Quando está em trânsito precisa se sentir em casa, quando se rende à rotina precisa criar asas. Talvez por influências astrológicas ou por construções históricas, carrega consigo um dilema: como pode fazer da ação de viajar uma casa, e da casa uma viagem? Uma mania de movimento se embate à necessidade do mantimento, à vontade do alento. A perambulante-atenta se deixa atravessar pela paisagem, mas também atua sobre ela. Seu corpo vai riscando novas cartografias no caminho e na memória. Seus passos, gestos e afetos traçam altos e baixos relevos. Carrega em si (talvez nas solas dos pés, na mente ou no coração) pedaços daqueles (lugares, coisas e pessoas) com quem se encontrou no percurso. Deixa também, em cada encontro, um pedaço afetado de si. Assim, vão se criando redes de afetos e saberes, em constante construção, sempre propícias a sobreposições e decomposições, como tudo que é orgânico.
corpo-casca (de cobra, ou não)
A história (ainda) vive nas entrelinhas do corpo de cada um. Corpo que sussurra um passado latente, corpo-presente, corpo-caderno, espaço de memória corrente. História mutável e mutante. Quanto mais passa o tempo e maior é o contato com a vida do lado de lá, maior é a necessidade de trocar. O corpo pede pele nova, feito cobra que cresce, feito encontro de rio. Eis aí o maior desafio: viver a mutação sem mudar a tradição? Toda criança vira adulto, ou será que não? Quanto mais eu cresço, mais entro em contradição. A história que contei ontem, hoje pede ponto de interrogação. Quem era desconhecido, vejo agora refletido na minha própria confusão. Quem são eles, quem sou nós? Amálgama de tempo, passado, presente e futuro em estado de presentificação.
-16/08/2013, nas águas entre São Gabriel da Cachoeira e Manaus-
escultura social
bolhas, cascas, rugas, dores
nós
tensiona, relaxa, amassa, modela, adiciona, subtrai
escolhas esculpem caminhos no corpo
quem escolhe?
Eu, também.
-19/09/2013, Porto Alegre-
sobre aquários e profundidades
Aquário flutuante, sistema dominante.
Água que boia sobre água.
Ilha cercada por um rio de possibilidades, vontades.
Desejos ensinados a nadar quadrado.
O vidro mantém a ordem, detém os peixes em seu estado, calado, privado, público-privatizado.
Quem tenta escapar nadando morre afogado.
A questão é perceber que as barbatanas podem ser asas.
Nesse mundo-água resistente é peixe que aprende a voar...
Mas os aquários são bonecas russas e até os rios andam sendo canalizados.
Um peixe que voa sozinho, foge;
mas o aquário se mantém, outros ficarão a ver navios...
É preciso voar junto. Cardume-ventania.
Quebrar os vidros, cair no rio e perceber o nado desgovernado.
A profundidade é um mistério!
-18/10/13, Porto Alegre -
el mundo mar-es
A vida é mais oxigenada fora do aquário. É preciso reaprender a respirar, a nadar, a errar. São muitas as correntes, os ventos, as vertentes. Há muito mais que peixes e algas nesse mundo-mar. Tudo parece mais integrado, mais casualmente organizado. Nada fica parado (por mais calado que pareça). Presas e predadores correm os mesmos perigos, não existe a proteção-ilusão do vidro. A comida não cai do céu. É preciso estar atento pra perceber o que é ou não de comer. Saber atacar e se defender, se juntar pra fortalecer. Montar cardumes transfamiliares, cruzar oceanos, misturar os mares.
-02/12/2014, entre Xalapa e Veracruz, México-