Lembra quando viajávamos juntos por esta estrada?
Entre sol, chuva e noite, tudo passava.
E era doce ver o mundo passar-e-ainda-assim-estar.
Uma pequena entrada. Avistar ao longe, através da janela em movimento.
Pausa, respiro (nestes instantes fotográficos).
Demorei tanto tempo passando, sem saber que, ainda assim, estava. E, agora, me encontro aqui, passada aquela fase de não saber para onde ir, a fase da bifurcação. Mesmo que você tenha me ensinado a ler as placas... para algumas coisas não deu tempo.
Quanta coisa mudou... A paisagem mudou muito. Às vezes, fica até difícil me reconhecer nela. Então vem aquela necessidade, tão de dentro, de a tudo que se olha criar paisagem. Costurar com memórias de outrora... na alegria de ocupar aquele caminhão vermelho. Alegria e dor de compreender que meu olhar se formou nas passagens.
Andamos nesta estrada como em um leito de um rio. E como andamos... A estrada nos move como na imagem que nos acompanha há tantos séculos — e já não somos mais os mesmos, em cada passo-descompasso — porque já andei me perdendo por aí. E parece ser esse um convite inicial da viagem, não é mesmo? Perder-se talvez seja até princípio básico.
São registros desse nosso vínculo pela BR-392.
Linhas que formam o traçado do movimento de nossas memórias, que insistem em se refazer a cada novo percurso.
Foram alguns meses repetindo esse itinerário, na alegria do encontro que se dá pela potência do pensamento como ato. Refletir desloca.
Foi bom criar esse pequeno território em deslocamento, por mais que tenha exigido a perda de algumas certezas, como a de não saber desenhar. Para você ver, andei até desenhando com as linhas das palavras.
O corpo assume sua natureza nômade — essa que nos constitui e segue por estes cinzas. Agora podemos ver também pelo alto, a paisagem ganhou outra amplitude nesse nosso plano, que era tão de sempre.
As ruínas habitam as bordas. Beira de estrada, beira do sistema, deslocadas no tempo, habitando temporalidades múltiplas. Você consegue percebê-las pelo caminho?
Naquela saída 57, rumo à Marambaia, por duas vezes segui aquela estradinha de chão e encontrei a casa rosa. As plantas tomavam conta do lugar. Era a natureza se apoderando novamente do que sempre foi seu. Naquela paisagem, me fiz planta e me fiz casa. Demorei para conseguir voltar.
A Marambaia é a outra margem. Ainda em Rio Grande, é um território de ligação e afastamento. O São Gonçalo separa ou une? A ponte une e cria paisagem também.
Fico a me fazer perguntas tolas, na ilusão de que você possa também me contar mais sobre a sua grande experiência das estradas, mas a vida é tão breve e fluída que já esqueci o seu endereço. Por que escrevo, então, se esta carta talvez nunca chegue ao seu destino? O importante é o percurso, caminante.
***
Queria que você estivesse um pouco mais nas minhas paisagens, e sinto que relatar essas passagens possa vir a ser um modo de habitarmos juntos esses lugares — universos em devir.
Como a planta habita a casa.
Como a casa é habitada também por memórias.
Silêncios que povoam, que evocam.
Eu me perdi também no que a casa contava, por isso demorei a voltar. A estrada não é longa, mas é cheia de buracos.
Lá no Cassino, naquelas ruas que ligam muitos caminhos, de repente uma casa foi derrubada. Não me lembro dela, mas fico tentando criar lembranças através dos relatos das pessoas que conversam comigo ao me verem fotografar. Na primeira vez que parei, tinha um senhor dormindo entre os escombros. Aquela imagem foi perturbadora. Saí com um pouco de medo. Ele agressivamente ameaçou se levantar, parecia estar bêbado. Também... como poderia querer atrapalhá-lo?
(Nem tudo é pretexto para uma “boa” foto.)
Hipertexto que se faz no entre, como numa fotografia sem câmera. Você também o faz em sua tela mental, e assim vamos aos poucos nos comunicando visualmente.
Na segunda vez que parei, consegui fotografar melhor: com câmera e com tempo, pude me demorar. Mas, de tantas, acho que escolho apenas uma — espero que goste. Na saída, um homem (outro) me pergunta se sou a “dona da casa”. Ele se apresenta como intermediador imobiliário (?). Alguém que lucra com a morte das casas, sabe? Mesmo dessa que já morreu e segue sendo habitada. Explico que não, não sou herdeira do que foi a casa.
Se herdei alguma coisa nesta vida foi essa necessidade pela estrada. Por mais cansativa que seja, assim, semanalmente. A imagem, das possibilidades que traz em si, essa potência de criação que carrega, não à toa produz também pensamentos nômades.
E foi em uma dessas andanças pela praia que encontrei as estradas interrompidas, e, na tentativa de subverter e seguir, me deparei com aquela pequena estrada que em mais de trinta anos não havia sequer visto. Subitamente, entrei. Não tive muito tempo para pensar, o corpo respondeu antes — e, assim, já havia adentrado naquele universo paralelo.
Dizem que ali já haviam sido arremessados mísseis da NASA na época da ditadura.
Tenho notícias também em fotos, e a paisagem dali também mudou bastante. Já não há mísseis, como você deve estar pensando. Parece meio bobo e óbvio, mas só fui perceber que ali era o que ali é depois de já ter passado. Enquanto passava, não me lembrava dos mísseis de outrora, só havia lugar para o arrebatamento de encontrar um espaço deslocado no tempo, terreno amplo que hoje é fronteira com o bairro da Querência, um corte na expansão urbana que ainda mantém a vegetação do Cassino da infância. Por pouco, não colhi carquejas. Das linhas, criei um horizonte.
Encontrei sofá, cadeira, um armário de cozinha azul, um grande alfabeto colorido espalhado entre os arbustos. Pensei que ali estava posta a casa, e, então, veio-me a ideia de habitar a própria paisagem. Modos de habitar o que em nós, habita. De lá também foi difícil sair. Uma trilha indicava o caminho, mas, novamente, entrada/saída interrompida. Foram tantos os descaminhos que nem sei como estou aqui agora
[habitando este estar entre].
Atravessei a ponte várias vezes... Em todas, você atravessava comigo. Lá de cima, lembro daquelas inscrições que adoro ler desde a infância. Da janela do caminhão, avistava aquele imenso “Rosana eu te amo” e admirava o contorcionismo da declaração. O amor realmente move andaimes. De baixo da ponte, outras perspectivas se formaram... novas frases... “Pode-ser”
[era o nome do barco]
Na chegada à cidade de Pelotas, sempre fazia dois percursos. Passava por aquela ruína que insisti em chamar de minha. Por anos, acompanho a vegetação crescer, e, um dia, haviam cortado tudo — restava a matéria saudosa de vida. Vida essa que segue.
Às vezes, me perdia no entorno e encontrava algumas pequenas fábricas e outros vestígios de abandono. Observava à distância: aproximava-me com a câmera, enquanto os moradores vizinhos me lançavam olhares desconfiados.
Mas todos os caminhos levavam àquela casa. Ali, onde há anos também habitava o abandono. Quantas vezes observei aquela imagem imponente... que dores habitaram esses porões?
Realmente, o mais profundo é a pele, mas muito bem lembrado: é preciso escavá-la. A casa escavada, em que resta a fachada por estar protegida, ainda que por anos tenha estado abandonada. Eu me lembro de vê-la fechada há quase dez anos. E, um dia, nas passagens, vi a Kombi de uma demolidora estacionada ao lado e juro que pensei que aconteceria. Mas conversando com o responsável pela obra: não, eles não podiam. “Não podemos demolir”. Em breve, será a lavanderia de um hotel das redondezas. O que já foi essa casa? Que memórias habitam o lugar? Como abrir caminho entre as ruínas? Será que tecemos, nós juntos, neste percurso-vida, algum modo de habitá-las?
Ler a Terra, memória movente. Talvez o mapa desmonte a ideia de mapa e não ajude a chegar a algum lugar, porque, de fato, são memórias fragmentárias que tento tecer, como nas retas e nas curvas dessa estrada, na ambivalência entre o que é visto, vivido, imaginado. Habitar o tempo, como na poesia de João Cabral. Habitar a pele do tempo.
Ressignifico também a minha memória na imagem dessas memórias em pedaços.
Sigamos tateando essas peles.