Em busca de regiões mais verbais
Em 1943, um grupo de soldados percorreu as salas do museu Hermitage, em São Petersburgo, acompanhados por um guia. A visitação poderia ser algo corriqueiro no cotidiano de um museu se não fosse um único detalhe: as salas estavam vazias e não continham sequer uma única obra de arte. Todos os quadros haviam sido levados para um abrigo seguro durante a Segunda Guerra Mundial, e as paredes do museu exibiam apenas as molduras dentro das quais antes havia pinturas de Fra Angelico, Rembrandt e outros artistas da história da arte europeia. O que havia de singular nesse evento era o fato de o guia do museu descrever minuciosamente cada obra, como se elas estivessem presentes diante dos soldados. O que antes era acessado por meio da visão estava agora condenado a ser presentificado por meio das palavras, evocadas pela memória do homem anônimo que guiava o grupo cerca de um ano antes da data em que os quadros seriam devolvidos ao museu. Esse fato, que permaneceu em segredo durante algum tempo, veio à luz com o trabalho do artista Melvin Moti, intitulado No Show, no qual o artista realizou, em 2004, uma instalação composta de um vídeo de 24 minutos em 16 mm, acompanhado de um livro contendo todas as informações de sua pesquisa nos arquivos do Hermitage.
O que nos interessa nessa história em particular é pensar como o artístico dessas obras destinadas à apreciação visual se transladava para o campo da linguagem. De certo modo, por meio das palavras que descreviam as obras, era possível tornar a vê-las. O intrincado nó entre os registros do visível e do legível seria um dado muito recorrente para a arte do século 20, notadamente com o surgimento de três campos do saber muito fundamentais, isto é, a linguística de Saussure, a psicanálise e a antropologia estrutural fundada por Lévi-Strauss. São essas três esferas — que caracterizam a modernidade do pensamento do século 20 — que causariam abalos significativos ao mundo da arte. De alguma forma, poderíamos afirmar que a linguagem tinha sido redescoberta e passaria a ter um papel preponderante para os modernos. Como os antigos homens que deixavam nas cavernas garatujas de uma escrita ainda insipiente, podemos dizer que a arte do século 20 guardaria mais similitudes com um certo primitivismo do que com os monumentos da cultura que marcaram o que se convencionou chamar de belas-artes.
A definição aristotélica segundo a qual o homem é um animal político (zoon politikon) e um animal falante (zoon logon ekhon) acompanhou a cultura ocidental por uma má tradução dos conceitos feita pelos latinos. A primeira expressão transformou o homem num animal socialis, ao passo que a segunda transferia a capacidade discursiva que regia os homens na pólis grega para o plano da razão, na qual o homem seria caracterizado como um animal racionalis. A respeito dessa querela, Hannah Arendt, que, ao longo de seu A Condição Humana, buscou demonstrar, em um certo sentido, o esvaziamento do campo político através da perda da competência dos homens em falar uns com os outros, chamava atenção para o nexo indissociável entre se constituir como ser político e habitar o campo da linguagem. Segundo Arendt (2010, p. 32):
Em suas duas mais famosas definições, Aristóteles apenas formulou a opinião corrente da pólis acerca do homem e do modo de vida político; e, segundo essa opinião, todos os que viviam fora da pólis — escravos e bárbaros — eram aneu logou, destituídos, naturalmente, não da faculdade do discurso, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no qual a preocupação central de todos os cidadãos era falar uns com os outros.
A partir dessa perspectiva, podemos salientar como o enfraquecimento de uma forma de vida calcada no estatuto da palavra que guiou a cultura ocidental, segundo Arendt, culminando na vitória do animal laborans sobre o zoon politikon de Aristóteles, tem como consequência o mal-estar na linguagem que perfuraria, como uma lâmina, as práticas artísticas do século 20.
De forma breve, podemos entender o aparecimento dos três campos supracitados como uma resposta para lidar com um mundo no qual o discurso já não tinha um lugar decisivo: por um lado, uma cultura que tinha perdido a faculdade de se articular, do outro, as patologias linguísticas que viriam para recobrir essa incapacidade. No que diz respeito à estética — esse campo que Duchamp nomeou de “retiniano”, fundado na primazia do visual sobre o textual —, essa nova situação que o jovem século experenciava teria efeitos críticos. O regime representacional no qual as imagens da arte outrora pertenciam entraria em colapso e seria ocupado paulatinamente pelo campo dos signos, da escrita e do (i)legível.
Da paixão pelo signo ao mal-estar contemporâneo: uma força que não pode ser liberada impunemente
O crítico e historiador da arte norte-americano Hal Foster, em seu artigo “A paixão pelo signo”, identificou essa nova situação, que se cristaliza na década de 1960, nomeando-a de “virada textual”. Nela, o debate artístico passaria necessariamente a conceber a obra de arte como uma forma textual. Como coloca Foster (2014, p. 79):
De seu lado, a versão pós-estruturalista do pós-modernismo empenhava-se em ultrapassar as categorias estéticas formais (a ordem disciplinar da pintura, da escultura, etc.) e as distinções culturais tradicionais (alta cultura versus cultura de massa, arte autônoma versus arte utilitária) com um novo modelo de arte como texto. E assim foi travada essa batalha.
No quadro teórico montado por Foster, a arte é revista a partir do pós-estruturalismo, da psicanálise de Freud já relida por Lacan e pela influência patente da linguística de Saussure, que destrinchou a linguagem em uma série de elementos complexos. A batalha a qual se refere o crítico norte-americano faz alusão a esse embate em um campo desconhecido no qual a arte passaria a se mover. Perdida a possibilidade de garantir significados transcendentes, como interpretar as novas obras de arte que se espraiavam no tecido da cultura?
No exemplo com o qual começamos este texto, buscamos detectar como o estatuto da palavra se tornaria preponderante para a compreensão do artístico, sublinhando com isso a invasão que a linguagem, cindida na relação entre significante e significado, causaria no terreno de muitos movimentos artísticos que surgiram no século passado. De acordo com Frederick Jameson (1991 apud FOSTER, 2014, p. 85-86):
Num primeiro momento [o da linguística estrutural e do alto modernismo], a reificação “liberou” o signo de seu referente, mas esta não é uma força que possa ser liberada impunemente. Num segundo momento [o da semiótica estruturalista e do pós-modernismo], ela continua seu trabalho de dissolução, penetrando no interior do próprio signo e liberando o significante do significado, ou do próprio sentido. Esse jogo, não mais de um domínio de signos, mas de significantes puros ou literais libertos dos lastros de seus significados, de seus antigos sentidos, gera agora um novo tipo de textualidade em todas as artes.
Segundo Jameson — uma referência para o argumento de Foster —, no século 20, a passagem da modernidade para a contemporaneidade teria sido atravessada não só pela desassociação do signo de seu referente, mas também pela desarticulação entre o significante e o significado. Essa total arbitrariedade gerada por esse processo teria criado significantes puros e implodido o sentido. Tal crise no regime representacional deflagrava novos rumos e outras convocações para a arte, e talvez o primeiro artista a endereçar explicitamente esse convite tenha sido Marcel Duchamp ao propor conduzir os espectadores para “regiões mais verbais” (DUCHAMP, 1966, p. 47).
Muito mais que servir para nos orientar e nos confortar diante da nova experiência enquanto espectadores e teóricos da arte, a paixão pelo signo, suscitada pela descoberta de um campo inédito, servir para compreender que nada é pacífico no terreno da linguagem. Com isso, o que viria a nos interpelar como sujeitos seriam os problemas da interpretação simbólica, na qual as obras de arte ofereceriam uma resistência, colocando uma barreira no saber: um ponto cego e insondável no qual fixamos o limite último do que se pode dizer sobre algo. As imagens da arte passariam a enodar-se nos interstícios da linguagem. Acerca dessa problemática Tania Rivera (2015, p. 67) comenta:
Em lugar de uma relação mais ou menos estável entre o que é representado e sua representação, a linguagem estabelece aí uma variedade de pontos (e contrapontos) de contato e de distância, fazendo da imagem um rébus, uma imagem-texto espessa, que revela, ao mesmo tempo que vela, o que representa. Ela deve, portanto, ser vista ou “lida” também de formas infinitas, interpretada sempre de forma limitada e em movimento, já que falta o código capaz de tornar possível uma tradução direta da imagem à palavra.
O passo inicial para esse momento no qual o texto passa a invadir o lugar do pictórico e do representacional teria sido a colagem cubista. Pela primeira vez na história da arte, o limiar entre o legível e o visível seria borrado. Ao imprimir elementos estranhos, como selos ou notícias de jornal, naquilo que se esperaria existir apenas enquanto imagem, os cubistas liberaram para as práticas artísticas novos procedimentos que cruzaram o campo problemático da linguagem com o registro visual. Esse choque provocado pelo encontro entre um signo linguístico e um visual pode ser enumerado como um dos primeiros traumas a que foi submetida a arte nos idos do século 20. Pablo Picasso teria aludido a isso ao justificar a invenção da colagem como uma pronta resposta para a estranheza do mundo que se descortinava diante dele:
Se um pedaço de jornal pode se tornar uma garrafa, isso nos dá algo que pensar também em relação a jornais e garrafas ao mesmo tempo. Esse objeto deslocado penetra num universo para o qual não foi feito e no qual retém, em certa medida, a sua estranheza. E essa estranheza foi o que nós quisemos fazer as pessoas pensarem porque estávamos totalmente conscientes de que nosso mundo estava se tornando muito estranho e não propriamente tranquilizador. (PICASSO, 1964 apud PERLOFF, 1993, p. 95).
Esse deslocamento ao qual Picasso faz menção — de um universo textual para o pictórico — é, como coloca Marjorie Perloff (1993, p. 108), a ponta de lança para o dadaísmo de Duchamp inventar o ready-made, ou seja, um objeto cotidiano que é deslocado de seu contexto original e alçado à condição de obra de arte, provocando um efeito de estranheza. Isso se deve não só a esse lugar estranho ao qual Picasso se dirige. Muito pelo contrário, podemos dizer que esse momento de ruptura está estritamente conectado a um processo que já vinha desde o surgimento da estética de Baumgarten, que tem, na Crítica do Juízo kantiana, sua formulação mais bem acabada. Desse modo, estranhar-se passava a ser cada vez mais uma possibilidade para habitar um espaço, o único que nos era legado. Antes de ver nisso um diagnóstico melancólico para a modernidade, podemos entender esse desamparo frente à falta de familiaridade com os conteúdos do mundo como uma autêntica potência crítica para a arte.
Agamben afirma, em O Uso dos Corpos, que a linguagem, ao mesmo tempo que se coloca como a dimensão mais própria e íntima ao falante, também pode ser considerada o aspecto mais estranho. Se por um lado já introjetamos a língua ao nascermos e ela se apresenta como algo intrínseco ao qual temos acesso, por outro são as falhas inerentes à linguagem que demonstram que toda entrada na cultura é permeada por um encontro problemático. Assim, para Agamben, a língua se apresentar como estranha ao falante funda a possibilidade de existir algo como a poesia, por exemplo. Para tornarem-se poetas, os homens devem fazer a experiência de se colocarem como estrangeiros em sua própria língua. Segundo Agamben (2017, p. 110):
Por isso, eles devem, acima de tudo, abandonar as convenções e o uso comum e tornar, por assim dizer, estrangeira a língua a dominar, inscrevendo-a em um sistema de regras ao mesmo tempo arbitrárias e inexoráveis [...]. Sendo assim, a apropriação da língua que eles perseguem é, na mesma medida, uma expropriação, de modo que o ato poético se apresenta como gesto bipolar, que cada vez torna estranho aquilo que deve ser pontualmente expropriado.
O gesto bipolar do poeta, que se apropria de sua língua ao mesmo tempo que dela precisa se afastar, pode ser estendido para outros campos. De forma análoga, podemos afirmar que artistas como Picasso ou Duchamp, que fundavam suas práxis criativas a partir de um estranhamento, efetuavam um gesto similar. Dessas primeiras atitudes, que atravessam o regime do visível com o legível, surgiria a radicalidade deste projeto: uma arte calcada na palavra ou aquilo que se convencionou chamar de arte conceitual. Logo, se a arte passaria a ser concebida como uma forma textual, na qual a apreensão de sentidos totalizantes se tornaria cada vez mais rarefeita, o embate com a linguagem passaria a ser norteado por um jogo tenso entre apropriação e expropriação.
De certa forma, talvez esse seja o problema fundamental que surgia naquele momento. Como afirmara Freud (1976, p. 336), “o eu não mais é senhor em sua própria casa”. Essa impropriedade da língua, que se dá à nossa revelia e da qual a psicanálise teria se ocupado ao desnudar um universo antes encoberto, punha a nu os sujeitos ao trazer à luz os sintomas, os atos falhos, os sonhos, os chistes e as pulsões que, varridas para debaixo do tapete e recobertas pelo verniz da razão e do esclarecimento, governariam secretamente a vida psíquica dos indivíduos.
Em 1986, Joseph Kosuth estampou as paredes da galeria de Leo Castelli com passagens da versão inglesa de A Interpretação dos Sonhos, cobrindo as frases com tarjas pretas numa instalação chamada Zero and Not. O trabalho do artista, um dos grandes nomes da arte conceitual, perfaz esse caminho no qual a linguagem se mostra tal como é: encoberta, opaca, sempre impondo barreiras às significações. Sobre o texto freudiano que se pretendia um programa a favor da decifração do inconsciente, o artista expõe a força inelutável com o qual se resiste ao simbólico. Em um certo sentido, o que a linguagem desde sempre comunica é seu limite, a tênue borda que cancela a afirmação dócil que visa sempre a uma compreensão de sentido.
Assim como o sujeito do qual falava Freud, os artistas não se sentiam mais senhores em sua própria casa. Construir uma nova morada passava a ser então uma tarefa fundamental para a arte moderna e contemporânea. Um edifício estranho, assombrado pelo mal-estar diante do poder mortífero da linguagem. Nessa crítica que se debate com o estranhamento e com a não compreensão do objeto artístico, o que nos interrogamos é como podemos alterar nossa posição de sujeitos — não mais o sujeito do conhecimento cartesiano que, diante do objeto, retém a certeza e se regozija por encontrar ali uma verdade. No século 20, é o sujeito do desejo, o sujeito que não mais se reconhece como senhor em sua própria casa, que se apresenta diante do enigma da linguagem como um analista diante das formações inconscientes dos pacientes. Estar diante delas não nos pede do saber algo mais.
Essa mudança de atitude, que angustiaria qualquer pensador positivista, não nos empalidece como críticos de arte. Ao aceitar o modo como as obras de arte resistem a serem interpretadas — como quando tentamos apreendê-las, obrigá-las a significar, a nos dizer algo —, nos situamos no espaço fronteiriço entre o saber e o não saber, lugar de pertencimento da própria filosofia, isso que sempre se coloca como um amor ao saber, no espaço fraturado da falta. Há uma perda irrevogável no campo do saber, mas essa perda completa a posse de maneira intensa e, citando Rilke, é, na verdade, uma segunda aquisição.
Quando alteramos a postura frente ao nosso desconhecimento e não nos resignamos em tolerar o fracasso da legibilidade da arte do contemporâneo — o qual, na conceituação de Agamben, é também o tempo que, estando próximo, está mais distante de nós por sua opacidade e obscuridade (AGAMBEN, 2009) —, podemos assumir o prazer em reconhecer, de saída, que a arte, constitutivamente, impede toda síntese simbólica e interpretação totalizante. Como coloca o filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman a respeito da interpretação analítica:
Por outro lado, a interpretação analítica geralmente não faz outra coisa — única atitude possível diante do trabalho do sonho ou do sintoma — senão “despojar as palavras de sua significação”, propor uma palavra apenas para “arrancá-la literalmente do dicionário e da linguagem”, um meio de “dessignificá-la” [...] É assim que a análise se confronta ao não saber como à exuberância mesma do pensamento (do pensamento associativo). Reconhecer o paradoxo do trabalho em ação no sonho ou no sintoma exige reconhecer que esse paradoxo atinge o saber — saber que buscamos, no entanto, ainda reter um pouco ou mesmo fundamentar. Dessa situação Lacan forneceu algumas fórmulas tonitruantes, ao dizer que o sintoma (grafado por ele em francêssinthome, em vez de symptôme, para imitar como que por mímica justamente a sobredeterminação) lhe deixava “embaraçado como um peixe fora d’água”, confuso como diante de um enigma “tal que não há nada a fazer para analisá-lo” até o fim — e que o analista só sabia entrar nessa confusão “reconhecendo em seu saber o sintoma da sua ignorância”; maneira de dirigir ao psicanalista a injunção paradoxal da sua ética: “O que você deve fazer: ignorar o que você sabe”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 209-211).
A máxima lacaniana, que nos convoca a abandonar a posição vantajosa do sujeito que sabe e que nos lança na coerção poderosa do não saber, nos faz virar as costas para o trabalho daqueles que “queriam saber a arte” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 212). Com esses intérpretes, foi inventada uma arte saturada de saber, uma imagem outra do que poderia ser a arte. Dos primeiros traços escritos nas pedras de velhas cavernas às manifestações estranhas das práticas contemporâneas, quando os conceitos do que poderia ser legitimado como arte se volatizam a todo tempo, estamos diante do mundo enigmático e não familiar da linguagem, onde tudo é instável. Quando nos colocamos diante de uma obra, não temos nada senão “limites a romper, certezas a perder, identificações a serem bruscamente e uma vez mais postas em dúvida”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 235-236).
O gesto crítico aqui assumido vem de uma breve lição teórica freudiana ao falar do comportamento dos obsessivos ao andar na rua esperando sempre que alguém faça uma saudação ao levantar o chapéu em cumprimento. Sabemos aqui que, para quem caminha e observa as imagens da arte, não há uma resposta dócil e apaziguadora. Quando estamos diante delas, o chapéu acaba voando por cima das nossas cabeças. A saída que proposta aqui é apenas falar, prazerosamente, sobre a impossibilidade de decifrá-las. Resguardar esse caráter misterioso da obra de arte é a principal tarefa intelectual a que se destina este presente artigo.