O seguinte texto foi minha proposta, não selecionada, à convocatória para a residência ComPosições Políticas, outras histórias do Rio de Janeiro, que ocorreu durante o mês de março de 2016 no bairro da Maré, no Rio de Janeiro. Sua publicação se dá como palimpsesto propositivo, já que, apresentada aqui, ela mesma se põe na justaposição entre sua hipotética realização e seu aqui anunciado fracasso. Claudicante, anuncia um futuro que já não aparentava ser possível, mas que retorna agora como proposta irrealizável; resquício documental de uma intenção vinculada a uma utopia habitante do passado, não do porvir.
Das 22h do dia 20 às 10h do dia 23 de abril de 2014, todas as pistas da Avenida Brasil foram fechadas na altura do bairro de Ramos em virtude das obras para a construção da ponte estaiada do BRT Transcarioca. Minutos após o início desta interdição, moradoras e moradores da região ocuparam tais vias vazias, sem carros, utilizando-as como uma área de lazer. Essas presenças, que então jogavam futebol, andavam com skates, patins, bicicletas, passeavam, corriam e aproveitavam de todo modo aquela grande extensão disponível, poderiam lembrar o parque público High Line em Nova Iorque, construído sobre uma linha de trem desativada, ou mesmo o Elevado Costa e Silva em São Paulo, conhecido como Minhocão, que, atualmente, em horários específicos, é interditado e torna-se uma área de uso recreativo. Mas uma diferença crucial se coloca: diferente dos projetos citados, frutos de tomadas de decisões públicas, projetos urbanísticos vindos de um consenso – suposto, muitas vezes – da sociedade civil, a ocupação na Avenida Brasil dos dias 20 a 23 de abril de 2014 partiu da própria deliberação multitudinária – sem pautas definidas, sem estar organizada por um interesse coletivo expresso claramente – das moradoras e moradores das regiões próximas às pistas interditadas. Julgado então espaço ocioso, naqueles dias de lazer, a Avenida Brasil se tornou o que muitas pessoas desejaram ao nosso antigo Elevado da Perimetral à época de sua derrubada: um espaço, com outros usos, estruturalmente conservado.
Em 14 de janeiro de 1969, Hélio Oiticica inicia texto seminal às suas práticas artísticas a partir de então com a frase: “não ocupar um lugar específico, no espaço ou no tempo, assim como viver o prazer ou não saber a hora da preguiça, é e pode ser a atividade a que se entregue um criador”. Aí então é cunhado o conceito crelazer, preocupação evidente de Hélio com a colocação do lazer em potencial, em detrimento de sua correlação usual ao trabalho, como algo a ser realizado no tempo ocioso do citadino. Coloca Lisette Lagnado (2007, p. 53) no texto Crelazer, ontem e hoje, publicado no caderno SESC_VIDEOBRASIL vol. 3, que:
Nos tempos vividos em Nova York, junto com Romero, [Hélio Oicitica] tentou uma experiência não muito bem-sucedida: entrar no metrô, num determinado trajeto (no trem 4, direção uptown para o Bronx), e fazer os trabalhadores em trânsito usar Parangolés-capas (1972). Percebeu que a resistência participativa das pessoas poderia estar relacionada com sua grade horária de trabalho. Para haver participação, o tempo precisaria ser “aberto”, o público teria de anular compromissos e obrigações.
Sendo “um programa in progress […] uma política contínua e que, portanto, absorve os humores de cada época” (2007, p. 53), não é difícil identificar o crelazer em cada proposição de Hélio, em sua postura anárquica em vida, em arte, e em cada momento de prazer desalienado das estruturas de trabalho que podemos viver até hoje.
Solidário ao lazer que ocorreu na Avenida Brasil em abril de 2014 e identificando nisto o crelazer que Oiticica nos aponta em 1969, durante minha residência junto ao projeto ComPosições Políticas, outras histórias do Rio de Janeiro proponho fechar a Avenida Brasil durante 3 dias. Para isso, usarei de todos os métodos possíveis e necessários para realizar este trabalho: entrar em contato, via e-mail, telefone, presencialmente, com instituições, órgãos e indivíduos que poderão chancelar tal ação; realizar abaixo-assinados com a população local pró esse fechamento de 3 dias; hastear grandes cartazes e bandeiras nas passarelas da avenida para pleitear a interdição aos que ocupam os veículos que a cruzam diariamente; estimular o uso das redes sociais para reivindicação; dentre outras formas que serão descobertas e desenvolvidas em colaboração com moradoras e moradores da Maré, artistas residentes, entre outras pessoas que estiverem próximas no decorrer deste mês de março.
Hélio ainda chega a indagar, em 14 de janeiro de 1969, se “crelazer é o criar do lazer ou crer no lazer”. A necessidade de acreditar no potencial criativo do lazer se interpõe à criação livre dele. Crelazer não é totalmente crível. Ainda busco acreditar no lazer e proponho o que me parece possível frente ao magnânimo do lazer destes que ocuparam a Avenida Brasil. Já não posso ser propositor como este Hélio em 1969 que tanto nos contribuiu com seus escritos e práticas. Mas me concebo como alguém que deseja abrir espaços para a multidão que nos mostrará novamente como crelazer, como sempre o fez e faz. Pois foi ao ver as imagens dessa ocupação da Avenida Brasil e lembrar deste conceito, crelazer, que me dei conta de tal acontecimento já como potência às artes visuais (não uma potência esteticista: “adeus, ó esteticismo “, nas palavras de Hélio) e que o único gesto artístico que poderia fazer, visto isso, era, utopicamente, buscar restaurar as condições que possibilitaram esse levante.
Sem mais e buscando crer, proponho aqui.