Satolep, 08 de março de 2017.
Cara Marina,
É agradecida por teus convites, aos quais tomo como convites pessoais, que finalmente entro em contato contigo. Finalmente, reitero, desconfiando que tal demora, mal disfarçada como indiferença, se dá porque, entre as artes, a que praticas — quanto a isso registro aqui uma de minhas poucas certezas —, essa arte que praticas, tão próxima da vida, é a que me deixa mais constrangida, calada, inibida... Na verdade, nem sei se é bem isso... Atemorizada? Caso seja isso, se temor, medo, intimidação, me pergunto: mas por quê?... Temo que por hábito, temo por hábito...
Devo me apresentar, embora quanto a mim, Marina, certamente não lembrarás meu nome, mas me viste, sentada à tua frente; estive lá, sentada por algum tempo, eu também “fundassentada”, nessa posição cabralina que nos rege, domestica, e afinal tem sedentarizado, há séculos e séculos (embora saídos das quatro patas voltamos a elas, com nossas próteses cadeiras!), por séculos e séculos, amém. Naquele último dia, não te disse nada, nem sorri, não te toquei, não tentei te fazer sorrir (teria sido adequado?, educado?, leve?,... escaparia com esse comportamento tão particularmente humano, se, como por distração, sorrisse?!). “Afrontadamente” me vi, pois que duplicada, refletida em tuas duas pupilas, em tuas retinas, vi dois rostos meus, minúsculos, espelhados em cada negro olho teu, e me vi assim ainda emoldurada por teu lápis kajal de olho negro, tu tão egípcia, e, de fato, Marina, assim foi, eu empalideci. Empalideci. Emocionada, e sem saber qual era a emoção, fiquei profundamente constrangida. Ver-me multiplicada, ao olhar para ti foi como se olhasse para Susanas, Madonas, Vênus, Ledas, Lucrécias, Siringes, Dafnes, Sabinas, tentando descobrir, afinal, o mistério que envolve o rapto das filhas de Leucipo... Febe e Hilária, como se pensasse no rapto de toda uma humanidade de mulheres...
Divago bem sei, não sou precisa, mas não há questões sempre pungentes envolvendo a possibilidade civilizatória, questões vinculadas à possibilidade de nossa espécie encontrar seu “devir”, afinal viemos a quê, no trajeto desta infinita diáspora? Penso especificamente no devir das mulheres, da assunção de sua perspectiva afinal... não? “L’homme est l’avenir de l’homme” (“o homem é o que virá do homem”, penso que seria uma boa tradução para o que se lê em alguma linha de Francis Ponge). Pois então, cadê?
Sabes Marina, quando a gente considera nossa “vida em comum” sobre a Terra, se fala muito, nestas últimas décadas, e não sem razão, em aquecimento da Terra, dada a presença de um Sol já sem filtro. Resultado da estupidez humana, resultado de uma longa série de equívocos e maus tratos, nossos, com as coisas, pelo exagero da necessidade de a tudo fabricar, de cobrirmos o solo terrestre com coisas... Longa conversa seria essa... sobre coisas que possuímos, coisas que ainda nem existem e já desejamos, gastronômicos que somos. Quisera que houvesse um termo tão cataclísmico quanto “aquecimento solar”, ou quanto “está em vias de acontecer o ‘derretimento da calota polar’”, ..., quisera um termo cataclísmico para se dizer das barbáries dos homens contra as mulheres... Qual o termo para dizer das barbáries dos homens contra as mulheres sobre a Terra? Em todos os lugares da Terra, em qualquer lugar. Não há esse termo nem sua tradução. Por conta de nossa, ainda, invisibilidade? Desta vez, vindo do México, Ni una menos, é o refrão ao qual repetimos a cada vez mais aturdidos, todos, em prol de uma humanidade mais digna, que nos acolhesse a todos (li recentemente que a frase “um crime contra a mulher é um crime contra a humanidade” foi um dos slogans da candidatura derrotada à presidência dos EUA, de Hillary Clinton; o que é absolutamente sintomático, não concordas?!).
Porque afinal, Marina, estamos fadados a viver todos, juntos, próximos, sobre a Terra. Não temos saída. Juntos, amontoados, perto, lado a lado — cada vez somos mais, cada vez mais sobra menos espaço entre nós. E o grande problema da vida política não é apenas a economia, como dizia Bill Clinton (como vês “estou americanizada”, e “it’s the economy, stupid” é um dos meus contrarrefrões prediletos!). Para além dos Clinton, falo aqui também de economia, embora na economia dos afetos, que é, esta sim, nosso maior desafio: como estar perto sem ser invasivo, como estar longe sem ser esquizo? Nos termos de Roland Barthes, “como construir com os outros uma sociabilidade sem alienação, uma solidão sem exílio”? Em 2014, o filósofo brasileiro (o terás já conhecido?), Vladimir Safatle, escreve um pequeno artigo, no jornal Folha de São Paulo, cuja primeira frase é: “a verdadeira política é a reconstrução de nossos afetos”. Safatle é herdeiro, atualizador, de Nietzsche: “a política é a arte de afetar os corpos”. Falo de algo civil, de uma vida urbana e civil, por aí.
Minha filha, outro dia, me disse, de um homem público: “o problema dele é não ter nenhuma curiosidade sobre os outros”. Um homem público autossatisfeito. O pior dos homens. E não era de Trump de quem ela falava, era de um político local, doméstico. A praga está por tudo, Marina.
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Como desoprimir-se?
Marina, te escrevo quando ando numa campanha pessoal contra todo e não importa qual tipo de opressão. Talvez te escreva, hoje, finalmente por isso. E é apenas coincidência que seja no dia internacional da mulher. Raro em mim estar sincronizada.
Não quero ter que bradar “je suis Charlie” a cada mês na língua em que homens selvagens aviltam nossas ainda parcas conquistas civilizatórias. Digo intransitivamente, tristemente: homens selvagens aviltam, a todo instante. Crime contra a civilização é cada crime, a cada dia — se já somos, e já somos, tecnológicos e urbanos, o que nos falta? Quero a liberdade do querer qualquer coisa, “a coisa tal qual se quer, a coisa qualquer”, do genial Agamben. Quero sim ser moldada por Charlie; como por Gotlib, por Pessoa, por Clarice ou por Adélia; quero ser moldada pela arte e pela cultura e pela crença que eu quiser: quero poder me cultivar seguindo meus próprios sentidos.
Marina, Marina que te chamo Maria: é isso o que indicas com tua arte, com tuas ações, com teu corpo.
Não pergunto. Sei que é isso.
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Fernando Pessoa nos diz, li há tanto tempo, que o coração é do tamanho de um punho; Angélica Freitas, poeta brasileira, contemporânea, escrevendo desde este nosso sul, nos diz que o útero é que é do tamanho de um punho. Deveria haver, quem sabe, uma medida desde o punho, como a polegada e o pé, medidas para construir o mundo desde o corpo.
Como mulher, os tenho eu própria, a meus dois punhos e a um coração, e ainda tenho um útero. “Polinucleado são os úteros das mulheres” – disse, certa vez, Donaldo Schüler, homem de tão vastas literaturas, comentando um longo texto, em que alguém buscava registros da voz. Pois ao ver tantas mulheres, Marina, tantas nos teus olhos, enquanto me via, foi como ter cada um desses órgãos, não quaisquer outros, apunhalados (eis aí o “punho”?!, afinal não um instrumento de medida mas um de violência??!, eis aí então o punhal?!). Meus órgãos, vitais, refeitos então de palha e osso resseco, pura craca, com a vida toda já feita morte (aliás, a obra do Nuno Ramos — sua obra em processo — me lembra muito o amontoado de teu Balkan Barroque, ambas de 1997, nota bem!). Nuno, concordarás comigo, como Clarice, sempre às voltas com a morte (achas que invento?!). Coração e útero em punho fechado, na salva negra da olimpíada guardada em narrativa visual. Salva negra em punho fechado, na narrativa escrita em seus primórdios por Jesse Owens, com o gesto da vitória para o qual se preparou a vida inteira. Desde aquela vitória negra, instalando em si a primeira imagem do que viria a ser o punho fechado, erguido em contenção e força, elemento importante do imaginário ocidental da resistência contra a “violação da vida” (une vie violée!).
Marina, fico pensando no quanto, tal como as trocas entre vespas e orquídeas, de Deleuze & Guattari, o "abanico ao Führer" encenado por Jesse Owens, nas Olimpíadas de 1936 da Berlim nazista, antecipa e torna mais complexo o "punho fechado", no gesto encenado por Tommie Smith e John Carlos, nas mais recentes Olimpíadas de 1968, do México, com que então levam consigo sua genealogia. Há, nessa linhagem de gestos, uma dívida (owe, nessa curiosa coincidência em inglês,) para além das classes e das etnias. Uma dívida histórica frente à barbárie e à opressão. Lamentavelmente em nossa trajetória, tal dívida (owe) exige constante “atualização”, para que não esqueçamos o que não devemos (owe).
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Marina, já não sei que rumo tomou minha carta, e se me desdobro demais, me desculpo de menos, mas eis aqui outro problema, na arte, como na vida: a “obra em processo”, o “trabalho em processo”, não está sempre imbuído de um pensamento típico da performance? Do que nos esquecemos, afinal? Se estamos construindo, a pergunta mais clara talvez fosse: como esquecemos?
Digo-te Marina, Marina mulher, nau Maria: como não é choro o que me vem, nem o que me veio contigo (falo do que sinto e me vem quando me emociono), tento dizer aqui o que sinto: é como se meus órgãos ficassem velados (usamos, aqui no sul, o termo uruguaio velo, que nos dá a imagem opaca do tecido, o voile — não é, no mínimo, interessante este trava-língua francês voile/viol?), sinto meus órgãos velados, e, quem sabe, como um espantalho, substituídos por mancheias de palha, restos de trigo seco, pétalas sem cheiro nem cor, folhas de flores ressecadas. Não sei bem ainda se empalideço à tua frente; nem sei se é visível corporalmente o que se passa em meu interior. Naquele dia, não me disseste nada, não te disse nada. Soube de uma mulher que chorou. Não chorei, porque quase não choro. Fiquei muito, muito emocionada: tudo em mim se movia. A tua presença, e o teu olhar (é o teu olhar, de um negro profundo e especular, nitidamente emoldurado no kajal, que guardo comigo — e me atordoa), tão profundo e tão presente. Profundo e presente, por constituído das tantas narrativas quantas são as das mulheres que te encararam.
Sei bem que alguns homens, muitos, têm sido capazes do enfrentamento que propões, ao qual te propões (volto à questão: enfrentamento, tão raro nas vidas banais, que se transforma em arte, arte da performance, ..., como uma “arte da própria formação”?). Marina, te pergunto: estar presente ali contigo, e te olhar, fez de mim também performer? Por que, afinal, e isso já é mais outra pergunta: quando — na vida — não é a performance?
O espaço que decidimos ocupar no mundo, se é que somos capazes de decidir, ao crescermos e nos tornarmos senhores de nosso lugar, não é sempre resultado de uma experiência muito íntima e secreta, decerto iniciática e intransferível?... Performática, gostaria de poder dizer. Achas que sim? Por isso nos “apropriamos”, mesmo discursivamente, quando devíamos, mulheres e homens, nos “empoderar”, tento usar o termo adequado, dizendo-o no novo dialeto.
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Pois não é a performance essa expressão da arte por entre tudo, arte por entre as artes cênicas e as visuais, arte que necessariamente se faz no espaço ao qual, espaço, redesenha e repropõe? Tu, performer, como se fosses uma arquiteta, a delimitar o mundo com teu corpo... A performance é a arte que, mesmo quando não conta com a palavra, conta com o silêncio da palavra, em linguagem que coincide com a linguagem do universo, diz com o silêncio, diz sem dizer palavra alguma. De memória repito: “o silêncio eterno dos espaços infinitos, me assusta” (leio Pascal via Drummond). Tanto espaço..., para, nele, “viver junto”?
Marina, concordas que, para além da palavra, a performance é como um malabarismo visual? Tenho fixação em circos antigos, a tenda, a pouca distância entre o palco e o público, o cheiro da casca de arroz misturado com o dos animais, as risadas e os ós em uníssono...
Tento ser mais clara, explico-me porque sei bem, trago este cacoete acadêmico comigo: meu mundo está seccionado pelos campos dos saberes instituídos, e me aflige aqui que isso, de alguma forma, possa afrontar nossa possível comunicação; cada um de nós tem que se haver com seus limites; não há terra sem fronteira... vamos lá: o performer, um “performador”, se apropria até dos ruídos humanos (até = inclusive); e desde esses das ressonâncias do som do mundo, eco do eco do eco... Daí ser também arte visual a lidar com sonoridades. O homem, uma caixa de ressonâncias. A arte da performance é a arque-arte, nela inclusive os odores e as sensações térmicas de nosso derredor, capturados pela superfície do nosso corpo — nosso maior órgão perceptivo, linha, malha, rede de pesca, das sensações e de exalações...
Na performance tudo é signo. Ela é certamente a mais semiótica das artes. Não é? O performer: um malabarista de signos.
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Escrevi “linhas” linhas atrás, o que me suspendeu (a gente é mesmo feito de reminiscências e espasmos). Deixo vários pontos de lado, para ir noutra direção. Conto-te, minha cara Marina, como, na noite passada, tarde da noite, bem depois mesmo de ter conseguido voltar a esta carta, tive um sonho: sonhei que te assistia soltar pipa, brincadeira muito antiga, decerto universal, tantos nomes tem, brincadeira que ensina as crianças a serem adultos e estes a serem crianças novamente. Pois conto-te, afinal, o sonho: eis que, erraticamente, como acontece nos sonhos, um corpo envolto em barbante busca, na linha de pipa, se transformar na âncora de um barco imaginário. Um corpo envolto em barbante busca, no ato de soltar pandorga, o silêncio da pesca, essa pesca dos ares. O que pesca o corpo da empinadora de pipa? Sua isca é uma pintura multicolor e a boia desse anzol é a própria pintura, é ela a própria isca. A cor é a isca dessa pescadora, tua cor, pescadora. Mas o que pesca, de fato, o corpo dessa empinadora de pipa? Ele, o corpo, pescaria talvez o invisível, o vazio, o vento, o ar, ele, teu corpo, corta as nuvens como quem belisca um algodão doce, ela, a pintura, distrai até os deuses, tira a atenção deles das narrativas do mundo, no mundo. Ele, teu corpo, envolto em barbante e pintura, nos tira do mundo, e do alto, com a pipa, chama nossa atenção para ele, para o mundo no mundo.
Marina, só posso contar para ti este sonho assim sonhado, não aos pedaços, mas numa sintaxe que beira o agramatical, meio sem fim, sem começo. Tenho muita dificuldade em contar sonhos, a narrativa escapa. Quando chego a ela, ela escapole, fica sem sentido. De alguma forma, a linguagem da performance não parece se aproximar da linguagem do sonho? Tua arte tem a força do real que o sonho tem, como se pudesse mesmo ser real, e quando tentamos recontá-la, dizê-la, fogem para outro sonho, como se lidássemos com um sonho dentro do outro. Cenas que se associam, sensações antes que cenas. Por vezes, um pesadelo sem violência nem assombração, pura energia, experiência com o mal (quando criança eu tinha um sonho reiterado, me batia numa parede, tantas vezes, que mesmo no sonho já sabia o que aconteceria depois, e o que viria a sentir, sempre o medo). O circo tem a contraparte de circo de horrores infantis. Com ele, brinco contigo aqui: por vezes, o sonho é invadido por arriscadas brincadeiras, até mesmo com facas extremamente afiadas. Noutras vezes, emoldurado por círculos de fogo, ou por estrelas de fogo, replicando antigos rituais. Noutras, no sonho, parece simulado pelo efeito de algum entorpecente pesado. Por vezes, ele pausa e ficamos nele como em algum estado de catatonia, anestesiados, sem reação, entregues às agressões e à belicosidade do outro. O sonho é um regime capaz de nos transformar em marionetes de carne. Algumas dessas vezes são capazes de transformar nossa experiência e nos determinam.
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Não quero deixar de comentar contigo. Sei que o conheces bastante bem. Lembro o impacto que foi para mim conhecer o trabalho do Matthew Barney, em Drawing Restraint 9, “desenhando a contenção 9”, eu traduzia e repetia, na tentativa de entender. Naquela época, estudava certa poesia extremamente estruturada e me perguntava como é possível fuga e contenção estarem numa única expressão!!! Se estrutura previsível, se poético inusitado, tocante, avassalador... seria a vida feita desses dois opostos em potência o tempo todo, em qualquer situação? Arranjo espaço ainda aqui para te contar, Marina, uma dessas coincidências da vida (já contei um sonho, agora uma coincidência; talvez nada do que eu vá dizer, anotar, seja relevante para ti; mas como não seria relevante, se resultado real, de uma experiência tão cara que ainda hoje sou capaz de repeti-la?...). Talvez afinal até conheças o artista de quem aqui falarei citando até o nome, através de quem, inventei?, através de quem, conheceste o Brasil?, por que sinuosas vias das afecções já não sei,... será que invento ou conheces bem Arto Lindsey? Que tanto conhece de nosso Brasil, de nosso Brasil baiano, e, por consequência, de nosso nordeste, do cordelismo de nosso nordeste, em ritmos de saber e de oralidade, ritmos de cores e de fruições que nos remetem a outras épocas... Minha tese, pura intuição: de certo modo, no nordeste, podemos sentir o medievo. Devo me conter: essa sim é conversa para um segundo momento, pelo qual torço, e aqui me esforço. Mais uma pista, isca: a carnavalização do corpo repercute em cada recanto do nordeste litorâneo... Ali todos estão no palco, a cidade é o palco (ouvi dizer que os cursos de artes da universidade da Bahia são os mais multidisciplinares do Brasil!, li mesmo alguns editais de concursos e fiquei entusiasmada!).
Marina, a quem insisto chamar Maria, o mundo que me impressiona intimamente é o mundo das conquistas íntimas, a conquista da intimidade... Muito antes das cartinhas daquela fulana Cale para seu “namor”, em amor adolescente e, oquei, frustrado, quando tu e Ulay, exaustos, atravessando o deslimite da Muralha da China, realizaram (o termo aqui deve ser tomado em seu sentido frequente em inglês!) a separação de vocês... e, também mais tarde, quando já afastados tantos anos um do outro, voltam a se encontrar para ficarem, juntos, cara a cara durante horas, numa retomada improvável da mesma obra Imponderabilia, a roupa e a mesa entre vocês, tudo tão difícil, eu pensava daqui, a milhares de quilômetros de onde vocês estavam dispostos..., expostos.
Eu sempre com medo de palcos. Tua voz, serena e forte, ressoa em mim:
Follow your intuition (Segue tua intuição).
Have courage (Tenhas coragem).
Do what you imagine (Faz o que imaginas).
And always be completely present in the moment (E estejas absolutamente presente no momento da coisa toda).
A great artist has to be ready to fail (Um grande artista deve estar pronto para falhar).
‘cause is a unknown territory and you have to be able to fail (Porque, afinal, se trata de um território desconhecido [o da arte] e tu tens que estar apto a falhar).
Dizes nesse vídeo (se não me engano, conversavas com alunos), que o artista-autor, um crítico da vida contemporânea, necessariamente, sente-se como se sentia Colombo, antes da última noite antes de ver a América. Quando tudo era desconhecimento.
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Depois dessa longa conversa sobre limites da obra de arte (e sobre a mais simples e banal, por comezinha e frequente, situação da vida; me desespera um tanto dizer isto, mas preciso dizer senão nada do que digo aqui faz sentido: meu desejo de te escrever se dá na medida em que percebo tua arte replicada sobre a mais ínfima e, aqui o terrível, “alienante” manifestação cotidiana da vida), depois dessa primeira longa conversa sobre as relações possíveis entre artista-autor e o público (termos que, nos termos desta nossa conversa, claro é que requerem reavaliação; é necessário encontrar novos nomes para falar do que uma arte como a tua, Marina, aponta, propõe, põe em prática — se novos nomes eliminariam essa minha conversalhada, não sei!)... De fato queria ter tido fôlego para te dizer minimamente sobre meu aturdimento ao tratar de aspectos (melhor diria: comportamentos) que tanto exploras, levados ao limite, como observar, contemplar, interagir, participar, experimentar (conceito que, não me furto em dizer, a mídia e os caminhos do capitalismo, em sua dupla fome voraz, fazem voltar à baila; tudo agora é experience, heineken experience, life experience).
Eu o que quero?, poderias me perguntar... Quero a experiência da performance. A performance como formação, o “per-formar” para melhor viver: no treino das bordas, no avanço sobre o desconhecimento, a configuração do ser. Alargamentos. O que me levaria ainda a outra pergunta (prometo que a última): é possível “performar” uma experiência?!
Nesta longa conversa, quase sem fim, pergunto como se respondesse: por quê, afinal, o propósito de toda arte não está implicado por “vivermos juntos”?
Para cada um, Marina, aulas de “ser-se”. Marina Maria, sei, é o que propões. Sei que é. Em nosso atraso civilizatório: nem sempre nos animamos.
Um abraço fraterno.
Erdna Ataner
Dois p.s. a uma Carta:
Cara Marina,
Encerro e nunca encerro nossa conversa. Relendo a carta, pouco antes de enviá-la, me ocorre que, no entusiasmo da escrita, na tentativa de controlar meu nervosismo e de ser suficientemente interessante a teus olhos (é o meu desejo sei bem, uma carta é sempre um jogo de sedução), me ocorre que alguns temas teóricos e mesmo científicos foram tratados sob minha limitada assimilação mundana, metida que sou de a tudo entender, de sobre tudo emitir opinião, sem me omitir (será essa uma forma de resistência, mera teimosia talvez?).
1. Lá se vai meu texto cheio de saltos, de generalizações, de pseudoachados paracientíficos, pois simplificados pela minha medida. Volto, então, à imagem do "sol sem filtro". Imagino-o um sol-cigarro em chamas constantes a tudo ebulindo, elidindo; um sol aspirina cabralina a tudo queimando e não curando; um sol vangoghiano, um sol do Japão em bomba de Hiroshima, um sol do nosso Taim... Podes aceitar comigo compreender a camada de ozônio como um filtro?
E assim chegaríamos a meu “sol sem filtro” e sem noção, sol que nos queima e destrói (vi excessivos filmes de ficção científica?). Sol que transforma a Terra numa estufa cheia de homens-plantas não aquáticas, mas desérticas... Terra desertão.
2. Serei clara Marina (e me responsabilizo pelo que digo): o movimento como uma onda "Ni una menos", iniciado na Argentina, teve um novo ponto de epicentro no México, enquanto eu me preparava para escrever tua Carta. Uma menina cujo nome não recordo (embora ecoe em mim o refrão "ni una menos") foi bolinada dentro de um ônibus. Ela corajosamente veio a público, apoiada por seus irmãos, homens. O fato foi real, Marina. Mas não estivesse na onda, esse caso é hipocrisia nada se comparado ao daquela menina, indiana?, iraniana? (nem lembro bem, imagina!), anos atrás, logo após o Natal de 2012... Lembro das imagens dela morta, quase morta, num ônibus semelhante a este ônibus mexicano (pois que parecem sucatas dos nossos). No que agora explicito, aparece a sucessão de aspectos que me fazem pensar que, quanto à história das mulheres sobre a terra, como uma história de gênero, história da contraparte silenciada de uma espécie milenar, história das mulheres como história de gênero tomado em sua especificidade, o fato, cada fato, é algo cuja repercussão, para azar de todos nós, é como a de uma mera pedrinha jogada na água (voltemos aos outros ônibus deste comboio; lembremos do mais recente estupro coletivo, ordenado por tribunal popular, de outra jovem indiana cujo crime foi ter se apaixonado, Julieta, por um jovem Romeu da aldeia rival). Sei que me exponho à possível má compreensão, mas preciso arriscar.
Marina, quiçá, quem sabe um dia, uma partícula solar, numa aurora boreal, jogada sobre uma menina-geni (só por ser menina, só por sua genitália), sob intensa tempestade geomagnética, seja capaz de a tudo sobre a Terra transformar. Assim, a nova Terra.