MALOCA, s. f. Casa de habitação índia que aloja várias famílias; aldeia de índios; moradia de marginais; abrigo de malandros.
MALOQUEIRO, s. m. Pessoa que mora numa maloca; delinquente; mau-caráter, marginal. (BUENO, 1996, p. 410).
* Leia essa declaração escutando o toque de cavalaria por um berimbau angoleiro.
A maloqueiragem nos une e nós a festejamos. Somos o povo da rua, nos sentimos bem nos lugares limite entre uma e outra situação urbana. Temos peculiar gosto pelos mocós e pelas arquiteturas da necessidade. Eu particularmente vibro com o design espontâneo dos vendedores ambulantes, dos catadores, etc. Por isso, por afinidade, a vivência das quebradas, a arquitetura dos mocós em livres ajuntamentos de materiais precários disponíveis, a gambiarra, o design do banco de obra do trabalhador construtor fazem mais a minha cabeça do que a arquitetura monumental ou o design dos móveis sob medida ou de bistrôs de acessórios. Há mais criatividade e experimentalismo nas quebradas do que nas galerias de arte.
Arquitetura, design, arte, urbanismo são distinções colonizadoras, ocidentais, judaico-cristãs, posições superadas pela orgia mestiça, pela crioulagem que nos originou e a qual celebramos. A Europa, que nos vestiu de culpa e de chibatadas, é uma velha senil ajoelhada clamando por salvação a um deus que não sabe dançar. Lá, a cúmbia toca alto, nós sambamos sobre o túmulo da velha Europa. Viva a santeria, a macumba, a capoeira e o liquidificador norte-americano. Morte à obesidade norte-americana. Os centros das cidades, os bairros planejados, os shopping centers são tão senis quanto a velha Europa. Tão tediosos e previsíveis quanto um McLanche Feliz. Que esse incêndio queime a Disneylândia. Incendiaremos o incêndio.
Ei, burguês, continue vivendo com medo, possivelmente, nós lhe assaltaremos na próxima esquina. Um salve à violência contra a propriedade e toda a expropriação ao capital. Ei, gringo, não grila, nós lhe ensinaremos a gingar. Um salve a toda boca do lixo de Sganzerla, ao boquete de Oiticica em um trezoitão. Ei, artista, se manca, sai do atelier e vai dar um rolé. Um salve ao humor de Flávio de Carvalho. Um salve ao rolézinho do Glauber em Roma. Ei, arquiteto, enfie Niemeyer na estante. Ei, urbanista, enfie Lucio Costa, discípulo de Le Corbusier fascista, na parte que pesa da sua consciência. Um salve pra maloca e outro pra maloqueiragem. Tristes Trópicos não mais. Um salve pra Torquato, comparsa, o jogo dá a volta no mundo camará.
Reciclamos não só tua comida, também tuas senzalas, teus santos e teus filósofos. Devolveremos teu fastio com anarquia. Teu pudor com orgia. Tua otarice com malícia e je ne sais pas com um tanto de mandinga. Ganga Zumba é cantigueiro nas encruzilhadas. Negro cansou de sofrer nas tuas ruas. Gilles Ivain não conheceu esse bairro, mas nós conhecemos Gilles Ivain. New Babylon de Constant é uma ingenuidade perto do que pretendemos. O Homo ludens situacionista não conheceu a capoeira e nós não lamentamos por isso. O Homo capoeira é contemporâneo do Homo ludens só que insurgente, gingador, malicioso, mandingueiro e tudo na cidade. Dizem que Madame Satã tinha uma caceta e tanto. A lei da rua diz que malandro é malandro e mané é mané. Certeau tá fazendo piada querendo nosso respeito. Certeau é jesuíta.
Que se jogue o jogo. Tic, dom, dom. Tic, dom, dom, dom. Tic, dom, dom, dom. Dom. Berimbau é instrumento de festa e arma de foice na mão do Homo capoeira. Negro chora no navio negreiro. Negro chora dentro do cativeiro. Negro luta na rua. Povos das florestas lutam pra não encontrar a cidade. É, burguês, chora por esse deus que não dança. Você continuará sentindo medo. Teu vizinho pode ser um maloqueiro. O que tu vais fazer? Chamar a policia? Chamar a milícia? Assumir a maloqueiragem? Tanto faz, se pensastes nisso, estás condenado. Iê, viva Zumbi, camará. Você achou que abstraindo o pelourinho iria abstrair a luta? Enganou-se. Se não sabes do paradeiro do pelourinho da tua cidade e muito menos da senzala na tua casa, te digo: ele fica na tua cozinha, e se te prevaleces, ou pior, tua chibatada arde no corpo de uma empregada doméstica. Se for isso, não consegues fazer o básico para tua existência. Sinta vergonha de si.
Se fores artista assim, saibas que o teu jogo é de chibatada. Se fores arquiteto, saibas que o teu jogo é de senzala. Se fores urbanista, saibas que jogas o jogo que jogas, jogo de covardia. O problema da arte brasileira é que ela teve ou tem senzalas e chibatas em casa. Depois vem falar de cotidiano. Ao lixo com os seus cotidianos se não lavas o prato em que comes. Esse é o intelectual da elite. Odiamos esse intelectual. Odiamos a sua cidade. Não pode ser sério que uma intelectualidade brasileira ainda se porte assim como sabemos que se porta. Artistas que destratam garçons enquanto jantam o futuro da arte brasileira em restaurantes gourmets. Até hoje, nessa vida, a escravidão não se apagou. Atenção: somos a insurgência – cuspimos no teu prato.
A questão da maloqueiragem que assumimos é justamente essa. A elite brasileira odeia os brasileiros e nós odiamos a elite brasileira. Isso é tão idiota quanto... eu e tu discutindo isso. Só que não é a mesma coisa, se não estamos no mesmo lugar. Não lamento em informá-los que essa declaração provém da roda de vadiagem de uma malta. Sim, a senzala se organizou. E ela faz arte. Dona Maria do camboatá, que vende aí? É a revolta e não lamentamos por isso. Sintam-se na roda ou sintam-se ameaçados. Essa é uma questão de classe. Maloqueiragem é sabotagem. Ora, sinhô e sinhá, é contra vocês, sua arte e esse seu urbanismo que declaramos guerra. Sim, a guerra do maloqueiro contra o cidadão de bem foi declarada. Lutemos então. Homo capoeira não quebra berimbau. A maloqueiragem anda livre pelas ruas sem temer o amanhã.
Rogério N. Marques – micro squat PeriPlaneta Americana. OCA, verão de 2016.