Satolep, 07 de junho de 2015

Cara Elida,

Escrevo esta pequena carta contaminado por suas palavras. Já é de tempos que isso me acompanha (ser contaminado por palavras, particularmente pelas suas, pelas quais procuro sempre). Desta vez estou aqui tocado, sobretudo, por duas, de origem francesa (talvez tudo tenha sido agravado dada a relação bastante próxima entre as duas, o que, é claro, potencializa cada uma). Ecoaram nos interstícios de certa Casa Paralela, em nossa cidade de paredes escaioladas: voir e savoir (a saber: "ver" e "saber"). Desde então fiquei pensando se, ao menos entre nós, não poderíamos escrever e escreler a segunda palavra grafada com cê-cedilha: como se, grafada com ça, çaber, pudéssemos fazer o verbo “saber” apontar (embora indiretamente, e atravessado pelo francês) para alguma particularidade que gostaríamos de chamar a atenção. E nos divertiríamos com expressões do tipo: “olha só isso”! ou “veja o quanto isso (ça) vai te permitir çaber”. Disléxicos como crianças que dizem apenas dá dá dá apontando o mundo aos adultos. Dêiticos, como nos ensinam Leminski e Barthes, desde o sânscrito, tha tha tha: é isso! é só isso o que importa! Como diria uma amiga comum: ver basta para çaber!

É com extrema e intensa admiração que observo tanto a produção de sua(s) forma(s), como seu lidar com as coisas e com as palavras. Suas ações, suas proposições, suas resoluções, fazem pensar em um tipo específico de “coisas verbo-visuais”. Neste curto espaço, que não pretendo ultrapassar, apenas insinuo o que penso: suas palavras são palavras ordenadas, pois que criam nova morfologia e apontam para uma nova sintaxe. Que exige o novo do homem. E lembro bem da palavra que deixei gravada nalgum dos prendedores da sua obra infinita: Você me dá a sua palavra?



Lá inscrevi uma palavra inventada, em língua materna: publiricidade (ela é parte de meu dialeto particular; todos temos nossos dialetos, sei que a senhora sabe). Sei, sabemos, o quanto é penoso esse lidar com palavras (para mim sempre a experiência é com “a pá que lavra”, como sugerem os poetas), do mesmo modo que com as coisas do mundo. Sabemos o quanto isso (ça) é exigente. Compartilho nestas páginas certa experiência pessoal, pois afinal é para isso que servem as trocas de cartas: muitas vezes quando volto para casa, sequer consigo me aperceber do eco das palavras em meu pensamento (como algumas vezes quase não percebo o reflexo do corpo que deveria se projetar na lataria lateral dos automóveis, ou mesmo nas vidraças e superfícies especulares das vitrines). O curioso nisso, entretanto, é que palavras e letras, e ainda determinados sinais de pontuação, têm incidido de tal maneira sobre mim neste meu corpo que muitas vezes não é possível me aperceber do vasto e do mundo, já que o vejo sempre tomado por palavras e letras e pontuações, e pelos tantos ritmos das variadas tipografias, e pela repetição dos tantos e infindáveis discursos (ufa!). É tal e tão grande essa profusão frente a meus olhos! Como se as palavras me perseguissem, como se acompanhassem meus passos, como se estivessem em todos os múltiplos trajetos cotidianos – aos quais qualquer cidadão comum percorre, regurgitando excessos.

Pois bem, digo-lhe finalmente o que houve hoje, enquanto voltava para casa (destaco: tal evento se deu logo após retornar do aprendizado com sua Gramática Intuitiva1). Reconheço que sou um sujeito titubeante. Veja só: hoje voltei para casa como se um lapso de memória me atingisse e eu não mais conseguisse retornar, como se meu trajeto cotidiano tivesse perdido a validade. Era como se, no curto período de quatro horas (o tempo em que me afastei e retornei, embora eu saiba muito bem que jamais alguém retorna), todas as construções, esquinas e placas informativas, tivessem ruído e da ruína brotado tudo novo: novas armações de metal, novas camadas de concreto, novas demãos de tinta, novas placas de vidro blindado, novas palavras sobrepostas, outras superpostas às sobrepostas. A sensação que tive foi como se, depois de acessar sua gramática, repito, o mundo tivesse sido reescrito. “Seria essa a ‘tarefa’ do artista: rever/reler o mundo”?, pergunto-lhe e a mim mesmo.

Depois de ter tido a honra de frequentar um eito do seu pequeno (e visível) território, só posso pensar que o artista é esse sujeito enfadado com as “verdades” da sua época (por mais romântica que seja essa visão, a senhora e alguns pares seus me dão a oportuna chance de afirmar isso!). Como se lhe atucanasse (em diversos graus de consciência e nem sempre tendo encontrado todas as palavras necessárias para usar) a necessidade de adaptação aos discursos totalizantes, hegemônicos, massificantes – os quais produzem nosso cotidiano. Como se o artista tentasse recriar a “verdade”, fazendo dela, seu modo particular de viver e de estar no mundo.

Sua Obra, cara Elida, a apropriação e a leitura de sua Obra, me leva a pensar que o artista é aquele indivíduo que não consegue externar de outra forma o que lhe abespinha, senão respondendo aos incômodos motivados pelo que vê, pelo que lê, pelo que ouve, pelo que fareja: ele – o artista/autor – “dá a ver” uma verdade particular. Como se, para conseguir sobreviver neste mundo (e igualmente para nos ajudar a mantermo-nos vivos nele), o artista/autor precisasse criar um novo mundo: seu Asteróide B612, sua Pasárgada particular, sua Macondo, suas Cidades Invisíveis,... Cabe a nós, habitantes deste mundo aqui, esforçarmo-nos para tentar acessar, por vezes através de uma gramática intuitiva, aqueles que são o pequeno território particular de cada um, aqueles que são os novos mundos erigidos por cada um desses artistas/autores. Artistas que, como a senhora, são não apenas antenas da raça, como sugere Ezra Pound, mas também nutrizes da raça. Sem hegemonia possível. Ufano-me!

Isso que digo aqui faz sentido para a senhora? O que lê do mundo Elida Tessler? O que ela deslê? O que ela Elida tece? Sei apenas que minhas palavras giram em torno de certa questão genuína. Isso (ça), o que me dá forças para continuar o trajeto: como se faria para tecer/ler o mundo à maneira de Elida Tessler?! Para ver o que ela vê, o que é preciso çaber?

1  Exposição retrospectiva de Elida Tessler, com curadoria de Glória Ferreira, na Fundação Iberê Camargo, ocorrida entre 07/06/2013 e 18/08/2013.

 Capa | Elida Tessler, O Homem sem qualidades caça palavras, 2007, 134 telas e 4 livros em 2 estojos, 130 x 90 cm (tela) e 37 x 12,5 x 22 cm (estojo), coleção MAC/USP (doação Banco Itaú via AAMAC). Fonte: Foto do autor (registro da exposição Gramática Intuitiva, na Fundação Iberê Camargo).

1  Elida Tessler, Você me dá a sua palavra?, 2004 – 2013, 5.306 prendedores de roupa com palavras manuscritas, dimensões variáveis, coleção da artista. Fonte: Foto do autor (registro da exposição Gramática Intuitiva).