoamento frontal e que se poderia comparar ao estilo de um uniforme, pois têm o mesmo padrão e corte, somente diferem nas cores.



Aliando-se à coreografia muito bem engajada e ao universo das mídias, o cenário tridimensional é composto como se fosse uma tela em branco receptiva a imagens de vídeo projetadas sobre ele, originado em tempo real por meio de interações mediadas por um circuito de webcams instaladas nas coxias e nas salas contíguas ao palco, para onde as artistas se deslocam ao sair de cena. O palco, entretanto, nunca fica vazio, não prescinde da presença de um elemento essencial figurativo, o corpo humano e sua expressiva fisicalidade que, inevitavelmente, vai se integrar em um ritmo interativo com a tela projetada. O que se vê é um contraste de diálogos em representações audiovisuais, sons e imagens que perpassam características das relações humanas.

Em algumas cenas, determinadas bailarinas despem-se do vestido e encenam apenas usando malha ao estilo body; longe de ser vulgar, visualmente sugere a imagem da pele crua, nua, despida de artimanhas, invólucros ou rótulos. A identidade, a imagem do corpo feminino, apresenta-se mais próxima da sua origem nua, deixando sutilmente entrever pelas transparências do tecido o desenho do corpo da bailarina, seus músculos, traços e relevos numa visualidade que passeia entre delicadeza, sinuosidade e voluptuosidade. Em certos atos, atestam também a força mecânica e automatizada dos gestos duros e repetitivos, muitas vezes, levados aos extremos da repetição como que a enfatizar o movimento característico de um sistema gerado por alguma interface desenvolvida e controlada que é, simultaneamente, meio e mensagem. Tal imagem do corpo feminino deixada à mostra pode revelar propositadamente uma nova percepção, a da natureza das coisas e a sua essência — corpo humano e objeto, organismo vivo e matéria tecnológica, movimento natural e ação automática.

Um tensionamento é gerado quando em certas cenas, observa-se a impossibilidade da bailarina de atravessar a tela, expressada por movimentos corporais e gestuais de confronto com essa realidade, assim como, por exemplo, é perceptível a conexão da tela do computador com o usuário que está “do outro lado”, mas que configura uma fronteira/barreira física/material intransponível. Aqui reside um dos principais elementos dessa performance visual contemporânea — as projeções visuais em tempo real e virtual que configuram o ambiente de total imersão perceptiva e participativa por parte das bailarinas e, principalmente, dos espectadores que reagem aos estímulos que eles mesmo reconhecem enquanto interatores, usuários, ao se depararem com o paradoxo de estarem do lado de cá da tela e, simultaneamente, imersos nela. De acordo com Braga (2015), “as necessidades sociais e aspirações culturais provocam mudanças na configuração dos espaços. Da mesma forma, esses espaços modificados são fonte para a percepção de identidade do indivíduo e atuam também como fator modificador das relações sociais. Artistas e intelectuais influenciados pelas relações sociais, comerciais e tecnológicas compilam a nossa cultura e provocam reflexões sobre tais mudanças, apresentando em sua produção artística, a visão de mundo de sua época”.

A construção da percepção desse cenário é, entretanto, complexa, envolvendo um conjunto de peças coreográficas. A ambientação de palco como uma tela ora projetada, ora representada pela ação dos corpos automatizados das bailarinas, requer um constante exercício de fluxo na transposição dos elementos presentes no espaço bidimensional da tela-cenário para o tridimensional dos corpos-formas, e vice-versa. A fusão de instrumentos sonoros (voz e áudio gravado, músicas e textos ditos pelas bailarinas) soma-se à paisagem visual projetada das webcams, enriquecendo a composição visual e estimulando a experiência multimidiática. Braga (2015) ressalta, ainda, que a mudança tecnológica impacta sobre a vida e o modo de pensar das pessoas, que reestruturam sua visão de mundo a partir de novas formas de interagir, estabelecendo novas relações para a construção de seus espaços.



Isso também vale para os espaços do corpo, este corpo humano-máquina (des)territorializado em conexões múltiplas de sentido que hoje se impõem a todo tipo de experiências pessoais, as quais, por sua vez, passam pela incorporação do ato de mediar a vida. Tal espaço imagético hibridizado integra-se à arte contemporânea em perfeita sincronia, sendo também absorvido e transformado em visualidades que falam por si, configurando um remix de imagens, palavras, sensações, territórios. Com a apreensão da realidade otimizada pelo que se pode chamar de corpo tecnológico mediado, mediatizado, é que surgem propostas visuais, no seu espectro mais abrangente, de atuação artística na contemporaneidade. Nessa perspectiva, a tecnologia torna-se um vetor, e não uma finalidade, quando corpos em movimento estabelecem dinâmicas comunicacionais.

Ao longo do espetáculo, as coreografias vão se desenrolando como uma narrativa visual não linear em que as bailarinas expressam-se, por vezes, em padrões automatizados de caminhar, mover, gesticular. Em certos momentos, suas fisionomias parecem inalteradas, como se nenhuma emoção humana pudesse habitar seus corpos. O ato de calçar os sapatos, por exemplo, logo no início de uma das primeiras cenas, parece conter os movimentos naturais, pois a bailarina está de pé e tenta colocar um pé depois do outro nos sapatos, como um movimento à semelhança do encaixe de alguma engrenagem.

Durante todo o tempo em que transcorre a coreografia artística, há interação, na qual pessoas, principalmente mulheres, e filme/projeção foram usados como elementos de composição simultâneos em protagonismo e cenário. A partir de tais elementos, criou-se uma massa escultural em relação a um elemento arquitetônico real — o palco e suas limitações, fronteiras, o fundo, as laterais, a plateia — uma tela tridimensional onde se delineiam quadros em fluxo. A presença de três bailarinas mulheres também chama a atenção para a questão da exposição do corpo, da imagem, da identidade contemporânea, bem como para questionamentos históricos que vêm tomando forma desde os primórdios do movimento feminista. Desde a década de 1960, observa-se a concepção e a exibição pública de práticas artísticas que aliam, às representações das artes visuais, o corpo de bailarinos e as novas tecnologias. De acordo com Rush (2013, p. 30), “as revoluções social e sexual dos anos 60 encontraram expressão na arte que se afastava da tela em busca de ações que incorporavam o observador à obra de arte”, no sentido de conceber a própria ação como forma de arte.

Aqui é onde o corpo tecnológico construído no espaço físico também define a natureza da coreografia compondo a performance, pois as cenas transmitidas pelas webcams configuram e deixam à mostra lugares que não estariam visíveis aos olhos do espectador — espaços reais-virtuais que estimulam a percepção de que o desenrolar das cenas da dança é também um filme, projetado ao vivo diante do olhar da plateia.

Em determinadas cenas, podemos nos chocar com tanta estranheza na percepção da realidade crua, assim como somos capazes de rir do próprio sistema quando, por exemplo, surgem as protagonistas com seus dispositivos celulares para fazer selfies. A entrada em cena do popular telefone celular com câmera que possibilita fazer fotos à maneira dos autorretratos, além da aproximação que despertam com nossa identidade cotidiana, torna-se hilária à nossa frente quando passamos a assisti-la e a nos reconhecer, praticamente, como coadjuvantes do ato cênico. É com maestria que são dramatizadas e há uma boa dose de caricatura na expressividade facial que as bailarinas representam, incluindo manobras corporais igualmente rebuscadas e esdrúxulas, denotando a energia mecânica e psíquica empregada, em diversos momentos da vida cotidiana, em busca da tal imagem “perfeita” capaz de mostrar ao mundo das redes sociais como estamos nos vendo, sentindo e o que estamos fazendo.



Um detalhe visual importante que ressalta o hibridismo do espetáculo é a utilização do plano da parede (fundo de palco e laterais) com projeções que, por vezes, ocorrem em preto e branco com imagens captadas por webcams, à semelhança de um filme antigo. Por instantes ou enquanto perduram, elas nos remetem a um inquietante paradoxo: o de estarmos frente a frente com imagens do tempo passado, vivido, arquivado e a especificidade própria da projeção em tempo real, memória mediada no fluxo on-line, modo presente de atuação. Um espaço-tempo, passado-presente-futuro em constante retroalimentação. A utilização do filme em preto e branco também acrescenta uma camada de percepção (ilusão), sugerindo figuras e ações que parecem transcorrer em outro tempo. As cenas projetadas com imagens das bailarinas, fixadas nas paredes do cenário como uma paisagem em padrão retangular, sugerem também uma abertura na superfície, uma passagem para o que está do outro lado, ao mesmo tempo que parecem limitar a interação, pois não se pode atravessar fisicamente a efemeridade do virtual, na maioria das vezes, deslocando a atenção para aquela atuação virtual e a presença do corpo tecnológico da bailarina, também a contracenar no palco habitado por outra(s) bailarina(s).

Um momento importante que reflete o diálogo com o universo da internet, incessantemente reforçado no espetáculo, é quando entra em cena uma bailarina, e, ao som de uma gravação de áudio, ela vai reproduzindo o que dita um tutorial (elemento encontrado em inúmeros sites na internet) com uma série de passos a serem realizados para se aprender a dançar. À medida que o tutorial avança, a bailarina representa em movimentos e expressões faciais o conteúdo que, na gravação por mim realizada com o celular durante o espetáculo, conta com um minuto e trinta e dois segundos, e diz o seguinte: “Cuidado para não perder o controle e se machucar, domine aquilo que te suporta para alcançar a verdadeira virtuose. Esconda as eventuais dores e os músculos descontentes, pois são meros antagonistas do grandioso e chancelado Grand Écart. E assim termina nosso tutorial, curta nosso canal dançadeverdade.poa.br e fique atento às nossas novas dicas para legitimar a minha dança.” Segue-se uma breve pausa e inicia o que se pode entender por um novo tutorial, só que em um ritmo mais acelerado da fala: “Olá pessoal, hoje eu vou ensinar o tutorial oficial do Grand Écart, afinal, sem isso, você jamais poderá se considerar um bailarino profissional. Lembre-se: não tente dançar se você estiver acima do peso, nesse caso, visite meu outro blog sejamelhorsejamagro.com.br. Comece com um alongamento da perna que você tem mais afinidade, seja a esquerda ou a direita, não importa. Não tenha medo em manipular as partes envolvidas, mentalize apenas a forma desejada e o resultado final”. O tutorial segue ainda em um ritmo mais acelerado, fazendo com que a maioria das palavras se tornem incompreensíveis. Na sequência, ouvem-se mais dicas: “Pois ainda que você não tenha uma pele sedosa poderá utilizar creme hidratante, óleo de cozinha ou até mesmo aquela meia mais deslizante, mas, atenção: cuidado para não perder o controle e se machucar, domine aquilo que te suporta para alcançar a verdadeira virtuose. Esconda as eventuais dores e os músculos descontentes, pois são meros antagonistas do grandioso e chancelado Grand Écart. E assim termina nosso tutorial, curta nosso canal dançadeverdade.poa.br e fique atento às nossas novas dicas para legitimar a minha dança”.



Atualmente, usuários do sistema de rede estão em fluxo permanente, num movimento incessante de compartilhamento caracterizando um imenso corpo coletivo conectado. Aqui, assume-se a ideia de corpo como um conjunto de partes que nos torna indivíduo, e como sua interface entre eu e o mundo. O movimento de compartilhamento de estéticas em artes visuais é também revelado na dança e assimilado em atos, numa congruência física e virtual através do espaço cênico em cumplicidade com seus usuários — a plateia. As novas mídias, termo que denomina o aparato digital que envolve desde máquinas, computadores até softwares, programas e aplicativos, sem contar a própria rede de internet, permearam a vida das pessoas. No seu sentido mais complexo, instituições e diversos dispositivos sociais foram capturados para dentro da rede, o que gerou sensíveis mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e comportamentais. Para os historiadores de arte, já representa uma revolução na forma de ver, analisar e contextualizar a produção de obras visuais, o que potencializa a crítica e seus questionamentos sobre a estética contemporânea mediada pela internet.

No campo das artes visuais, mais especificamente, o contato físico da materialidade dos objetos e suportes foi substituído pelo movimento de tela e sua existência baseia-se, essencialmente, no compartilhamento. Características como temporalidade, presença, ubiquidade, simultaneidade integram as experiências estéticas, alterando códigos perceptivos nas pessoas. Os artistas não se limitam em utilizar novas mídias em suas obras, eles constroem novas camadas de percepção, novas investigações para o espaço-tempo conectado, inexoravelmente, aos espaços virtuais.

À frente de uma dança do virtual como metáfora enquanto estamos imersos nessa tela-palco, assumimos, novamente, o papel de usuários interatores de um sistema que nos instiga, pois que nos aproxima e afasta, atrai e desvia, concentra e desfoca nossa perspectiva por si só e a todo momento, induzindo-nos a questioná-lo. Após a inevitável interação em um espetáculo desse gênero, no mínimo, é possível desacomodar-se com a percepção de um quê de subversão em tal ato performático, misto de dança, teatro, arte visual, sonora e tecnologia — uma dissolução de fronteiras entre as modalidades artísticas e os meios de comunicação de massa. A internet é capaz, portanto, de gerar inúmeras composições híbridas, em que elementos são gradativamente incorporados às representações para, dialogicamente, conduzirem o olhar e a percepção do espectador como usuário do sistema das artes até um novo paradigma artístico instaurado no cenário contemporâneo.

www.facebook.com/MuovereCiadeDancaContemporanea/

www.institutoling.org.br/

BRAGA, Gisele Pinna. De pinturas murais às tecnologias eletrônicas: a busca para a criação do espaço híbrido perfeito. Revista Porto Arte, Porto Alegre: PPGAV/UFRGS, v.20, n.34, p. 21-38, maio 2015. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/PortoArte/article/view/62307

BULHÕES, Maria Amelia. Web arte e poéticas do território. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011.

JORNAL DO COMÉRCIO. Tecnologia e corpo, Jornal do Comércio, Porto Alegre, nº50, p. 2, nov. 2016. (Caderno viver).

MIRANDA, Jussara Pinheiro de. Processos endêmicos ativados por picadas. In: CALABRE, Lia (org.). Políticas culturais: teoria e práxis. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, p.137-145, 2011. Disponível em: http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2013/04/Politica-Culturais-Teoria-e-Praxis.pdf

PRADA, Juan Martín. Arte e internet. La red como campo de investigación para las nuevas prácticas artísticas. Course Staff. Disponível em: https://iedra.uned.es/courses/UNED/127/2016_T2/about

RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

WALLACE, Ian. What is post Internet art? Understanding the revolutionary new art movement. 2014. Disponível em: http://www.artspace.com/magazine/interviews_features/trend_report/post_internet_art-52138

Cena de Choking. Foto: Cris Lima/Divulgação. Disponível em: correiodopovo.com.br/ArteAgenda/Variedades/Danca/2016/12/604944/Espetaculo-Choking-tem-apresentacoes-nesta-sexta-e-sabado-em-Porto-Alegre

Cena de Choking. Foto: Cristina Lima/Divulgação. Disponível em: www.jornalnopalco.com.br/2016/12/02/muovere-cia-de-danca-contemporanea-realiza-apresentacoes-de-choking-nos-dias-09-e-10-de-dezembro/

Cena de Choking. As bailarinas Angela Spiazzi, Joana Amaral e Letícia Paranhos integram o espetáculo. Foto de Cristina Lima/Divulgação. Disponível em: jcrs.uol.com.br/_conteudo/2016/11/cadernos/viver/531656-tecnologia-e-corpo.html

Cena de Choking. Foto: Instituto Ling. Disponível em: www.institutoling.org.br/index.php/catalogsearch/result/?q=Choking