Meu caro KRAJCBERG,

saudações desde este Sul (pelo longo tempo em silêncio, de parte a parte, me permita dizer-lhe assim)!

Desta vez escrevo quando aqui já é uma sexta-feira, dia de quase não escrever cartas para conseguir fechar a semana. O dia está de nuvens tão, tão espessas que, parece, vem delas o cheiro de madeira queimada, intenso no ar que ora a tudo envolve e nos faz um tanto uruguaios (espero que isso faça algum sentido para ti, nesse litoral tão outro, tão próximo da Linha do Equador). Já conversamos sobre isso, e sei que me repito, mas meu gosto extremo pela experiência das estações, a exigir de nossos corpos respostas moduladas às ondulações do clima, me fisga no fascínio desta estação que já se faz tão fria. Por aqui, o inverno austral dá o tom de nossos dias. As nuvens estão em seus layers pesados, mas meu olho se dirige ao horizonte onde busca entender (ou decifrar?) o que o limite da lagoa esconde (ou engole?). Enquanto escrevo (se eu fosse um homem moderno, diria: enquanto digito), escuto esparsos sons, da madeira sendo cortada, sobre o som das teclas de plástico avançando, com certa dificuldade, na base do teclado desagastado (sabes bem, me repito, o valor que atribuo às coisas em seu desgaste; mais uma vez aqui meu côté uruguaio aparece – mas te garanto nada é à toa nesta carta de hoje). Clacs, tlucs, cracs, a escrita, a lenha sendo cortada, a lenha queimando na lareira. Na sequência, com a concentração chegando, é apenas o som do claquear das palavras buscadas que vai orientando meu ritmo, neste ambiente doméstico no qual passo a maior parte de meus dias, para lá e para cá, sempre à procura. Sei que compreendes isso bastante bem: vem também de ti esse meu pensar, pensar que hoje é um sentir, pois acabei me constituindo assim. Vão-se bons anos, décadas, desde que tu, como um mestre, começaste a mostrar, discreta e pacientemente, com a exposição de tuas obras, um novo ritmo, permitido/propalado/imposto pela tecnologização.

Pois bueno, é difícil, sabemos, encontrar equilíbrio entre tecnologia e natureza. Se já era difícil com menos gente e menos tecnologia, o que dizer desta nova vida empobrecida, feita de vidro e plástico e luz por todos os lados? Todo mundo aparentemente satisfeito... Aqui voltamos nós para, reconheço, a eterna conversa que um dia me incitou a invadir tua privacidade, a escrever a primeira carta (não me sai da cabeça o agravante daquela interminável discussão sobre a guerra, sobre as “guerras particulares”, nos termos do João Moreira Salles em seu filme, logo posterior ao de Maria do Socorro, Socorro Nobre – aliás, escrevendo isso assim, aqui, embora permeada pelo ritmo percussivo desta nova modalidade de “tecnologia da escrita”, percebo que quem me animou no desejo de escrever cartas para ti foi mesmo ela, Maria!). Naquela época, como sempre dosada pelo pessimismo, dizia-se da necessidade premente de nos ocuparmos dos “restos, pois estamos sempre em guerra”. Depois de assistir ao filme do João Moreira, Notícias de uma guerra particular, alguns anos após ele nos contar a fabulosa história de Maria contigo, a frase não saiu mais de minha cabeça e se consolidou como um refrão, “os restos, pois estamos sempre em guerra”. Porque é preciso reconhecer: na vida real a guerra já se ampliou. Não ocorre mais apenas naquela margem social do filme. Frans, como sabes desde há muito, já chegamos ao pós-tudo. Estamos, todos, vivendo na franja daquele tempo em que começaremos a perder as guerras. Nós, civilizados, perderemos.





Meu caro Frans, que tristeza, tua expressão “fugindo dos homens” é cada vez mais atual. Cada um de nós precisará ter sua casinha na árvore! A minha, já providenciada, fica ao lado de uma árvore pau-ferro, útil para todos os efeitos. Nela, me sinto segura, para enfim poder me desenvolver. Parece prático pensar que vida e morte se inscrevem, morte e escritura se deparam.

Volto sempre a esta passagem, que aparece junto à última das imagens, num livro autoral, maravilhoso, isto é, naqueles em que vida e escrita se misturam, Roland Barthes por Roland Barthes. “As árvores são alfabetos, diziam os gregos. Dentre todas as árvores-letras, a palmeira é a mais bela”. Não sei se a compreendo bem. Ela antecede um poema de Heine sobre árvores distantes (uma árvore solar, outra glacial; vou copiá-lo abaixo1 para ti, que não sei se o conheces). Mas gosto muito do que Barthes diz logo depois: “da escritura, profusa e distinta, como o repuxo de suas palmas, ela [a palmeira] possui o efeito maior: a inflexão”. Neste nosso tempo de virulências por todos os lados, teus troncos e árvores incinerados e calcinados, dos quais ainda retiras beleza e equilíbrio, são um farol. Pura inflexão para a reflexão. Tua obra nos humaniza: nos aproxima da terra, no que de humano há no húmus. Mas, poderosos, dominantes, teimamos em tudo esquecer.

Aqueles cracs que ecoam na minha paisagem doméstica, os cracs da lenha em chamas, chamam das árvores seu destino alfabético. Quando retalhadas pelo homem, mesmo após sua cremação, resta nelas ainda certo material de escrita. O carvão com que, por vezes, voltamos a escrever. Sei que não é desta carbonização que tratas. Sei que a escrita deixada pelas queimadas é de outra ordem, outra e estúpida ordem.

Entre tantas lembranças, se misturando ao que me passa pela cabeça enquanto remexo nas imagens de tuas obras, guardadas sempre por perto, o fósforo. Pode ser curioso pensar que, hoje, quando abrimos aquela pequeníssima gaveta (tão pequena que cabe na palma de nossa mão) e nos deparamos com ela cheia de palitos com pontas vermelhas, não avaliamos o quão difícil terá sido, há muitos milhares de anos, para os primeiros homens, o domínio do fogo. No ínfimo do gesto, o riscar de um fósforo, o pequenino graveto industrial, permite conquistar o fogo. Para nós aqui, vivendo em nosso sul, não é possível, no meio desta conversa, esquecer o significativo trabalho de Elida Tessler intitulado justamente “Phosphorus”, registrado em grego. Para não esquecer.



Em cada palito de fósforos de Elida, lê-se, grafado, o título de uma obra literária, junto do nome de seu autor – nos fundamentos da cultura ocidental. A obra é baseada em Fahrenheit 451, livro de Ray Bradbury filmado genialmente por François Truffaut. Não te parece básico o que essa obra nos faz pensar para os tempos em que vivemos (viste o vexame do MinC?). A selvageria não pode vencer, senão seremos todos a “fugir dos homens”. E fugiríamos para onde?

Mas minha carta de hoje vai porque queria te contar de um quase irmão, mais jovem e isso é bom, que tens por aqui, vivendo na fronteira sul, juntinho ali do Uruguai, também à beira da praia, exposto, portanto, às intempéries. Seu nome é Hamilton Coelho e ele, como tu, é andarilho da praia. Foge dos homens, chegando mesmo a se negar a participar do mercado da arte. É escultor, faz entalhes em madeiras que recolhe do mar e grandes composições com peças inacreditáveis que por ali encontra. As imagens que tenho dele são precárias, o que é uma pena, mas, me parece, te dará uma ideia da força desse seu trabalho, quase anônimo. Algumas vezes, devolvido para o mar.

Por que afinal o que mais importa, ao nos envolvermos com a arte, é como somos envolvidos por ela? A próxima pergunta é terrível: em que termos o Sistema da Arte, e seu Mercado, dão conta disso?

Despeço-me, Frans, pois é tarde, e esta já está ficando demasiado longa para ser uma “pequena carta”. Ainda assim, copio algumas palavras do grande filósofo e pensador que é Giorgio AGAMBEN: “o importante não é nosso percurso nas palavras, mas esse barulho confuso que aflora de nós, como o que aflora de um animal em fuga, ou de qualquer coisa que se revela sob o barulho de nossos passos”. Tenho isso anotado toscamente, num pedaço de papel amarelado. Foi traduzido por uma amiga, então talvez tenha havido aí alguma adaptação mais coloquial, o que nem sempre é ruim. Deixo contigo essas palavras, como se as tivesse encontrado na praia. Sei que cuidarás delas.

p.s.: Encontrei entre os guardados esta fotinho, meio fora de foco, de tua casa na árvore. Não sei se foi tirada da última vez em que estivemos juntos aí. Falavas muito na árvore e no quadrado, na árvore e no retângulo, a partir de alguma atucanação com Mondrian. “Vamos rever o quadrado para reencontrar a árvore” é o refrão que me ficou daquela conversa. Lembrarás disso?


Havia ali decerto entre todos nós a sensação do “barulho confuso que aflora em nós”, enquanto pensávamos.

Agradeço-te por tudo, e com meu abraço fraterno, saudosamente me despeço,

Andréan Renand

1  O poema de Heinrich Heine: No norte, um pinho solitário / Ergue-se sobre uma árida colina. / Cochila; a neve e o gelo / Cobrem-no com seu branco manto. // Ele sonha com uma bela palmeira, / Lá longe, no país do sol, / Que se desola, triste e solitária / Sobre a falésia de fogo. Tão melancólico, não? Tão humano...

BARTHES, Roland. Como Viver Junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

MORAIS, Frederico, et al. Frans Krajcberg, Revolta. Rio de Janeiro: Editora GBArte, 2000.

REQUIÃO, Renata. Estesias. 2002. 319 f. Tese (Doutorado em Programa de Pós-graduação em Letras: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. Disponível em: www.lume.ufrgs.br/handle/10183/6016 Acesso em: 13 maio 2016.

zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/10/elida-tessler-apresenta-instalacao-com-1-018-lupas-4863030.html

queimadas.cptec.inpe.br/~rqueimadas/material3os/memorialdanatureza.htm

www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=116&Numero=216&Caderno=9&Noticia=289019

Capa  - Exposição permanente Espaço Cultural Frans Krajcberg, Jardim Botânico de Curitiba / Pr. Foto: D.Lopes. Fonte: http://www.triplov.com/cyber_art/frans_krajcberg/carbono_05.htm

Esculturas com árvores carbonizadas. Praia de Nova Viçosa e Exposição permanente, Espaço Cultural Frans Krajcberg, Curitiba / Pr. Fotos: D.Lopes. Fonte: http://www.triplov.com/cyber_art/frans_krajcberg/carbono_05.htm

Esculturas com árvores carbonizadas. Praia de Nova Viçosa e Exposição permanente, Espaço Cultural Frans Krajcberg, Curitiba / Pr. Fotos: D.Lopes. Fonte: http://www.triplov.com/cyber_art/frans_krajcberg/carbono_05.htm

Esculturas com árvores carbonizadas. Praia de Nova Viçosa e Exposição permanente, Espaço Cultural Frans Krajcberg, Curitiba / Pr. Fotos: D.Lopes. Fonte: http://www.triplov.com/cyber_art/frans_krajcberg/carbono_05.htm

Esculturas com árvores carbonizadas. Praia de Nova Viçosa e Exposição permanente, Espaço Cultural Frans Krajcberg, Curitiba / Pr. Fotos: D.Lopes. Fonte: http://www.triplov.com/cyber_art/frans_krajcberg/carbono_05.htm

Renata Requião, “Minha cas©a na árvore pau-ferro, ou Lá onde me habito: caesalpinia leioestachya”, 2016, fotomontagem e experiência. Foto da autora. Fonte: Acervo particular.

Renata Requião, “Minha cas©a na árvore pau-ferro, ou Lá onde me habito: caesalpinia leioestachya”, 2016, fotomontagem e experiência. Foto da autora. Fonte: Acervo particular.

Renata Requião, “Minha cas©a na árvore pau-ferro, ou Lá onde me habito: caesalpinia leioestachya”, 2016, fotomontagem e experiência. Foto da autora. Fonte: Acervo particular.

Renata Requião, “Minha cas©a na árvore pau-ferro, ou Lá onde me habito: caesalpinia leioestachya”, 2016, fotomontagem e experiência. Foto da autora. Fonte: Acervo particular.

Elida Tessler, “Phosphorus”, 2015, Exposição 365, Bolsa de Arte, Porto Alegre / RS. Foto: Maria Araci, Acervo particular. Fonte: mariaraci.blogspot.com.br/2015/11/1018-lupas.html

10  Elida Tessler, “Phosphorus”, 2015, Exposição 365, Bolsa de Arte, Porto Alegre / RS. Foto: Maria Araci, Acervo particular. Fonte: mariaraci.blogspot.com.br/2015/11/1018-lupas.html

11  Hamilton Coelho, esculturas, 2003. Fotos: diferentes autores. Fonte: www.flickr.com/photos/demaracuja/6758004593 e www.patosdosul.com/2012/06/hermenegildo-chui-escultor-hamilton_24.html

12  Hamilton Coelho, esculturas, 2003. Fotos: diferentes autores. Fonte: www.flickr.com/photos/demaracuja/6758004593 e www.patosdosul.com/2012/06/hermenegildo-chui-escultor-hamilton_24.html

13  Hamilton Coelho, esculturas, 2003. Fotos: diferentes autores. Fonte: www.flickr.com/photos/demaracuja/6758004593 e www.patosdosul.com/2012/06/hermenegildo-chui-escultor-hamilton_24.html

14  Frans Krajcberg e Zanine Caldas, A casa na árvore, Nova Viçosa / Bahia. Foto: Frans Krajcberg. Fonte: Acervo pessoal.