Sem dúvida, o mais pungente testemunho do espírito contemporâneo da obra de Paulo Bruscky é seu arquivo. Constituído como parte de sua obra, funde-se e confunde-se com ela. Trata-se de um arquivo vivo. Como o trabalho da memória, esse arquivo não é estático, mas dinâmico, está em constante movimento, é eruptivo e fabulador, mistura a história com uma forte carga afetiva da memória e reconstrói-se a cada dia. Desse arquivo partem os canais dos múltiplos diálogos sincrônicos estabelecidos com artistas de diversas partes do mundo. Em suas ramificações e injunções internacionais, reúne uma rede de artistas significativa para a arte contemporânea. Não resta dúvida de que, nesse momento, a história dos multimeios no Brasil preserva-se em arquivos como esse, que, labirinticamente, guardam a memória do nosso presente. (Cristina Freire, 2006, p.24).



Paola Fabres
Como se deu tua entrada na atividade postal, como participante da rede?

Paulo Brusky
Foi a partir da corrente que estava se estruturando na época. Como eu participava já do Poema Processo, que era uma atividade interligada à América Latina, cheguei a publicar em 1969 e 1970 nos jornais daqui, eu já tinha contato com [Clemente] Padin, com [Edgardo Antonio] Vigo. O Poema Processo ainda não era arte correio, mas ele criou muito contato entre os artistas latino-americanos, publicando trabalhos do Dadaísmo, do Surrealismo. Entrei em contato, também com Julien Blaine, da França, que inclusive esteve aqui em 1970 e eu acabei entrando com a corrente que vinha do Fluxus alemão. A partir de 1973, quando eu entro, estoura essa rede subterrânea pelo mundo todo, todo mundo começa a se comunicar de uma forma mais intensa.

PF
Tu auxiliaste também no processo de incorporação de novas pessoas nessa rede?

PB
Sim, mas de uma forma simultânea. Foi tudo meio junto. Logo Vigo e Padin entram também. E, quando se vê, tem um grupo grande trocando por todo o mundo. Era tudo muito espontâneo. Foi um movimento que não teve nacionalidade. Porque antes disso era tudo muito segmentado. Se formos pensar nos movimentos anteriores, na Pop Art, por exemplo, o grupo Cobra, o Surrealismo, todos eram localizados, em regiões específicas onde aconteciam as coisas. O próprio Fluxus começa em locais específicos na Europa e nos Estados Unidos. Mas é com a Arte Correio que isso estoura no mundo todo. Essa questão de nacionalidade perde a importância. Uma proliferação total, sem conceito de seleção ou premiação, sem análise de qualidade. Não tinha nada disso. Era uma prática inclusiva e coletiva.

PF
De uma forma imediata, então, passa-se a ter acesso a muitas produções, a muitas pessoas. O que te chamou atenção na época, o que te despertou como referência?

PB
Por exemplo, António Ferro, um dos precursores do happening, eu havia lido o livro dele no final dos anos 1960. Nós começamos a manter contato e ele inclusive participou de trabalhos que fiz por aqui. Nunca imaginei que eu teria um contato próximo com um dos caras que era percussor do happening. Ele era bem mais velho do que eu, mas participou de projetos que eu organizei aqui no Brasil, como a publicação Individual Coletivo, a exposição de arte correio, entre vários outros. O pessoal do Gutai, do Fluxus e John Cage, também me chamaram muito a atenção. O Falves Silva tinha feito uma exposição internacional, chamada Olho Mágico, em que ele mandou um postal para as pessoas interferirem. Eu convidei ele para vir à Recife, ele era de Natal, e eu trouxe a exposição. Aquele eu achei um trabalho muito bacana. Teve uma coletiva, também, do Instituto de Artes de Porto Alegre que gostei bastante, e trouxe aqui para o nordeste, com Karin Lambrecht, Maria Lucia Cattani, Mário Röhnelt e Milton Kurtz. Isso já nos anos 1980, mas desde os 1970 esses intercâmbios entre os artistas começaram a acontecer de forma mais evidente.

PF
Tu concebeste, ao longo dos anos 1970, muitas publicações periódicas como é o caso da Punho, Multipostais, Individual Coletivo, entre outras. Comente um pouco sobre essas produções.

PB
A Punho aconteceu no início dos anos 1970, com mimeógrafo a álcool. Nós saíamos pelos bares e entregávamos o stencil para todo o pessoal que estivesse junto, depois íamos para a livraria de um amigo da gente, chamada Livro 7, reproduzíamos tudo e no mesmo dia finalizávamos a revista. Essa livraria tinha um segundo andar pequenininho, tínhamos que caminhar totalmente abaixadinhos. A gente saia com uma dor na coluna, sabe? Porque nós não cabíamos em pé. A gente ficava apertado e escondidos. E tínhamos que tomar cuidado mesmo, porque tinha muita coisa contra o governo ali. Eles tinham um mimeógrafo que reproduzia todos os materiais da livraria e eles nos deixavam rodar a Punho lá. Então a gente ficava bebendo, depois juntava tudo e ia para a livraria rodar a cópia no mimeógrafo. E o nome Punho é por isso mesmo, era tudo feito à mão na hora. Como o mimeógrafo era a álcool, ele era muito barato, assim como a caixa de stencil que também era baratíssimo. Isso possibilitou a produção.

PF
Apenas o uso do mimeógrafo já era uma atitude de contracultura, certo?

PB
Claro. O exército, na ditadura, começou a obrigar que todos registrassem o mimeógrafo. Era mais perigoso, na época, se ter um mimeógrafo do que uma arma de fogo em casa. Então, eles começaram a confiscar. Porque eles queriam controlar todos os meios de reprodução. E era um meio alternativo. Na Escola de Belas Artes tinha um. Eu não cheguei a estudar lá, mas eu a frequentava. E a gente começou a rodar muitos materiais no mimeógrafo do diretório. Mas eu também tinha o meu em casa. Fiz muitos trabalhos com ele.

PF
Tu tiveste que entregar o teu?

PB
Não. Consegui segurar firme o meu. Eles não viram na época. Eles chegaram a prender alguns trabalhos meus, meu irmão até tocou fogo em algumas coisas quando eles entraram na casa de minha mãe, levaram algumas coisas minhas. Enquanto eles revistavam a casa na parte da frente meu irmão saia pela porta dos fundos enchendo o carro com os meus trabalhos, com os que ele achava mais perigosos ou que poderiam me comprometer mais. Então deu para salvar muita coisa. E o mimeógrafo faz parte de muita história de resistência no Brasil, desde a Geração Mimeógrafo ou Geração Alternativa de Resistência, que ultimamente tem se resgatado.

PF
Como se dava a circulação desses impressos? Vocês enviavam o impresso pelo correio?

PB
As primeiras edições tinham um perfil muito local. Circulava nas mãos de quem estava produzindo, entre a gente e mais algumas pessoas. Nós deixávamos algumas edições com o pessoal da Livro 7 também, em retribuição à Tarcísio, para que ele distribuísse entre algumas pessoas que interessasse. Depois as edições em ofsete circularam mais, havia mais números e enviávamos pela rede postal para todos os participantes. Mas essas edições voavam. Porque já não havia muitas e lembro que sempre acabavam logo em seguida. Mas dávamos uma para cada participante. Hoje são raras. Esse levantamento de encontrar as peças é muito difícil de se fazer. Por isso que guardo com muito carinho esses acervo de impressos. Como as Edições Pirata, muita coisa rodava de forma escondida dentro da Fundação Joaquim Nabuco. Depois de décadas que se montou o próprio espaço, que acabou publicando mais de duzentos livros alternativos, dentro da literatura marginal, embora publicasse também alguns consagrados como Rubem Braga, como Gilberto Freyre, mas era uma editora alternativa, hoje histórica dentro do movimento alternativo. Não tinha verba oficial, mas era pirataria que vinha de dentro da Fundação, fora do horário de expediente, mas usando papel e maquinário institucional. Ninguém sabia, lógico. Mas era muito comum isso no Brasil inteiro. Por exemplo, descobrimos que Wladimir Dias Pino rodava na universidade de Mato Grosso, muita coisa ele fazia nas instituições fora do horário do expediente. Imprimia nos finais de semana. Muita gente fazia isso. Porque era a solução, não se tinha dinheiro, era tudo controlado e tudo muito caro. Se você fosse fazer com uma gráfica havia perigo que te dedurassem, então havia essa necessidade de ser tudo muito camuflado. Da mesma forma, as tiragens tampouco poderiam ser muito longas porque, caso contrário, haveria gente desconfiando de papel sumindo. Por isso as edições eram pequenas e por isso as edições se tornaram raras também. Mas o gostoso é exatamente isso. Era como se podia driblar na época, com o recurso e com a estratégia que se tinha.

PF
Comente um pouco sobre a publicação Multipostais. Foi uma publicação que circulou por mais tempo, já que começou no final dos anos 1970 e prosseguiu até a década de 1990. Como se deu a organização desse impresso?

PB
Era uma revista que não tinha periodicidade. A maioria dos meus impressos não tinham uma periodicidade rígida. Quando sobrava algum dinheiro ou quando eu tinha condições de enviar material pela arte correio eu enviava convites para as publicações. Eu mandava o boletim de convite, explicando sobre a participação e pedindo que enviasse um trabalho, com cinquenta cópias desse mesmo trabalho, para entrar na revista. Eu enviava o convite com os envelopes de arte correio mesmo, e aí o pessoal começava a responder enviando seus trabalhos. Eu colocava uma data normalmente, “enviar até o dia tal”, para dar uma margem mesmo. Normalmente, eu dava períodos longos de tempo, para facilitar a participação do pessoal. E também para não acontecer de receber os materiais, montar toda a edição e depois receber mais material que acabaria ficando de fora. Mesmo assim, às vezes chegavam trabalhos atrasados depois do prazo e eu dava um jeito de incluir eles juntos. Porque a ideia era essa mesmo, era a coletividade. Era incluir todos e não deixar nada de fora. Muita gente da Alemanha oriental e do leste europeu mandava apenas os originais e eu os reproduzia por aqui mesmo, porque eles não tinham como xerocar. Muitos mandavam várias cópias em gravura ou em fotografia, mas dependendo da linguagem ficava difícil deles conseguirem reproduzir, então eu pedia os originais e fazia xerox das peças aqui no Brasil.

PF
Tu foste uma figura representante no combate contra a censura, contra o abuso do poder estatal. Toda essa política está bastante presente no teu trabalho e esse perfil crítico reverberou, também, em relação aos espaços institucionais culturais. Qual era o limite entre a oposição a esses centros e a conduta de boa vizinhança?

PB
Eu era contra esses espaços porque naquela época era tudo controlado por pessoas caretas. O tempo foi mudando e hoje se tem gente mais jovem, gente com outra cabeça. Mas naquela época eram pessoas da própria ditadura, de cargos políticos, porque em um governo de direita os cargos são dados às pessoas de direita. Até hoje é uma lástima que os cargos culturais sejam mais políticos do que verdadeiramente culturais. E claro, me coloquei contra isso e sempre fui muito claro nisso. Me custou três prisões, mas acho que contribuí um pouco para mudar. Acho que teve um pouco dessa colaboração. Porque muitos artistas receavam nesse sentido. Eu preferia arriscar. Expor minha opinião e bater de frente. Mas hoje, claro, hoje tenho outra relação com muitas instituições, os tempos mudaram, não estamos mais em uma ditadura. Mas ainda assim existe o perfil político no meu trabalho.

PF
Esses teus impressos-obras, além de possuírem um perfil independente, também trafegam por circuitos mais alternativos. Para onde se enviava esses materiais, além dos próprios artistas participantes?

PB
Enviava-se para os artistas e para alguns centros, para os poucos que existiam. Havia alguns centros que se sabia que manteriam e valorizariam o material. Lá eles permaneceriam. Centros principalmente organizados por artistas, assim como eu mantinha meu acervo, tinha também Romano Peli, de Parma, Itália [Centro Documentazione Organizzazione], tinha Klaus Groh, da Alemanha [International Artist Cooperation/Alemanha], havia centros na Nova Zelândia, havia centros no Japão. Em vários países se tinha alguns centros que mantinham esses materiais. A Itália teve muito apoio porque o partido comunista acreditou muito no movimento e financiou várias publicações. Muito material foi produzido a partir desse suporte. Nesse sentido, a Itália teve mais facilidades, não tantas facilidades, mas mais que os demais países de forma geral. Então, lá sempre foi o centro visual, para mim, mais importante do mundo, sobre esse tipo de publicação. Já nos anos 1980, eles começaram a guardar esses materiais. Porque hoje, por exemplo, os acervos de arte correio estão nas mãos dos artistas. Até porque na época nós queríamos permanecer nas margens. Por isso que não mandávamos tanto para galerias e museus, mas para esse perfil de centros de documentação de artistas, arquivos e acervos. Normalmente, locais nos quais os impressos possam ser manuseados, lidos, sentidos. Nada de se colocar luva, de se ver a distância. Porque hoje isso é uma grande discussão, se mantém em acervos, se vai para galerias de arte, se vai para a biblioteca, aí ninguém tem acesso a não ser que se coloque luvas e toda essa frescura. Então, isso ficou mais pelas mãos dos artistas mesmo. Pouquíssima coisa foi escrita a respeito. Poucos textos, poucos artigos.

PF
Além de remeter muito material, tu foste também um agregador de grande parte da produção alternativa desde os anos 1970, circulada principalmente pelo meio postal. E atualmente, segues recebendo materiais até hoje?

PB
Sim. Doações. Até hoje recebo muito material. Quando viajo, os artistas me dão muita coisa, porque sabem que eu arquivo e guardo tudo. Eu não acredito em outra vida, mas se existiu eu fui arquivista, sem dúvida alguma. Gosto muito de guardar tudo que eu recebo, também por isso que tenho muito material hoje que está perdido por aí. Muita coisa sumia, se perdia pelo caminho. Até hoje minha correspondência postal é a mesma. Na verdade, já me mudei muito desde então, mas deixo sempre a correspondência da casa da minha mãe, para evitar ter que atualizar um novo endereço a cada mudança de local. Assim, sempre recebo tudo pelo mesmo endereço. Hoje recebo menos do que antes, naquele período chegava muito material de toda a parte. E tenho tudo até hoje. Não jogo nada fora. Porque a grande obra daquela época, na verdade, era a informação. Era o que esses materiais continham. Esses materiais, esses impressos, essas publicações, tudo isso são apenas provas de toda a informação que circulava no período, esse era o ouro da época. E guardar tudo isso nos permite acessar aquilo tudo. A minha ideia é deixar isso tudo reservado para pesquisa, para se ter acesso daqui para frente, até porque muitos documentos se perderam com o tempo, são poucos os que guardam.

1  Entrevista com Paulo Bruscky concedida à autora, no dia primeiro de abril de 2015, em Recife/PE.

FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. São Paulo: Companhia Editora de Pernambuco, 2006.