Caro Walmor,

Escrevo-te às teclas, numa tentativa de refrear os garranchos que certamente imprimiria no papel, debuxo de escrita motivada não pelo não contubérnio com a caneta ou sua nutação caligráfica, mas pelo açodar das ideias, pelo estugar daquilo que matuto, rumino, e, aqui, entre decalques tipográficos, confesso. Através destes tipos, acelero minhas ideais e garanto a evasão dos signos, estanco o transbordar sinonímico, a perda dos insights capazes de num instante a tudo elucidar, em pura luz. Minhas mãos e dedos antecipam (e mesmo me asseguram d’) aquilo que diria em viva voz.

Não é por um acaso que toco na relação entre pensamento e boca e mãos e dedos. Irrompe, já que me acompanha sempre essa espécie de carta na manga que levo sempre comigo, certa correspondência do prezado Sr. André Leroi-Gourhan (duvido que não tenhas ouvido falar desse grande homem!!), que tive a boa ventura de recolher e manusear e folhear e ler. Nela, esse grande homem se referia a outro, para ajudá-lo na melhor expressão de suas ideias. Esse era o Sr. Gregório de Nissa, homem pregresso, que, entre os séculos III e IV, observou e anotou no seu Tratado da Criação do Homem que,

foi antes de mais para a linguagem que a natureza acrescentou as mãos ao nosso corpo. Se o homem estivesse desprovido delas, as partes do rosto teriam sido formadas como as dos quadrúpedes, a fim de lhe permitirem alimentar-se: o rosto teria uma forma alongada, adelgaçada na região das narinas, com lábios proeminentes, calosos, duros e espessos, a fim de arrancar a erva; teria entre os dentes uma língua diferente da que tem, carnuda, resistente e rude, a fim de malaxar os alimentos juntamente com os dentes; [...] Se o corpo não tivesse mãos, como se formaria nele a voz articulada? A constituição das partes que rodeiam a boca não estaria de acordo com as necessidades da linguagem. O homem, nesse caso, teria sido obrigado a balir, a gritar, a ladrar, a relinchar, a berrar, como os bois ou os burros ou a emitir mugidos como os animais selvagens. [...] a ausência de intervenção da mão está de facto compensada por uma especialização facial de modalidades extremamente variadas [...]. (NISSA, 1984, p.40-41).

Não é difícil, a partir disso, chegar à conclusão de que gestos primordiais como alcançar, arrancar, rasgar e repartir o alimento, por uma insuficiência da boca em efetuar essas ações integralmente (etapas que facilitam a ingestão de alimento), parecem carregar consigo indícios da gestualidade que, posteriormente, não apenas recolheria o alimento, mas talharia seixos e geraria armas e, mais adiante ainda, alcançaria as primeiras faíscas de fogo. Então, caro Walmor, permitas que me dirija a ti assim, depois de tudo o que me ofereceste com tua obra-mostra Memento Mori, eis aqui minha pergunta: são também deste mundo, aí avistado por Nissa e por Leroi-Gourhan, os seres aos quais nos expões? Mundo que, a um só tempo, é passado e é futuro, degradação e potência?

 

Pois que a esta altura posso te confessar, caro Walmor, em nossa dicção que permite a intimidade e o respeito, a cada obra tua que me chega (da qual chego perto, a qual me envolve, e me toma), é em João Cabral que encontro algumas palavras, algum mínimo conforto. Ao estar em tua obra, ao frequentar tua obra, posso com ele dizer que “vejo-a aqui a meu lado. A poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo nesse momento?”.1

Pois há nela, em tua obra, uma experiência no plano da escala, frente à qual me faltam palavras, já que é meu corpo todo que a percebe. Sei que Borges é outro desses geniais pensadores a nos dizer ser a literatura uma experiência estética – que se resolve no nível da escala. Mas eu não queria apenas repetir esses geniais pensadores, queria ser capaz de eu mesmo encontrar minhas palavras. Por enquanto não as tenho e fico aqui a te perguntar e perguntar.

Vejo tua obra e percebo nela enquanto a olho, enquanto me mantenho nela, o resultado da procriação, mas obtida pela cópula entre seres não da mesma espécie, talvez mesmo de seres com características complementares, até opostas. Os pequenos rebentos, em suas cúpulas, são seres capazes da superfície e das profundezas, capazes de rastejar e de caminhar, de nadar e, ao mesmo tempo, são seres capazes do voo, são seres vilosos e plumosos, ou ainda escamosos e vilosos, ou escamosos e plumosos, em tal jogo de ser e não ser que, menos dialético e mais inclusivo, mais uma vez encontramos nas sutilezas da poesia cabralina, na frequência dos poemas emparelhados (como, por exemplo, entre “O Mar e O Canavial” e “O Canavial e O Mar”), ou nos imbricamentos que tanto abroquelo: entre “borracha” e “pássaro”, (destaco-os aqui por suas materialidades tão complementares – me parece a melhor percepção – à materialidade com a qual desenvolves tua poética). Como vês, novamente é à dicção da poesia de João Cabral que me remetes:

A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.

A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.

Entre monstros feitos
a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.

Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar.2

Como bom interiorano, e naturophilo, confesso-te reconhecer, aparentemente, características pontuais desses teus complexos e delicados seres (espécimes raros extraídos d’algum universo particular). Mas é num repente que me torno pávido e me rendo ao prodígio colossal dessa fauna obducta. Esses teus serezinhos são tão íntimos e, igualmente, tão ocultos, por tão inomináveis – quase consigo dizer o que são, mas, no último instante, apercebo-me que não são bem aquilo. Que mundo esses entes aparatam? Seriam vaticínios d’um mundo ignoto, relatos da semota Pangeia ou organismos residentes nalgum arquipélago propínquo a Utopos?

Assim, meus olhos contemplam espécimes indomesticáveis, indomáveis, intratáveis, inabordáveis, intangíveis, num trompe l’oeil biológico e estético.

Pergunto-te, meu caro Walmor, bem como pergunto a mim mesmo, como desvendar um mundo tão improvável? Ouso dizer: apenas através da linguagem! Esta cuja ordem tanto nos tapeia se aceitamos o que dela dizem os mais complexos pensadores e os mais sutis escritores, aqueles que não almejam certezas, mas valorizam a ilusão do movimento. Caberia a nós, excursionistas neste mundo, recriar (através da linguagem) a vida e seus habitantes, num universo possível, cujos indícios, enfim, és um dos mágicos a nos exibir?

Talvez Roland Barthes tenha lido Leroi-Gourhan, (se tiveres essa informação te peço genuinamente que a confirmes para mim!!, que ando já há algum tempo tão contagiado pelo pensamento da antropologia para pensar a vida cotidiana que já nem sei se invento influências ou se as li em algum lugar), o que permitiu a ele aquela tão delicada formulação, sobre a palavra, o beijo, os lábios dos amantes,... coisa da qual lembro, sempre dizendo oxalá, associada à evolução de nossa espécie. Tudo isso me aturde e encanta, e a estes dedos que trotam como pernas e braços de aranhas a tecerem suas teias, seus brocados, que tecem este texto, erigido e espessado a partir de decalques tipográficos, virtuais.

Tenho te agradecido tanto, caro Walmor, aqui ao longe, que hoje me animo a te escrever. Retórica e metalinguisticamente digo: sei que a função fundamental da crítica é pôr em crítica (leia-se: por em crise!). Mas aqui, nesta correspondência, nesta troca entre fraternos, ouso dizer: espero que minhas dúvidas sejam puro elogio à tua Arte. Espero contribuir: “pôr em crise” a tua produção, te dizendo parte do que ela me faz pensar, me faz duvidar. Imagino que a tua vida na cosmopolita São Paulo, certamente, torne ainda mais complexa a tua produção... Ela faz com que eu tenha que buscar palavras e buscar sutis referências para dar conta de sair da minha. Por isso, caro Walmor, devido à distância, tão enriquecedora, te escrevo.

Subscrevo-me com meu abraço fraterno,

Andréan Renand

1  Fragmento extraído do Poema Os Três Mal-Amados, de João Cabral de Melo Neto. In: MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.35.

2  Poema A Bailarina, de João Cabral de Melo Neto. In: MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 44.

BARTHES, Roland. Como Viver Junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_________________. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

_________________. Sade, Fourier, Loyola. Tradução: Mario Laranjeira. Revisão da tradução: Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

NISSA, Gregório de. In: LEROI-GOURHAN, André. O Gesto e a Palavra 1: técnica e linguagem. Tradução: Vítor Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984.

1  Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007. Exposição individual realizada no Goethe-Institut de Porto Alegre, RS. Foto: Fábio Del Rê. Fonte: www.walmorcorrea.com.br.

2  Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007. Exposição individual realizada no Goethe-Institut de Porto Alegre, RS. Foto: Fábio Del Rê. Fonte: www.walmorcorrea.com.br.