Poderia começar pelas coisas que não disse. Não que não sejam importantes, mas poderiam não ser. Não disse, por exemplo, que tenho um esboço de coleção. Era para ser secreta. É uma coleção de coisas encontradas nos bancos de trás de táxis. Por enquanto possui dois itens: um deles, uma borracha de cabelo, estou usando por esses dias, já que as minhas foram capturadas pelo reino ou buraco negro para onde costumam ir também os brincos sem tarraxas, as tarraxas sem brinco, os guarda-chuvas perdidos, as canetas quando precisamos delas, o pedaço final das borrachas e as promessas desfeitas. O outro objeto é uma foto 2x3 cm de uma mulher. Já tive vontade de fazer cartazes de “procurada” e outras piadinhas infames e sem sutileza. Acho que ela tem cara de funcionária pública bem-sucedida, é esse o paradoxo que alimento.
Alimento ainda mais minha insatisfação com o fato de não poder nomeá-la: presumo que não deve ser bancária, não deve ser dona de casa. Bancária não deve ser, só porque prefiro que não seja – já que tenho essa escolha. Não é bonita, mas sorri bonito. Ela não tem cara de quem tem muita imaginação. Suponho isso pelo modo como os cabelos simplesmente escorrem ao lado do rosto e como veste uma roupa que parece de secretária. Não entendam mal, gosto de roupa de secretária. Só não vejo no que esse texto interessaria a outra pessoa, além de, talvez, à mulher da foto... como também não vejo como esses objetos interessariam a outra pessoa. Talvez a ideia de coleção seja essa mesma: justificar o que nos toca, apesar do desinteresse alheio.
Em um dia de aula na Casa M1 encontrei uma palheta no banco da sala de projeção, pensei em inserir esse objeto na coleção, mas para isso precisaria de uma boa justificativa museológica, ou no mínimo uma curadoria ousada. Mas é só uma coleção de pequenas coisas sem importância. Não as coisas sem importância de Manoel de Barros, que ele pega pela poesia e torna quase sagradas. Não, são essas coisas de gente de cidade, retrato em vez de pedra, palheta de músico ou aspirante em vez de pássaro, borracha que já nem é mesmo feita de borracha.
Me importa duvidar da importância das coisas, ficar amiga íntima de Manuel Bandeira, que sabe bem fazer escolhas, e as coisas por encontrar. As coisas que eu dou importância, mas podem não ser tão importantes: as balinhas do Félix Gonzáles-Torres e seus dias cinzentos, os tantos anos de solidão de Garcia Márquez, as delicadezas de Mira Schendel. As palavras escritas em momentos calados, o silêncio criado por um desenho.
Procuro entender as relações entre a expectativa e o encontro. Do tempo em que trabalhava como mediadora de exposições de arte ficou a percepção da ansiedade por pérolas, por achados significativos em meio aos objetos de arte. Porém não notei a disponibilidade dos buscadores de coisas, a persistência de um Indiana Jones, poucos pareciam ter a paciência necessária para um entendimento, uma intimidade. Buscamos pérolas, mas não nos permitimos o tempo das ostras.
O cartaz infame agora informa: “procuro encontros fortuitos com objetos perdidos!”. Vou formando uma coleção aparentemente sem sentido maior que continuar tentando organizar o mundo: se antes a impossibilidade de afirmação daquelas grades no tecido delicado, minha pintura, hoje coleciono inutilidades passíveis de alguma classificação, que ainda não sei. O encontro com outra foto, ao descer do ônibus - agora 3x4 - com um nome escrito atrás, Clarice, talvez possa ser uma pista. Em “Água viva” outra Clarice fala “É como saber arrumar flores em um vaso, uma sabedoria quase inútil” (LISPECTOR, 1998, p.63). Quase inútil.
Falta ainda, para fins de catalogação oficial, fotografar as fotos, a palheta e a borrachinha de cabelo, que já arrebentei com o uso, com uma luz mágica, como a do lugar para onde eles vão, junto das desilusões e das mágoas esquecidas. O problema é que as mágoas, como as canetas, as borrachas e outros objetos perdidos, as reencontramos procurando outra coisa, como as palavras para este texto.