Anjos ocultos e ângulos inusitados sob a forma de sucessivas imagens projetadas. Como vemos o mundo? Como o mundo nos vê? Registro de sua existência – o vínculo atávico da origem. “O tempo é nosso, o espaço é nosso. A composição e o enquadramento são nossos. Estamos no centro”, e as imagens que vemos brincam com a existência e com o tempo. Vão e voltam no tempo, as coisas se diluem no tempo, como as coisas se degradam; “exercícios de mudança de percepção”. Esticar a tela do sonho, transparecer no híbrido, a representação destes, e suas inter-relações: em suma, todas as nossas relações. Questiona; se desmancha e se confunde com resquícios de memória; memória-nativa, consciência lateral ou tangencial. O modo como se opera a memória, que embaça tempos, movimentos e espaços, articulando fios salvos do esquecimento, gradações de transparências, diluição de cores e contornos. Nossa percepção das coisas através de todas as perspectivas não é aquela de uma percepção propositiva ou claramente delineada, não é aquela referencial, mas de outra natureza. “Transpintar” a realidade, não é? Afagar com o foco, apagar horizontes, ressignificar sobras, contaminar purezas, pincelar com a luz, podia dar às pedras costumes de flor. Sufocar o olho otário, exercícios de “ver”, uma passagem – mesmo que imprecisa. Pois a que mesmo ainda pertencemos? Os seres vivos percebem seus ambientes subjetivamente, e como esses mundos percebidos de forma diferente, então, coexistem. Dos animais e dos homens, coexistência de mundos espaciais e temporais distintos – de existência ao lado de, e com, outra coisa – possibilidades de percepção e conhecimento. Somar por subtração, atiçar traições aos significados – o que poderia ser o outro lado das coisas. Mudança de ênfase. Foco; paisagem das relações; distinções entre o eu e o outro – paisagem reconhecível, porém indeterminada, de separação e contenção, negociada em sua diferença; contornos sobrepostos por imagens e áreas de ausência; espaços negativos que sugerem figuras. Preencher com faltas, evidência; instrumento de construção de pensamento apresenta o que outrora era velado; camuflagem; desvio, quase um fracasso, em vez de reproduzir a sobreposição. Acúmulo de imagens, liquefação, transparência, desnecessário repetir para esvaziar, fadiga gera difusão, imagem em transição, uma entre-imagem; e abre passagem; Estar presente no mundo através de imagens. Refúgios; projeção; canais; a imagem projetada, a imagem de cinema, “Tarkovski; a vida como um reflexo, a vida como um sonho”; a cada vez que se olha pela janela ou que se anda pela rua, a consciência descreve círculos, vai de frente para trás e vice-versa. A vida é um cut up.2

 

1  Título da exposição da artista Eija-Liisa Ahtila no Oi Futuro Flamengo (Brasil, 2015), com curadoria e texto de Catherine de Zegher, este utilizado como base para o trabalho.

“Escrito com” 3   William S. Burroughs, Catherine de Zegher, Paulo Herkenhoff, Manoel Friques, Luciana Paiva, Hélio Eichbauer, Eija-Liisa Ahtila, Ingmar Bergman, Manoel de Barros e Rosângela Rennó.

3  HERKENHOFF, Paulo. In: Miguel Rio Branco. Notes on the tides. Groninga: Editora Groninger Museum, 2006.

 Capa | Bruno Belo, Sem Título, 2015, registro fotográfico – processo (Fonte: Acervo do artista).

1  Bruno Belo, “Sobre assuntos Desconhecidos, natureza dos milagres e possibilidades da percepção”, parte da frente, 2015, colagem, 29,7 x 21 cm (Fonte: Acervo do artista).

2  Bruno Belo, “Sobre assuntos Desconhecidos, natureza dos milagres e possibilidades da percepção”, parte do verso, 2015, colagem, 29,7 x 21 cm (Fonte: Acervo do artista).