Há uma página. Uma imagem que se anuncia. Será um texto? Começo pelas imagens. Elas estão por trás de cada palavra, rondeando os seus significados, farfalhando entre os seus vãos, esgueirando-se para dentro de suas camadas, sinuosas... como enguias. As imagens que me vêm primeiro são sempre anguiliformes, então eu digo que a alma do texto assume a forma de uma enguia. Não digo. Vejo. Nesta página, antes mesmo de ter conjugado o verbo “haver” a fim de conformar à linguagem o sentido de criação primeira, antes mesmo de me acercar desse recurso formal, o de começar a falar das coisas pela gênese, já havia uma imagem. Era mais ou menos

, mas não estática assim. Ainda não era uma cena, tampouco uma ideia abstrata. A imagem de um deserto, capturada em movimento de formação,

talvez espraiando os limites de sua fisionomia, talvez ainda experimentando que forma tomaria. E, na pressa da palavra, já estou descrevendo: um deserto sob o sol, nuvens que se adensam ao fundo, aridez, vento, quem sabe formas humanas tateando por uma duna, quem sabe apenas pegadas, rastros de animais. Essa imagem é um substantivo, a designação de um espaço, ou é um verbo: o ato de partir? O deserto. Eu deserto. Em cada acepção da palavra, estou transfigurando a imagem. Quem sabe a imagem não é o que está por trás disto, o que infla isto, o que enxerta isto, o que bombeia as veias disto?

Talvez a imagem, essa enguia volátil, sofra as perturbações de todas as transformações das palavras que se destinam a encapsulá-las, a ser seu invólucro, redoma de linguagem. Talvez, se o significado de uma palavra se altera, a forma da imagem que a habita incorpore algo das mutações ao longo do tempo. Quando leio, eu vejo essas imagens impossíveis — talvez sob um outro prisma do verbo ver: mais incrustado na palavra, aos moldes ideográficos. é uma imagem? Não leiamos o que diz o código verbal. Vejamos a imagem.

As relações entre texto e imagem ocupam um espaço crítico desde que o poeta latino Horácio (séc. I a.C.), em sua Epistola ad Pisones (Ars Poetica), formalizou a proposição ut pictura poesis, chamando a atenção para uma proximidade essencial entre a poesia e a pintura. Mas essas aproximações têm sido, desde então, homológicas, quase nunca com a intenção de promover o entendimento de uma confluência, de uma miscigenação genuína. Assim, as oposições categóricas entre as artes visuais e a literatura se sustentam e constantemente se renovam desde que G. E. Lessing, em seu Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766), sinalizou a distinção básica entre as artes na oposição tempo/espaço:

A pintura é uma arte da imagem, isto é, do espaço, enquanto a poesia é uma arte da linguagem, isto é, do tempo. A pintura e a poesia são, portanto, submetidas a determinações específicas. O que o poeta pode contar nem sempre pode ser mostrado pelo pintor (LESSING, 1998, p. 96).

Depois de 250 anos, esse dilema persiste, desafiado por perguntas, que, a despeito de sua aparente simplicidade, são elas mesmas anguiliformes. Imagem é texto? Escrita é imagem? Texto e imagem são imiscíveis? Existem criaturas híbridas? Se existe uma fronteira, onde ela reside? “Que ponto do céu permite dizer claramente que se transpôs uma fronteira?” (ONFRAY, 2009, p. 37-38).

Mas não é uma manifestação do espaço?

Mas não é uma manifestação do tempo?

Anne-Marie Christin declara que o ímpeto de separação entre texto e imagem sempre esteve profundamente ligado à dissociação, no Ocidente, do suporte e das figuras, que são os dois “elementos constitutivos da imagem” (CHRISTIN, 2009, p. 01). Ao dividi-los, “a civilização do alfabeto perdeu o sentido da legibilidade imanente do visível, que se baseia na sua cumplicidade” (CHRISTIN, 2009, p. 01).

Eu poderia dizer que e têm copulado desde o começo dos tempos, quando se desenhou, em cavernas, a primeira inscrição, quando se inscreveu, em uma pré-histórica galeria escura, o primeiro desenho? Para W. J. T. Mitchell, “não existe nenhuma arte ‘puramente’ visual nem verbal” (MITCHELL apud SCHOLHAMMER, 2002, p. 24). Há Mallarmé. É preciso começar pela gênese. Para Mallarmé, o espaço era parte fundamental, unidade semântica indissociável do sentido da palavra. Com Um lance de dados jamais abolirá o acaso, Mallarmé fundou a aliança entre a literatura e as construções imagéticas, tornando o leitor um ator ativo no processo de fruição (Marcel Duchamp fez o mesmo em relação ao espectador). A leitura puramente temporal foi dessacralizada em Mallarmé. Aapreciação puramente espacial foi dessacralizada em Duchamp. O suporte da escrita deixou de ser o mero fundo, espaço desativado de significação, e o leitor foi convidado a assumir um papel duplo, daquele que lê e olha ao mesmo tempo. Essa relação intrínseca é a realidade da escrita ideográfica. O desenho no Oriente nascia do verbo ou da imagem?

Um deserto! Desenho.

! Palavra.

Como artista,1 tento descobrir não uma correspondência, não as semelhanças entre isto e isto. Existe a possibilidade de que uma palavra guarde uma imagem que lhe transborde, e vice-versa, e por isso me enveredo nas suas camadas. Ainda não encontrei a fronteira. Às vezes, penso tê-la visto. Onde uma e outra não são mais imiscíveis? Em que gruta uma e outra se encontram para não serem descobertas? O que quero dizer é uma imagem?

Eu sou uma imagem? Eu sou uma imagem negra, marcada? Eu sou uma imagem que anda sobre um trilho? Eu sou uma imagem da cor do sangue? Eu sou uma imagem envergada, despenhando-me?

Da

Cor-

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1  As imagens aqui apresentadas são fragmentos de livros de gramática e apropriações de bancos de imagens livres de direitos autorais e fazem parte de minhas instalações artísticas, correntemente desenvolvidas em pesquisa de doutorado em Arte no Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília.

CHRISTIN, Anne-Marie. Legível/Visível. Conferência integrada no ciclo de conferências A Arte Antes e Depois da Arte em 25 de Maio de 2009, Lisboa, Fundação Caixa Geral de Depósitos — Culturgest. Disponível em: http://www.arte-coa.pt. Acesso em: 15 mar. 2017.

LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998.

MALLARMÉ, Stéphane. Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Paris: Gallimard, 1993.

ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: poética da geografia. Porto Alegre: L&PM, 2009.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Regimes representativos da modernidade. Légua & meia: Revista de literatura e diversidade cultural, n°1, Feira de Santana, UEFS, p. 20-34, 2002. Disponível em: http://www2.uefs.br/leguaemeia/1/1_020_regimes.pdf. Acesso em: 22 mar. 2017.