Você já teve um daqueles sonhos tão vívidos que não conseguiria mais dizer se verdade ou fantasia? Ou uma memória tão surreal que seria impossível distingui-la de um sonho? Naquele dia, Marcelo teve – ou lembrou-se – e decidiu colocar no papel.
Sempre que ia fazer isso, ele se dava conta de como era difícil começar. Por onde se começa uma história, afinal? Godard já disse, quando falava de sua narrativa: toda história tem início, meio e fim, não necessariamente nessa ordem. Em Uma Aprendizagem, Clarice Lispector inicia o livro com uma vírgula e termina com dois pontos. Inícios, afinal, são arbitrários, e Marcelo se decidiu por começar com uma frase simples, uma pergunta dirigida ao leitor: Você já teve um daqueles sonhos tão vívidos que não conseguiria mais dizer se verdade ou fantasia?
O próximo passo, logicamente, seria descrever este sonho-memória:
Ele estava dirigindo o carro à noite por uma rua mal iluminada (ou teria sido de dia, por uma rua escura?), tentando manter velocidade constante, quando um ciclista intrometeu-se no caminho. Um rapaz que descera uma lomba e agora tentava voltar a subir, ocupando a única faixa da pista sem calçada. Marcelo, em princípio, não se incomodou, observando curiosamente os movimentos do jovem, pois que é aí que sua memória e sua imaginação se confundem: em sua bicicleta, o rapaz pedalava, pedalava, pedalava e mal saía do lugar, avançando lentamente.
Para isso, haveria duas explicações: a primeira, e talvez a mais natural, é que ele estivesse usando uma marcha levíssima, obrigando-o a mover as pernas como um velocista para correr feito uma tartaruga; giros e giros dados, e a roda mal sentia cócegas. A outra explicação, um pouco mais forçosa – e, talvez por isso, preferida pelo autor – é que aquele fosse, de fato, um sonho. Ora, todos nós já passamos por um daqueles sonhos em que corremos, andamos, nadamos, pulamos, voamos e nos movemos sem quase ir adiante, seguindo praticamente plantados onde estávamos.
Há aqueles que defendem que os movimentos oníricos refletem nossos corpos envoltos nas cobertas, limitados por seu caloroso conforto, enquanto outros, mais afeitos à psicanálise, defendem que é nos sonhos que resolvemos, psiquicamente, os nossos conflitos; logo, não podemos correr deles, mas devemos enfrentá-los. Curiosa contraposição entre o ponto de vista biológico e psicológico, não acha?
Bom, como Marcelo não cursou nem biologia nem psicologia, ele não tinha acesso a essas informações (ou, se tinha, como autor, decidiu-se por ignorá-las, como lhe é de direito), e pensou em outra vertente. Como ocorre nos sonhos, temos sempre dificuldades de correr de algo ou de alguém que nos persegue, passando por momentos de aflição ao ver que, por mais que corramos, por mais que nos esforcemos, estaremos sempre ali, no limite do fracasso. E era isso que estava acontecendo com o rapaz da bicicleta: preso em um sonho que Marcelo invadira com seu carro, pedalava desesperadamente à procura da saída, esperando despertar, enquanto Marcelo, dirigindo tranquilamente por uma das muitas estradas e conexões do inconsciente coletivo, aguardava que o rapaz chegasse ao alto de seu sonho para que pudesse prosseguir.
E aí se encerra a memória, levando o autor a duas hipóteses: ou o ciclista saiu da frente de fato, e Marcelo continuou o seu caminho (que, de tão irrelevante, ele esquecera por completo), ou ambos trilharam suas respectivas rotas pelo inconsciente, cada um na direção de seu sonho distinto.
E enquanto termina de escrever este texto, Marcelo indaga se, em algum lugar da cidade ou do mundo, existe um rapaz que tenta se lembrar de um sonho ou memória em que pedalara freneticamente para escapar de um carro, fazendo sabe-se lá o que, indo sabe-se lá para onde.