É amplo o elenco de diretrizes para a fundamentação do espaço museológico que está entre os mais antigos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (e entre os de seu gênero, também do Brasil). Dar-se a ver, preservar, documentar, coletar, ensinar, promover, compreender, discutir, essas e outras são as funções da Pinacoteca Barão de Santo ngelo, no Instituto de Artes da UFRGS, em Porto Alegre, chamada por seus frequentadores simplesmente como a “Pinacoteca do IA”. O resumo mais simples dessa identidade tão rica é o dar-se a ver, vendo-se. A oportunidade acontece de tempos em tempos, em maior ou menor eficácia, mas nada no passado se compara aos esforços profissionais de apresentação e reflexão realizados nas últimas décadas. O período de máxima intensidade está entre 2014 e 2015, com a atualização do inventário geral, o incremento da coleção, a concretização de exposições do acervo da Pinacoteca em espaço nobre da Reitoria da Universidade e a elaboração e publicação de um catálogo geral de obras, processos que envolveram o compromisso e a dedicação de dezenas de pessoas, entre professores, estudantes e técnicos.
O primeiro ponto de apoio do tripé de estabilização de intensões – estabilização quanto a riscos de toda ordem (sobretudo a precarização de condições de trabalho), que indicavam a possibilidade de insucesso – foi a Pró-Reitoria de Extensão, através do Departamento de Difusão Cultural e sua equipe de técnicos e estagiários acostumados às contingências da produção e da divulgação. O segundo suporte foi garantido a partir da atualização do inventário geral do acervo, realizado por grupo formado por alunos bolsistas ou voluntários dos bacharelados em Artes Visuais, História da Arte e Museologia da UFRGS. E o terceiro ponto de apoio, o mais inquieto, foi a rede formada por professores e alunos (muitos!) do Instituto de Artes, a maioria do curso de História da Arte, que, estabelecido em 2010, abraçou a chance de demonstração de sua responsabilidade acadêmica e social.
O resultado mais imediato do esforço pôde ser visto na exposição Presença da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo nos 80 Anos da UFRGS, com o seu Módulo I aberto para visitação no Salão de Festas da Reitoria a partir de 25 de novembro de 2014. A seleção, com curadoria de Blanca Brites e Paulo Gomes, foi constituída de pinturas e esculturas de ex-professores da casa, a partir do acervo iniciado junto ao então IBA, Instituto de Belas-Artes, criado em 1908 (na grafia da época, “Instituto de Bellas Artes”). O Módulo II tem sua atenção dirigida para as obras em papel na coleção, prosseguindo em exibição até novembro de 2015, o término previsto, completando, assim, um ano de presença em espaço nobre da Universidade.
Entretanto, para muitos daqueles que convivem com o Instituto de Artes, talvez o empreendimento mais eloquente e gratificante seja a publicação dos dois volumes de seu catálogo, Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral 1910-2014, Editora da UFRGS, 2015. Trata-se de um projeto vigoroso, sugerido e iniciado no segundo semestre de 2013, com o propósito de editar um catálogo abrangente e circunstanciado, acompanhado das exposições. Em formato grande (21 x 28 cm, totalizando 688 páginas), com informações em profusão e fartamente ilustrado, o Catálogo Geral é o primeiro do seu porte na história do Instituto (e não acredito que seja imprudência supor que nossa percepção da existência da Pinacoteca venha a ser dividida em dois períodos: antes e depois desse empreendimento). Os trabalhos, que incluíram a mobilização do Acervo Artístico e transcenderam o espaço editorial, tiveram a coordenação geral de Paulo Gomes, coordenador do Acervo, que teve total apoio institucional e a companhia de seus colegas professores Ana Maria Albani de Carvalho, Blanca Brites, Eduardo Veras, Paula Ramos e Paulo Silveira, mais o suporte na comissão editorial de Alfredo Nicolaiewsky (diretor do Instituto de 2006 a 2014). Todos os integrantes do corpo de autores tiveram ligações diretas ou indiretas intensas tanto com a Pinacoteca como com o Instituto de Artes. Individualmente ou em dupla, escreveram os textos que compõem os volumes, especialmente o segundo, sendo acompanhados por pequenos ensaios realizados por um grupo de mais de quarenta estudantes sob orientação direta dos professores, a grande maioria oriunda do Bacharelado em História da Arte, mais alguns dos bacharelados em Artes Visuais, em Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. O expediente, conjunto de nominatas institucionais e de participantes ao final dos volumes, dá a real dimensão do envolvimento de todos, bem como do comprometimento das administrações da Universidade e do Instituto.
O primeiro volume é introduzido por apresentações históricas da Pinacoteca através de capítulos de Brites e Gomes (“A Pinacoteca Barão de Santo ngelo”, de ambos, e “A Coleção Didática da Pinacoteca Barão de Santo ngelo”, de Gomes), seguidos pelo inventário de obras, em apresentação editorial, realizado em atividades de estudantes pesquisadores, sob a coordenação de Marcelo Stoduto Lima, graduando em Museologia, também com texto no livro (“Inventário: apresentação”). O tomo é o catálogo propriamente dito, com relação de quase 1.500 chamadas, com descrição de autoria, título, técnica, formato, número de registro na coleção e informações adicionais, quando cabível. Os itens são todos ilustrados por pequenas imagens, na maior parte obtidas ou editadas por alunos.
O volume II é essencialmente ensaístico. Estrutura-se a partir de capítulos que buscam abordar o histórico da Pinacoteca em suas relações com a produção artística, a constituição de acervo, o ensino, a pesquisa, a extensão e outros aspectos que fazem dela um referencial no meio cultural do sul do país. A abordagem geral é distribuída, cronologicamente, em períodos históricos para os ensaios de Gomes (“Ensaio de compreensão de um acervo”), Ramos (“A Pinacoteca Barão de Santo ngelo entre a tradição e a modernidade – anos 1940 e 1950”), Brites (“Pinacoteca Barão de Santo ngelo em sintonia com seu tempo”), Carvalho e Veras (“Arte contemporânea no Acervo da PBSA: um olhar sobre a produção dos anos 80 e 90”) e Silveira (“A Pinacoteca do Instituto de Artes e sua identidade no século XXI”). Todos trazem ilustrações importantes, reproduzindo obras e documentos de época.
Se é verdade que o primeiro é o volume mais instrumental e enunciativo (como se declarasse, orgulhoso, “aqui está, este é o nosso acervo”), o diferencial talvez mais propositivo, singular e político do CCatálogo está no seu segundo volume. Cada capítulo é acompanhado por uma série de “leituras de obras”, com apontamentos sobre destaques da coleção, diagramadas em páginas duplas, texto de um lado e imagem no outro, em que o trabalho de um artista é apresentado ao leitor através da apreciação de um aluno colaborador do projeto, em notas individualmente assinadas. Os artistas e obras foram escolhidos pela representatividade na coleção, pertinência histórica, singularidade, particularidades técnicas ou outras variáveis, formando um amplo painel da qualidade do Acervo Artístico e da representatividade dele na região em que se encontra. Por causa das características cumulativas do conjunto, as apresentações são mais numerosas para períodos mais afastados no tempo, o que pode ser considerado normal, embora não desejável. Ainda assim, pode ser percebido o esforço de gestão de uma coleção que se quer atualizada e que busca sobrepujar os desafios sempre renovados de uma instituição federal de ensino.
Findada a etapa de produção editorial, e refletindo sobre os resultados de tanto empenho, parece justo pensar que a opção pela participação voluntária dos estudantes possa ser a contribuição mais simpática do projeto ao ensino e à extensão. Os alunos conviveram em proximidade com parcelas ou com o todo da coleção. Quando possível, tocaram nos itens, sentiram seus cheiros, suas fragilidades ou sua solidez. Buscaram referências bibliográficas nas fontes mais variadas, às vezes remotas. Estudaram os artistas e seus afetos. E, na medida do possível, superaram os receios da escrita. Todos os participantes podem afirmar que sabem naturalmente, e com cumplicidade, o que vem a ser um acervo artístico. O oferecimento de uma oportunidade tão significativa para a formação profissional dos discentes é mais que um gesto de confiança e expectativa: é a melhor de todas as aulas, é a demonstração e a prática da capacidade de pesquisa de um grande grupo. A construção do catálogo geral da Pinacoteca do IA, como proposição e como objeto realizado, confirma o êxito manifesto do prazer da investigação.