Não tenho o hábito do acúmulo. A mim me bastam as calhas desgastadas, as contas vencidas e três ou quatro imagens de minha barriga de criança – a mim me basta o acúmulo do verme. Por isso, não confio nos colecionadores – neles o tempo tange apenas a palma da mão, e o que guardam com tanto zelo um dia há de comer a Terra. O Apocalipse tem muitas formas: discos dos Beatles, dos Rolling Stones, da ngela Ro Ro, do Carlos Imperial, caindo – fossa abrupta, um coro de anjos – meteóricos; quatro bonecos mágicos de filmes de ficção científica revelando a Obra do Inominado; cédulas do dinheiro de todas as épocas, infestando as plantações. O esmero dos colecionadores vai esmorecer o mundo, já se disse. Para Borges, o colecionador é obra do azar, uma vontade dos deuses malévolos. Um dia seremos nós contra o sangue seco da coisa conservada. Mas não é esse o dia. Hoje, um pernilongo voou rente à minha perna. Depois de se alimentar de meu sangue mau, voou janela afora, durante o dia de luz oblíqua de outono, e cercou minha vizinha. Acossou-lhe a bochecha, e, depois de se alimentar de seu sangue mau, seguiu pela rua cinzenta. Picou o mendigo que transformava o lixo, e achou seu sangue, mau, bom. Adiante picou ainda um travesti que chorava e calculava os dias do troco, e o achou estupendo. Por trinta dias seguiu colhendo o sangue dos desgraçados, acumulando uma outra gordura, voando pesado. Às noites, os sonhos que guardara se libertavam em imagens. O pernilongo, não o sabíamos!, assistia a tudo em delírio. O travesti já não pensava a vingança do canivete, pois no pernilongo não o acossavam nem o punho do burguês, nem as leis do cartório. O mendigo já não recebia dinheiro, pois a mão estendida colhia com liberdade profana todas as coisas, como colhem tatuís as crianças na areia. Eu já não existia, pois minha vizinha não precisava se avizinhar, uma vez que o mundo era uma imensa planície deserta, onde podia desfrutar do silêncio de Deus. E, por não existir, não obravam em mim as larvas. O pernilongo em sonhos nos acudia a todos. Como o São Julião Hospitaleiro de Flaubert, o pernilongo guardava “escravos em fuga, camponeses revoltados, bastardos sem fortuna, todo tipo de intrépidos”. Há de chegar o dia, como aconteceu ao Santo, em que os desgraçados afluirão à bandeira do pernilongo, como um exército. De todos, é ele o verdadeiro colecionador. E por não durar mais que um mês, ele não é senão passagem, e onde acumulamos noites e manhãs, ele guarda a explosão do céu que condena à mudança. Em seu cinema mudo, somos apenas imagens, sem o ruído das palavras, sem o fracasso da escrita, e brincamos todos como se fosse o nosso primeiro dia. Aguardamos ainda o dia de sermos selvagens. Não se matam pernilongos, senão pela boca faminta.
Capa | Rafael Zacca, Acúmulo, fotografia (esq.) e Rafael Zacca, O colecionador colecionado, fotografia (dir.).