A consciência da inexistência de uma verdade absoluta e da impossibilidade de contar uma história da arte universal cerca a tese que, em 2010, deu à artista Dora Longo Bahia o título de Doutora em Artes Visuais – concentrada em Poéticas Visuais – pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com orientação da Dra. Maria do Carmo Costa Gross. Para contar sua história, Bahia constrói dois personagens-artistas fictícios, Marcelo Campo (1951-?) e Marcelo Cidade (1979-?), que serão o centro da experiência de arte disfarçada de narrativa (p.21) que ela propõe.

O objetivo principal de seu trabalho é investigar a natureza do artista contemporâneo e suas (im)possibilidades de agência, examinando qual é a influência do contexto de produção da obra para sua interpretação e averiguando os limites entre obra de arte, documentação, citação, falsificação e plágio.

Dividida em duas partes, Marcelo Campo e Marcelo Cidade, além do Prólogo e do Epílogo, a pesquisa foi editada em formato de livro e apresenta um universo no qual os personagens são fictícios e o contexto de seus trabalhos é real. A primeira parte, Marcelo Campo, é uma versão comentada da dissertação de mestrado da artista, defendida na mesma universidade, em 2003, e exibe os trabalhos de Marcelo Campo – fotografia, vídeo e performance – acompanhados do texto de Bahia que conta a história do artista-personagem. O período da produção se concentra nos anos 1969-1975, não por acaso, o mesmo da instauração do AI-5 no Brasil e os anos mais severos da ditadura militar.

Além disso, o contexto de Marcelo Campo também serve para a autora trazer à tona diferenças entre a produção artística do Rio de Janeiro e de São Paulo desse período. No Rio de Janeiro, através do fluxo de estrangeiros e da interação com ideologias vindas da Europa, crescia a intenção de borrar os limites entre arte e vida. Mesmo que com uma proposta transgressora e oposicionista, mantinha-se a ênfase no artista criador e despontavam nomes como Lygia Clark e Hélio Oiticica. São Paulo era marcada por um mercado de arte recém-formado, por uma crescente industrialização e desejo por objetos a serem comercializados, além de uma produção universitária e autorreflexiva que buscava eclipsar o autor. Não por nada, Bahia não cita exemplos de artistas paulistas.

As imagens dos trabalhos de Marcelo Campo e o texto que as acompanha aparecem cheios de interferências realizadas com lápis ou canetinha vermelha, o que sublinha a sensação de algo inacabado e que ainda necessita de correções. As fotografias em preto e branco e o texto datilografado confundem o entendimento do que estamos vendo, se são imagens reais ou fictícias, obra de arte ou documento.



Conforme Bahia, Marcelo Campo foi criado na intenção de personificar o artista ingênuo, que acredita ser capaz de subverter o mercado e agir na marginalidade, evidenciando o entrecruzamento entre a arte e a ação política. A autora defende que a relação entre arte e política é inerente, já que a arte afeta nossas ações, nosso comportamento e nossas crenças na comunidade, “conectando memória e porvir, sujeito e objeto, situação e existência” (p.17).

Parte da articulação teórico-crítica utilizada na construção dos personagens é explicitada no Prólogo. Do Campo é associado a Duchamp também por este se posicionar “contra uma obra de arte autônoma e resguardada de qualquer contato com o mundo real” (p.15), rejeitando a escola cubista. A atitude de Duchamp enaltecia a insatisfação dos artistas em relação à crescente transformação da obra de arte em mercadoria. A constatação dessa transformação fez com que os artistas se ocupassem de inquietações relacionadas a questões políticas e sociais, na pretensão de subverter paradigmas comportamentais, alterar processos simbólicos e imaginários e reposicionar o vínculo entre a arte e o mundo real.

Todavia, na perspectiva de Guy Debord e Gil Wolman (apud BAHIA, 2010, p.15), invocados pela autora, “a oposição à noção burguesa de arte e gênio artístico se tornou há muito um sapato velho”. Ao longo do século XX, características consideradas vulgares, obscenas e inusitadas utilizadas por artistas seguidores de Duchamp também foram absorvidas pelo mercado que ele criticava.



Na segunda parte, Marcelo Cidade personifica o artista insatisfeito e que se empenha em subverter as relações amigáveis entre a arte e o poder representado pelo mercado, “numa sociedade aprisionada num eterno presente que se autoconsome ininterruptamente” (p.19). Assim, ele seria uma versão de Marcelo Campo adaptada e transferida para o capitalismo tardio. Para Bahia, um artista não é diferente de um governante, um cientista, um professor ou um religioso, e precisa estar ciente das articulações de sua obra com as instituições de poder.

Neste segundo momento da tese a estética muda totalmente, contemplando o universo dos fanzines. Saem o jornal, as imagens em preto e branco e os rabiscos, entram o xerox, as cores, o pixo e a atmosfera industrial e operária de uma São Paulo dos anos 1980 e sua redemocratização “lenta, gradual, segura” e punk.



Bahia enaltece o uso de tecnologias industriais e digitais, a vulgarização das possibilidades de reprodução de uma imagem ou objeto e a impessoalidade da obra de arte, na qual a relação indicial que mantinha com o artista está extinta.

É interessante notar como, através da construção de seus personagens-artistas, a autora consegue abordar de forma provocativa uma realidade histórica que se desenvolve em contato com a ficção que ela conta e com o documento que ela cria. Dessa forma, problematiza a interação e a tentativa de inserção de seus personagens no sistema das artes, trazendo elementos para pensar o que fica de fora desse sistema, tanto no contexto da ditadura brasileira dos anos 1970, quanto no capitalismo tardio que eclode nos anos 1980 e 1990.

Mais interessante ainda é pensar que, para ser possível tomarmos conhecimento dessas inquietações, Bahia precisa falar de dentro desse mesmo sistema que está criticando. Assim, a autora não tenta se desviar da incoerência do mundo, mas a materializa em formato de tese acadêmica.

Dora Longo Bahia faz pensar que, na ausência de verdade absoluta, é cada vez mais difícil tomar decisões sem sentir que estamos vivendo uma mentira. Contudo é preciso insistir no risco das decisões, se não quisermos voltar a viver uma realidade só.

BAHIA, Dora Longo. Do Campo a Cidade. 2010. 284 p. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

Capa  - Dora Longo Bahia atua na vídeo-performance que simula um trabalho de Marcelo Campo. (Páginas 38 e 39).

Páginas 42 e 43.

Páginas 120 e 121.

Páginas 198 e 199.

Páginas 200 e 201.