A imagem aqui comentada foi composta como uma montagem em contraponto. “Montagem” no sentido mesmo em que esta expressão foi concebida no contexto da teoria cinematográfica, e, segundo a qual, os elementos icônicos de uma imagem agem uns com os outros e contra os outros de modo a construir um sentido que emerge da experiência disjuntiva possibilitada pela bricolagem. Assim, a imagem se faz mapa, mediante uma lógica específica com o qual eu poderia chegar a criar um tipo de escrita em imagem: uma imagem “estratigráfica, tectônica, arqueológica”, isto é, para ser vista e lida, tal como qualquer bom fruto de montagem.

Cada elemento do quadro funciona em contraponto em relação aos outros. A forma feminina é utilizada para antropomorfizar um ente despersonalizado — “a música” —, de modo que esse ente ganhe um caráter de pessoa e, assim, de um sujeito de ação. Nesse caso específico, a ação consiste em estar ao telefone. A ação contida na figura remete ao encontro entre a música e o telefone, uma articulação entre duas tecnologias que dizem respeito ao som. O quadro por si mesmo não soa, mas o som é seu elemento central, um “extracampo” que paira sobre a imagem, sua quarta dimensão, uma imagem que se ouve.

O código mais tradicional da escrita musical, posto como rosto da figura, é utilizado aqui como símbolo que remete à música, assim como alguém faz uma tatuagem de uma clave de sol no ombro e aquilo significa “música”. O choque entre um código musical e o telefone constitui um dos aspectos da montagem em contraponto em questão: o encontro entre as duas tecnologias consiste em fazer chocar dois modos diversos de agenciar o som: um deles funciona como tecnologia de registro (a escrita musical), e o outro, como tecnologia de transmissão (o telefone).

É sabido que o telefone foi a primeira técnica de transmissão direta de áudio, tendo ganhado, inclusive, um uso específico, como meio de transmissão de performances de óperas, com a invenção do “Teatrofone” [Théâtrophone], por Clément Aber em 1881. O streaming, as “transmissões ao vivo” com as quais estamos tão acostumados(as) hoje, é derivado desse gesto inicial. “Fulano está ao vivo”, “Cicrana fez uma transmissão ao vivo”. Hoje naturalizadíssimo em nossos hábitos, o telefone resultou de um agenciamento de artifícios — dentre os quais, física acústica, eletricidade e magnetismo— e provocou um impacto decisivo sobre uma outra e mais antiga tecnologia de articulação dos sons — a música —, servindo de combustível para transformações radicais nas condições materiais e intelectuais de produção e recepção musical. Por exemplo, toda música eletrônica que conhecemos hoje tem, em sua linhagem histórica, este encontro específico registrado na tela.

Assim, a tela traduz, dá corpo, forma em signo um encontro. O objeto que a operação tradutória tem em mira aqui é a realidade da música enquanto algo que se produz no cruzamento entre diferentes tecnologias. E sempre foi assim: um pedaço de osso, uma tripa esticada, um pedaço de pau e uma corda tensa, um arame, um parafuso. Música não cai do céu, mas tem uma fixação com o céu: Olimpo, música das esferas. E para o céu é transportada a forma feminina, a qual traduz, no quadro, um circuito de sentido próprio ao imaginário mítico da Grécia pré-homérica, em que a “música” corresponde a um tipo de ser semidivino situado entre os humanos e os deuses: as musas, ninfas filhas de Zeus e Mnemosine. Leia-se, portanto, que uma musa, o ser mítico, está ao telefone. A música ao telefone: e, ao telefone, ela fala; ao telefone, escuta.

Desse modo, o quadro projeta, em forma de figura, uma situação cuja ressonância temporal abrange desde cerca de 1860 — quando da invenção do telefone — até um passado impreciso, situado em algum ponto anterior ao século VIII a.C. e mergulhado no diagrama mental do panteísmo mitológico da Grécia pré-homérica. Da figura, irradiam, portanto, vetores em direção a um passado insondável, mas também ao futuro, pois o lençol temporal estende-se virtualmente até os dias atuais, fazendo chão aos dispositivos móveis que ocupam grande parte de nosso tempo diário e que, além de serem microcomputadores pessoais portáteis, são também telefones, como este que está no seu bolso, dentro da bolsa, em cima da mesa, enfim: ao seu redor. Assim, o trabalho coloca em cena também uma extensão temporal de milênios que ambienta uma específica (e contínua) metamorfose da música.

O fundo do quadro é uma imagem de águas escuras, de modo a ambientar a figura no contexto de um oceano temporal escuro — “noite do tempo”, metáfora presente na língua francesa — para se referir a um período muito distante no passado, do qual pouco se sabe. A moldura, por sua vez, encontra-se, ao mesmo tempo, em relação de contraste e complementaridade com a figura. Levemente rachada em sua parte inferior esquerda devido à ação de propulsão do cotovelo da figura para fora do quadro, a moldura coloca em cena uma tensão que se encarna como também de natureza semântica, uma vez que as palavras “música” e “museu” são ambas derivadas do mesmo substantivo grego mousa, musa. Assim, tem-se, entre figura e moldura, um contraponto que se traduz em contraste entre duas posturas com relação à cultura, polarizadas entre uma tendência à conservação (o museológico), e uma tendência à invenção e à transformação (o musical).

De tal modo, a composição articula uma estrutura de contrapontos que se dão em diferentes níveis de sentido, dentre os quais se podem perceber: 1) a ação figurada, contendo em si o encontro entre duas tecnologias relativas ao som; 2) ainda na figura, o contraponto entre as dimensões do técnico e do mitológico, com a vizinhança entre o caráter divino da musa e o caráter mundano da voz teletransportada; 3) a tensão entre a figura e a moldura, que se coloca como tensão física pela ação do cotovelo e da rachadura, mas que se traduz também em tensão semântica: o musical e o museológico. Tais relações de contraponto correspondem a um jogo entre elementos cujos nomes são remanescentes da língua grega em nosso português (e também em diversas outras línguas): musa, música, museu e telefone. O objeto global que a operação tradutória visou construir em forma de imagem é a relação de modulação e transformação entre estes elementos nomeados em grego, razão pela qual a composição foi intitulada “um momento específico na poesia grega”: uma poesia em meio à qual ainda — e também —, estamos. A música que fazemos, a língua que falamos, as histórias que contamos, a voz que transmitimos, tudo isso flui num circuito de signos ao qual a composição se refere como genealogia feita em ícone, isto é, como mapa, raciocínio diagramático.

Desse modo, o trabalho aborda o tema “pensar e fazer juntos” no contexto de um circuito de relações que não se encerra apenas no âmbito intraespecífico, isto é, entre nós humanos e nós mesmos. Na tela, os agentes da relação são códigos, tecnologias de registro e de transmissão, figuras míticas, valores de conservação e transformação. A esfera de relação situa o humano frente a um campo expandido, no qual as relações sociais se estabelecem entre humanos e não humanos: entre nós e o alto-falante, entre nós e o telefone, e o silício entre nós e um chip, entre nossa imaginação e um sistema de códigos, entre os códigos e eles mesmos. O trabalho afirma o humano e seu produto música no contexto de uma imaginação relacional expandida, na qual ambos, música e humano, são feitos de outras máquinas. O quadro é, assim, a respeito da música e do humano entre nós, música e humano entre aspas.

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Henrique Rocha, Um momento específico na história da poesia grega, 2016, Colagem sobre papel, 27, 5 x 24, 5 cm.