Breve nota ao leitor que me encontra
Tudo o que você encontrará nas linhas que se seguem está um tanto desarranjado, desordenado e até estilhaçado. Naturalmente, irá se deparar com mais imprecisões do que respostas, mais movimentos pujantes do que estabilidade. Afinal, quando me falta linguagem escrita, deixo ecoar desprendidamente. As palavras soltam-se, descolam. É assim que incorporo desenhos e trajetos rabiscados que constroem diálogos por outros caminhos, propondo uma espécie de confidência tramada em expressões cheias do agora. Então, deixa romper, deixa soar, m u l t i p l i c a r.
Nesse percurso desassossegado, recomendo que fique atento para além dos caracteres digitados e tudo aquilo que extravasa a partilha do sensível. Quem sabe assim, daremos um jeito, você e eu, de sincronizar nossos pensamentos.
Desequilíbrios entalhados sobre nós
Madrugada de 11, 12, 13 e 14 de maio de 2016
Ao som de estouros, galopadas, gritos e lutas
Fala-se da palavra deserto ou da palavra terremoto. Fala-se dos olhos que tudo viam, deixando progressivamente de ver. Das cidades anônimas, dos soluços mudos, das cápsulas de felicidade. Dos sufocamentos, anestesiamentos. Do assíduo consumo de latas de conserva à pronta entrega, dos nossos sumiços. Estamos desaparecidos de nós mesmos: adiposamente acrescidos por objetos de entretenimento, prisioneiros da normalidade, de informes e formatações.
Frente a isso, cada vez mais acredito que Hélio Oiticica tinha razão. Para ampliar os sentidos da arte e sacudir a esfera dominante, é preciso criar um enlace político, ético e social. Percorrer, estender, diluir arte, vida, política, e, de repente, tornar tudo uma rede indissociável. Um ato de resistência, de sobrevivência nos dias que correm. Uma brecha capaz de solicitar respiro, um suspiro em meio ao sufocamento.
Por isso, antes de mais nada, inalemos ar e lentamente deixemos sair infinitos.
Confesso que escrevo aqui como desabafo.2 Pensei em deixar de fazê-lo, mas desistir é morrer dentro de si. Em meio aos últimos acontecimentos de ruína e medo nacional, balanço, vibro adentro. Tenho tanto a dizer, tanto a pulsar, rabiscar, desafogar. Parece que existe o som do mundo que tomba, que despenca levantando pó, deixando apenas partículas flutuantes do que antes era um projeto de nós.
Meu peito dói. Sinto uma força que se espalha, que percorre junto ao fluxo do meu sangue. É rasgo, soterramento, silêncio, uma imensidão de vidas trituradas em grãos. Mesmo que meu corpo tenha espaços para ser poesia, lhe foi estabelecido paredes, grandes portões de ferro. Máquinas que o embala a vácuo e o esmaga dentro de caixas com violências silenciosas, invisíveis, insensíveis.
Minha casa já não é abrigo, meu corpo já não é seguro. Em circunstância na qual se propaga o discurso de criminalização da cultura, borbulho por dentro, flamejo por fora. Quero ser desvio. Quero defender e promover a diversidade daquilo que somos, daquilo que tanto podemos ainda ser. No entanto, as coisas não são tão simples assim. Sua televisão ainda é arcaica e plana, ainda impõe reminiscências de grandes moralismos antigos, agressivos e excessivos. Mas quero que saiba: exterior a ela, vivemos em terrenos montanhosos, em chão áspero, irregular e múltiplo, onde dia a dia se arrisca manifestar sua espessa e tremenda vida.
Escolher estar nesse meio, sugere então, uma produção artística que expressa voz, que grita mesmo silenciada. Pois nessas estruturas duras de retrocesso que almejam extinguir os direitos sociais, existem brechas ínfimas, fissuras que deixam passar luz. Pequenas resistências que respingam a interminável busca de vestígios, de atravessamentos de sulcos luminosos, de atritos de corpos em extensão. Luminosidades quase imperceptíveis, que são direções, orientações, entradas e saídas. Que inventam outros espaços, outros percursos fora do estabelecido, criando, assim, um espaço de conversa, de troca de substância rara daquilo que nos faz.
Nesses cruzamentos, podemos extrapolar o território da página, do corpo urbano, artístico, político e até visceral. Afinal, hoje mais do que antes, é preciso estremecer, confrontar. É indispensável não temer. Em um país que tem cor, tem útero, tem amor, resistir é movimento de enfrentamento, de transformação social. É gesto que tece processos participativos, experiências práticas e reflexivas que ensinam a libertar.
Sendo assim, mesmo que todo esse emaranhado traga apenas breves inquietações ofegantes acerca de juízos doentios, começa a brotar, aqui e ali, uma arte democrática, transgressora, capaz de criar práticas periféricas que corroem o poder, que salvam o minuto, o segundo de existência. Arte politicamente engajada, socialmente preocupada, que compartilha, faz críticas aos sistemas, media processos, propõe novos parâmetros, fazendo surgir formas de resistência e guerrilha, que articula e rompe as barreiras que emudecem nossas lutas. Lutas que são amplas e duras.
Avancemos para ser mais de nós.