Para Mayra Redin, Claudio Ely e Edson Sousa

 

Abrir um buraco para não explodir

Então se abre aquele antigo caderno de notas de capa puída. Já nas primeiras páginas, se pode desconfiar da data que falta: seria abril? Ou talvez maio? De qualquer maneira, era outono, o inverno que se acercava, e, quando o frio se aproxima, há sempre a sensação de que a vitalidade diminui. Por isso, havia um clima de recolhimento e suspensão, de incerteza e de certa angústia naquelas páginas. Clima propício aos buracos. No cuidado de mantê-los em uma atenção — ou para aprofundar sua rasura —, havia referências a um tal Curso de Misturas. A superfície do caderno e de seus textos estava arejada, como se tivesse sido preparada, escavada, arada. Havia muitos escritos curtos, em fluxo contínuo, referências a imagens, a partilhas e a experiências provocadas. Entre os escritos, uma carta. Era remetida ao irmão, mas, como se podia constatar, nunca encontrou seu destino. Nela, a incerteza dos dias desenhava o buraco, a toca em que nos metemos na angústia de encontrar lugar a uma comunicação, a um comum, que anda precário hoje. Deve ter sido esse o pretexto para manter a carta escondida. Talvez por isso, “sua leitura levou alguns às lágrimas”, como ali se podia ler. Havia um incomunicável remetido e sufocado: o buraco — que por vezes escondemos ou no qual nos escondemos — era de todos.

Ao mesmo tempo, há notas sobre atividades no Atelier de Cerâmica que deixam entrever que se experimentava a confusão de criar objetos em um momento em que a crítica ao objeto era tão inflada e premente, tomada por leituras de Rosalind Krauss, Lygia Clark e Susan Sontag, que as citações deixavam transparecer. A vertigem era marcante. Essas peças em cerâmica eram levantadas no desejo de serem destruídas. Entre tantas, há notas sobre uma pronta para explodir no forno. Em retrospectiva, foi precisamente assim que se fez a imagem.

Segundo a descrição e os desenhos contidos no caderno, trata-se de uma pequena peça oca, um disco, círculo redondo ligado ou suturado pelas extremidades opostas, formando duas proas em cada lado, cabendo entre as mãos. Tem por vezes a forma de um ovo ou uma cabeça esticada, se assemelha a uma semente, a um peixe, outras vezes à forma de um elmo. Há notas de leitura de Italo Calvino (2005) junto a esses desenhos. E, como se essa fosse a forma que mais servisse no momento, como uma máscara, uma armadura, uma toca, uma cápsula protetora, a peça recebeu o nome de Cavaleiro Inexistente.

Mas eis que, sincronicamente, O Inominável (2009), de Samuel Beckett, no silêncio da leitura, sussurra alto demais, como um grito, paradoxo dessa palavra ali escrita: “é preciso fazer um buraco para que não exploda!”. É assim que está lá registrado:

Eu, sobre quem não sei nada, eu sei que meus olhos estão abertos por causa das lágrimas que jorram incessantemente. Ah! Sim, estou realmente banhado em lágrimas. Elas se agregam na minha barba e dali, quando não consigo mais segurar — não, sem barba nem cabelo, é uma grande bola lisa que carrego sobre meus ombros, sem traços, exceto pelos olhos, dos quais somente as órbitas permanecem. E, não fosse o distante testemunho da palma das minhas mãos, da sola dos meus pés, que eu ainda não consegui anular, eu com gosto me daria a forma, se não a consistência, de um ovo, com dois buracos em qualquer lugar para evitar que ele exploda. (BECKETT, 2009, p. 46. Destaque nosso.)

Se foi Beckett ou o professor de cerâmica alertando da explosão no forno, esse dado se confunde. Mas, ao fazer o buraco para não explodir a peça, fez-se também a imagem. Foi precisamente esse grito do buraco que transformou tudo em imagem. Isso porque foi justamente nesse momento que o buraco se tornou uma experiência da imagem, talvez ao modo como Deleuze (2010) a compreende, como esgotamento da palavra. Havia ocorrido um evento em imagem, tal como escreve Blanchot (2011). De qualquer modo, o objeto intitulado Cavaleiro Inexiste, o buraco aberto para que não explodisse e seu encontro com Beckett transformavam-se em imagem a partir desse encontro, desse acaso, ato falho, desse processo que envolveu a criação poética de um objeto através do jogo entre palavra e imagem. Naquelas notas, era uma palavra que lançava à imagem, e num giro, numa crise, a imagem sem cessar se enrodilhava novamente a uma palavra: palavra buraco. Esse jogo permitiu manter uma conversa posterior, que se tornaria uma pesquisa de mestrado, em que escrever e ver se distinguiam para, ao mesmo tempo, se fundirem no jogo de relações entre palavra e imagem.

Esse buraco aberto na superfície do objeto era também um olho. Se a peça modelada lembrava uma cabeça informe, então o buraco nele escavado era uma abertura não apenas para respirar, para não explodir, mas também para ver ou ainda para olhar além do olho: isso porque o buraco não abria precisamente um olho, mas um modo de olhar, que não diz, necessariamente, da capacidade de ver. Certamente, não era um olho que orientasse com clareza o olhar, que mirasse uma imagem, mas antes um olho que colocava a visão numa desorientação, que interrogava a imagem sem deixar de interrogar ao mesmo tempo o sujeito. Desse modo, em certa medida, esse objeto repetia o que Didi-Huberman enuncia em O que vemos, o que nos olha (1998).

Nesse caderno de notas, estava registrado ainda o contato com a terra, matéria que configura o objeto: o barro argiloso era modelado, secava, e depois, no ponto certo, era perfurado ou escavado. Gestos que exigiam da modelagem uma ação performática. Tocar o barro, agarrá-lo com as mãos e amassá-lo com os punhos colocava o corpo na dimensão do peso, da textura macia e opaca da massa vermelha, que exigia uma disposição física e não apenas gestual: exigia uma força. Carregar e modelar uma massa de barro constituía um esforço semelhante ao de cavar um buraco. Era a terra, nos dois casos, que se manejava entre as mãos. Uma terra que, ao mesmo tempo, remetia à delicadeza da natureza e à angústia e à incerteza diante dela. Meter as mãos no barro argiloso ou tomar a pá e cavar a terra para abrir um buraco, gestos que exigiam um corpo selvagem, corpo paradoxal: muito próximo da vida e da morte. Corpo que teria sido o nosso, que, insuspeitadamente, permanece presente. Corpo perdido no eterno encontro do si como estranho para si mesmo. Corpo utópico. Corpo erótico. Ele era perseguido em um perigo, que era também uma aprendizagem, como aquela da personagem Lóri, no romance de Clarice Lispector, Uma Aprendizagem Ou O Livros dos Prazeres (1998). Esses gestos eram, assim, lugares de uma aprendizagem de si, de um contato com um selvagem ou um animal que permanecia no corpo. Aquele buraco que dava a ver o Cavaleiro Inexistente, que havia sido perfurado e escavado na superfície já seca da argila, era a aprendizagem de um prazer: estar diante do perigo de existir sabendo desse selvagem, desse não saber. Esse selvagem lançava ao inominável. O romance de Beckett não havia oferecido apenas essa palavra buraco e a força paradoxal e inominável que ela carrega, mas dava a ver uma exigência ao corpo em sua transformação diante do abismo que é existir, diante da falta de forma. Exigência da criação.

Ainda, sem esquecer, — não como memória, mas como aprendizagem encontrada naquelas palavras — é necessário registrar que o Cavaleiro Inexistente e o buraco escavado em sua superfície também encontravam um lugar no mar. Havia essa casa que havia sido habitada por alguns anos, pequena e frágil diante do mar. Visão da sedução e da violência, do abismo diante do infinito do mundo e da existência da natureza, esse mar que é fonte inesgotável de imagens, uma presença, um quase ser. O mar coloca a existência em um perigo, água viva de incertezas, selvagem sedutor que atrai desavisados e, no descuido, engole suas presas fascinadas. É do mar que vem o canto das sereias que seduzem a uma busca incerta. É também o mar que encontra e denuncia a existência da terra, essa superfície que se escava, que se habita como toca. Morar diante do mar e ter ele como visada permanente cava um buraco. Viver nessa casa, diante do mar, talvez fosse permitir, aos poucos, que o mar se tornasse casa e abrisse no ser uma morada, um habitáculo, escavado como um buraco. Nesse habitáculo, nessa morada, o mar aparece como lugar do infans, como primeiríssima infância, como aquilo que vivemos com intensidade e força, numa presença jamais repetida, somente reencontrada enquanto gesto. Infância como experiência ainda invisível e indizível da imagem e da palavra, da vida e da morte. Raúl Antelo é quem observa bem: “o mar permite ver modos de ser porque ele próprio é um mais de ser, daí que a forma discursiva capaz de traduzi-lo, de reproduzir seu au-delà [seu para além], deva também ser um pas d’écriture [fragmento de escritura/não mais escritura]” (ANTELO, 2010, p. 86). Ou um passo de escritura: foi assim que, a partir do mar, nasceu esse tempo em que a escrita que se lia no caderno de notas encontrava seu fascínio, um passo em direção à palavra, um mergulho dentro do mar, ouvindo o chamado das sereias. E, assim, o corpo que escava buracos passou a escavar o papel, na vertigem incessante da escritura fascinada por essa imagem, presença de um abismo que nos coloca diante do infinito da palavra.

Uma obra ignorada

É preciso dizer que essa narrativa “se passa em uma época em que o estado das coisas era confuso”, tal como para Agilulfo, o cavaleiro inexistente de Calvino. Época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atrito com aquilo que existe estava inebriada por algo como uma consciência diluída, que, por acaso ou por instinto, tropeçava nessa palavra buraco. Este mapa de afetos que traço agora, neste ensaio, se arrisca a mostrar um trajeto que não foi percorrido como uma seta, em uma direção coerente, mas entre saltos, como uma superfície esburacada, e tem, nestas palavras aqui ensaiadas, uma nova dobra, um novo buraco na linguagem. Posteriormente, os encontros com o grupo do LAPPAP/UFRGS — Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política —, tomados também em notas nesse mesmo caderno puído, foram fundamentais às investigações conceituais que se desencadearam em torno desse processo poético.

A criação do objeto Cavaleiro Inexistente e as notas sobre o seu processo têm uma dobra em minha dissertação de mestrado (2013), que se tornou uma investigação sobre os processos de criação e de pesquisa em arte, bem como sobre a relação entre palavra e imagem na escrita sobre arte. No entanto, antes dessa dobra, esse objeto era na época uma obra ignorada, tal qual aquela de Frenhoffer, no clássico conto A obra-prima ignorada, de Honoré de Balzac (2012). Como Frenhoffer, todos os dias eu retornava a esse objeto, contudo não na insistência de o retocar, mas no perigo de o repetir. Fiz uma dezena deles. Repetidas vezes, o mesmo gesto que modelava, o mesmo buraco aberto para não explodir. Gestos que permitiam à vida respirar. Era uma experiência-limite, aquela da qual não se pode falar, mas à qual não se cessa de ir em direção, tal qual escreve Blanchot, esmiuçando o pensamento de Bataille (2007).

De alguma maneira, passei a experimentar um lugar como artista e escritora de uma obra ignorada, ainda que sem o admitir. De algum modo, cavalgava minha escrita como a personagem Bradamante, de Calvino, mais do que como Agilulfo: escrevia uma pesquisa que investigava os processos de criação na relação entre palavra e imagem na escrita, mergulhada em meu próprio processo de criação. Era como um fio de Ariadne lançado sem esperar o encontro com Teseu. Na escrita da dissertação, havia entrado nos labirintos de um mundo subterrâneo, esse mundo ao qual Orfeu nos leva, em busca de Eurídice, em busca da imagem. Havia me tornado labiríntica ao entrar nos crivos em que essa busca me levava, uma busca que era, então, uma crise, que me colocava girando atrás de palavras a uma crítica e uma teoria da imagem que se queria poesia: velha utopia ut pictura poiesis.

A partir de então, era essa obra ignorada que dava forças para falar da imagem. Por essa obra ignorada, era possível compreender que a representação havia entrado em colapso jorrando seus respingos: a imagem não está no lugar do objeto, assim como a palavra não está no lugar da imagem. Ambas precisam ser dobradas e esburacadas de forma a encontrar linhas de fuga a esse regime hermético da representação ao qual ainda por vezes s confinamos. O filósofo francês Jacques Rancière (2009, p. 36) — que, em seus escritos, mantém uma posição política em que não separa as diferentes linguagens artísticas, como literatura, artes visuais, cinema, teatro, etc., mas vê nelas suas potenciais relações — escreve n’O Inconsciente Estético que “tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas”. Isso significa dizer que não existem episódios, descrições ou frases que não carreguem em si a potência da obra, “porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem” (RANCIÈRE, 2009, p. 36). Nessa potência dada à linguagem, sabemos que a palavra e a imagem ganham, cada uma, seu lugar, mas ao mesmo tempo não param de nos remeter de volta a um ponto difuso, de encontro, de contaminação e de disseminação de uma em relação à outra. Lugar que faz com que as lógicas da representação, que separam e hierarquizam, entrem em colapso ou no mínimo em um estado de suspensão — ou de dissenso, como escreve Rancière — dado pelo processo de criação e não necessariamente pela criação do objeto, da imagem ou do texto, mas de todas essas instâncias ao mesmo tempo, entrelaçadas.

Pensando nesse sentido, posso admitir que o buraco feito no objeto era um detalhe ignorado na pesquisa de mestrado. Ignorado na época em um duplo sentido: como ato falho e como obra. Eu desejava escondê-lo, porque mostrá-lo seria perdê-lo. Mas ao final, o mostrando incessantemente como imagem inencontrável em meu texto, e insistindo nisso demasiadamente, me dou conta de que, sendo imagem, paradoxalmente ele já estava de antemão perdido para mim. Mas, como certas coisas precisam nascer duas vezes para existir, outrora perdido, ao tornar-se uma obra ignorada, esse objeto seguia potencializando meu processo de pesquisa, e, numa das tantas dobras que ele poderá ainda ter, posso ensaiar essas palavras que partilho aqui. Esse buraco escavado no objeto e também no corpo, num processo de invenção de si, abria um olho para olhar, um ouvido para escutar, conceitos para pensar e, especialmente, uma mão trêmula, arrebatada por essa experiência do impossível que é escrever sobre processos de criação, escrever sobre uma imagem, escrever sobre arte. Mas isso no sentido em que o impossível se encontra com o infinito: impossível que nos lança infinitamente à linguagem. Impossível que não paralisa, mas que movimenta sem cessar a palavra, lançando a linguagem ao infinito, como escreve Foucault (2009).

A partir dessa cartografia, desse pequeno mapa de afetos traçados ao acaso, sem um ato ou gesto que concentrasse a origem — mas que antes compunha uma constelação de encontros —, esse objeto e seu buraco surgiram como imagem e palavra de uma compreensão perigosa do abismo que é existir, do sentido que falta, que escapa e que precisa ser constantemente reinventado na relação com os dias, sentido que a arte sabe nos ajudar a inventar tão bem. Era uma imagem ignorada e imperfeita, esbarrando na busca da perfeição das imagens, e que, desse modo, investigava, de maneira subterrânea, o próprio processo de criação na relação entre palavra e imagem.

Iconoclastia ou da imagem imperfeita

Na pesquisa de mestrado que esse processo disparou, perguntava-me: o que pode a palavra, o que pode a escrita diante da imagem, diante da arte? Tal questão fez circular uma busca que girava atrás da compreensão do gesto que coloca aquele que pesquisa arte diante de palavras que tentam alcançar imagens. Então, para fugir do essencialismo, eu ignorava uma pergunta insistente: o que é uma imagem? Nessa crise, arrisquei assumir uma postura que se poderia dizer iconoclasta: não analisei imagens, não assumi como objeto da pesquisa uma imagem determinada, a obra de um artista, como se costuma esperar em pesquisas sobre artes visuais — o que pareceu quase insuportável não apenas para meus pares, mas igualmente para mim. Esse movimento contraditório e paradoxal significava um modo de resistir. Não resistir às imagens, mas às palavras. Resistência silenciosa, como estratégia para encontrar uma palavra. Não uma palavra justa, mas justo uma palavra: palavra esburacada. Isso porque se experimentava a sensação cristalina de que a palavra, diante da imagem, não faz justiça. Ela entraria antes numa errância sem fim, como escreve Blanchot n’O Espaço Literário (2011). Em busca de modos de abordar essa questão, investiguei o problema da autoria na arte em Foucault e Agamben, da origem, da percepção e da recepção da arte em suas relações com a palavra em Blanchot, das relações entre visibilidades e enunciados em Deleuze e Foucault. E, para se desfazer de qualquer pensamento transcendental acerca da imagem, era preciso ir em direção a essa imagem imperfeita de uma utopia que abre zonas temporais, a que se pode habitar hoje e a que pode existir no futuro, tal como escreve Russel Jacoby (2007). Nesse sentido, essa imagem que eu cercava era uma imagem imperfeita, porque ela assumia a escolha de uma possibilidade limitada, que impunha à pesquisa uma suspensão da imagem e que disparava, contraditoriamente, possibilidades ilimitadas à palavra, à imagem e à pesquisa dos processos em que elas estão envolvidas. Importava explorar um lugar de não saber, como suspensão do saber que conduzia à imagem ou como esse avesso do saber que a imagem produz e que, por isso, não estava escrito. Uma imagem imperfeita, uma obra ignorada, que continha a potência de questionar a própria imagem em seu processo de criação no interior de uma pesquisa sobre arte. De alguma forma, essa obra ignorada, essa imagem imperfeita era a própria possibilidade da palavra, contida no processo que desencadeou a criação do objeto Cavaleiro Inexistente. Por isso, havia ali ainda a sensação de que dar a ver qualquer imagem interromperia o fluxo das palavras e a errância que as movimentava. Mas especialmente, entregando a imagem, haveria o risco de lançar a busca a um plano representacional. Era O Inominável de Beckett (2009) sendo ruminado em mim em linhas que eu não podia conter. Eu, então, ainda guardava a sensação de que nominar a imagem e torná-la visível, trazer à forma, seria perder sua potência a um impossível ou impensável da palavra.

Por outro lado, questionar a imagem também era interrogar-se sobre o horror contemporâneo de um mundo cada vez mais dominado por imagens, onde esas parecem conceder a tudo uma forma reconhecível, um domínio terrível no qual tudo pode tornar-se imagem a ser veiculada e acessada, onde a imagem seja tomada como meio de representação de tudo que há no mundo, onde o sujeito seja feito à sua imagem. Projeto identitário e distópico. Blanchot inverte essa fórmula: o homem é desfeito à sua imagem. Como não ficarmos presos às imagens, ou seja, a esse projeto de detalhar todos os aspectos da vida cotidiana, de vigiar e ser vigiado por imagens, de ser obsedado e absorvido pelo desejo de consumir a que elas nos lançam? Esse horror a um mundo feito à sua imagem e semelhança é o horror a um mundo onde a arte e seu regime de dessemelhanças — para pensar com Rancière (2016) — ou de semelhanças informes — para pensar com Bataille e Didi-Huberman (2015) — perde lugar. Talvez frear a produção e veiculação incessante de imagens fosse um modo de, enfim, atingir uma imagem, um modo de pensar a imagem em sua temporalidade silenciosa, exigindo, por isso, um outro tempo da palavra. Se a imagem é processo, como escreveu Deleuze (2010), ela se confunde com o vir a ser, com o devir, com uma vida, um povo, uma voz que precisa ser inventada. Nesse movimento, desejar a vida como uma imagem perfeita é um jogo terrível de aniquilação do processo. Mas essas ideias envolveram um corpo que pesquisava farejando como um bicho, escavando como um arqueólogo, sem saber exatamente o que encontrava, mas admirando-se com o achado. Enfim, cavalgando como Bradamante em direção ao Cavaleiro Inexistente.

Se escrevemos sob o fascínio da imagem, como afirma Blanchot (2011), investigar a imagem através da palavra seria um modo de se interrogar sobre os processos de criação que envolvem a imagem, um debruçar-se sobre seu devir, o que possibilitaria encontrar modos de pensar a própria vida como obra de arte, ou seja, a vida como potência quando colocada em jogo através dos processos de criação. Não mais ver, falar e escrever separadamente sujeito e objeto — e, se quisermos, palavra e imagem —, não escolher entre um ou outro, mas espreitar o neutro. Em A Conversa Infinita de Blanchot (2010, p. 66), livro de permanência deliciosa e difícil, há esta frase intrigante: “toda vez que o que está em questão é a imagem, o que buscamos entender é a questão, mas não ainda a imagem, na qual desponta o neutro”. Haveria assim, na imagem, esse lugar que nos coloca em contato com o neutro, com o fragmentário, com aquilo que não se define dentro dos jogos de representação, mas que coloca a linguagem, a própria palavra, em uma zona de potência?

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Capa  Lilian Hack, Sem título, sem data, fotografia.