Sobre a bancada, percebemos o jogo de transparências do papel de seda e do acetato que acolhe uma escultura em gesso, tirada do molde de chifres de um fauno. Algumas anotações, citações e fragmentos de ideias convivem com conchas, pedras, algas, corais, sementes, frutas. A luz é tênue, a composição remete à pintura. Séries de gravuras fixadas na parede indicam um estudo das formas naturais, animais, humanas, orgânicas.

Ao entrarmos no ateliê de Ana Kesselring,1 somos integrados a esse espaço de pesquisa e de experimentação, a essa coleção de tantos elementos coletados, colhidos, catados, moldados, impressos... Corps du Monde (Corpos do Mundo) é, assim, uma trama de processos, em que o próprio processo é objeto da artista. É um espaço de trabalho, de investigação in progress que evoca certamente o Lost museum de Mark Dion e a busca incessante por linguagens que tentam, pela arte, dar conta das formas e das coisas do mundo. Aqui, referências aos trabalhos de Kiki Smith são evidentes. Ana Mendieta, Berlinde de Bruyckère, Jan Fabre e Gabriel Orozco são nomes frequentemente citados pela artista.

Entre natureza morta e gabinete de curiosidades, o propósito é explícito: trata-se de identificar e reunir os elementos orgânicos e seus derivados artísticos, plásticos, em gesso, estampa, fotografia, desenho... Mas, de maneira distinta, roubada, desviada, Ana Kesselring não procura elaborar narrativas específicas ou dar conta das formas e da diversidade naturais do mundo, contentado-se em colocar lado a lado esses elementos. Manipulados e observados a partir de múltiplos prismas, eles são trazidos para a bancada do ateliê – extensão materializada do universo da artista, de seu íntimo – no qual são confrontados com percepções e representações de toda ordem: marcas afetivas, memórias corporais inúmeras, dores, alegrias, vivências.

As mãos que coletam, portadoras de tantos afetos, são aquelas mesmas que mergulham tais formas orgânicas para transformá-las em molde. Sejam elas polvo, chifres, batata-doce, fruta-do-conde, estrela-do-mar, essas formas voltam a se tornar volumes, agora em negativo, visto que são moldes, matrizes, contatos, sulcos, cavidades, índices. Do molde à fôrma surge então uma nova coleção de formas, de matéria outra, corpos ainda. Gerir para gerar, da coleção, do acervo, à produção, as etapas se seguem, no ritmo repetido da experimentação.

Esse interesse em levar a cabo as necessidades próprias ao processo criativo levam a artista a percorrer museus de história natural, textos de cunho científico, mas também escritos filosóficos, além das residências artísticas e de aprofundamento de técnicas, em São Paulo, Berlim, Paris, Lisboa. Paralelamente, Ana Kesselring não exclui de sua poética o fato de rever constantemente sua própria história, as referências, os personagens, os percursos, as mudanças. O processo é intenso e envolve estudos, anotações, pesquisa, elaborações, colaborações. Há algo que sugere o desejo de agregar, classificar, inscrever as formas, os elementos que ela seleciona numa taxonomia particular: a dela.

A artista parece não poder sucumbir à sonolência das normas e dos nomes. Também não bastaria renomear o mundo e se satisfazer das formas existentes. É necessário compor, propor, desnomeando-as e desordenando-as, à sua maneira, à maneira de Ana, para que deixem de ser coisas mundanas, ordinárias. E, para tanto, ela segue lógicas inventadas pela poética, divergentes, distintas daquelas que o mundo rege. Surgem, assim, outros ecossistemas e as tais novas taxonomias apresentam-se naturalmente.

Da forma à forma, das naturais às puramente plásticas, sem interrupção, Ana Kesselring acredita na continuidade daquilo que nos constitui, a matéria. Segundo essa lógica, a organicidade dos elementos e dos seres da natureza pressupõe uma topografia compartilhada – a linha que delimita um vegetal ou uma fruta é aquela mesma que traça a espiral da concha do caracol, as nervuras de uma folha, a aspereza da areia, do cascalho, as curvas, os sulcos, os poros, os orifícios e as superfícies do corpo animal. Por meio de múltiplas metamorfoses – ou por continuidade, simplesmente – a linha conduz de uma forma a outra, de um elemento a outro, do corpo ao corpo.

 

 

 

1  Ana Kesselring é artista graduada pela FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado em São Paulo, 2006). Realizou sua pesquisa de Mestrado na Université Paris 8, França. Atualmente, desenvolve pesquisa no Departamento de Cerâmica do Ar.Co, em Lisboa. Realizou exposições individuais no Brasil (Centro Universitário Maria Antonia da USP, Centro Cultural São Paulo, Museu da República) e na França (Cité Internationale des Arts, onde foi bolsista pela FAAP). Aliando sua pesquisa teórica à pratica, a artista desenvolve seu trabalho em torno das questões do corpo, seja ele feminino, animal, vegetal. Residiu, de 2006 a 2014, na França e vive atualmente em Lisboa.

Capa  Ana Kesselring, Corpos do mundo, 2014-2015, cerâmica esmaltada, dimensões variáveis. Foto: Henk Nieman.

1 e 2  Ana Kesselring, "Chifres", esculturas em gesso acrílico, 28 x 12 x 20 cm e 20 x 12 x 4 cm. Foto: Janaína Miranda.

3  Ana Kesselring, Da série “Corpotopias Negras (gravuras)”, 2011, gravuras em metal, tiragem 3 exemplares, 13 x 20 cm. Foto: Janaína Miranda.

4  Ana Kesselring, "Casal", caixa de madeira, linho e porcelana, 41,5 x 28,5 x 10 cm. Foto: Janaína Miranda.

5 e 6  Ana Kesselring, Corpos do mundo, 2014-2015, cerâmica esmaltada, dimensões variáveis. Foto: Henk Nieman.